Calouros de oito faculdades de Medicina não sabem se poderão completar o curso por causa de uma briga judicial. As instituições iniciaram a oferta da graduação neste ano por meio de liminar, mas ainda sem o aval final do Ministério da Educação (MEC).
A pasta não conseguiu barrar o começo das aulas nos tribunais, mas agora vem notificando as faculdades para que alertem em seus sites sobre o fato de os cursos estarem sub judice, isto é, com permissão temporária para abertura enquanto o MEC não finaliza a análise.
Mas, se esses pedidos para abertura dos cursos forem negados, as graduações deverão ser fechadas. E os estudantes dos oito cursos não têm nem mesmo a garantia de que poderão aproveitar os créditos das disciplinas já cursadas.
Uma dessas faculdades é a UniMauá, com sede em Taguatinga (DF). Rodrigo João Francisco, calouro na instituição, está apreensivo. “O investimento é muito alto; a dedicação também é constante”, afirma o estudante de 37 anos.
O processo de abertura do curso de medicina da UniMauá se arrasta há quase 12 anos. Na época em que foi solicitado, o MEC arquivou o pedido. Após anos de disputas judiciais, a faculdade conseguiu decisão favorável para que o pedido dos curso fosse apreciado. O MEC deu início à avaliação do curso, que recebeu nota máxima do Inep e parecer positivo do Conselho Nacional de Saúde (CNS), mas restava ainda a análise de necessidade social de médicos nas região, feita pelo Ministério da Saúde.
Enquanto o processo não fosse finalizado, a Justiça permitiu que a instituição realizasse o vestibular e iniciasse as aulas devido à demora na análise do pedido. Assim, em março deste ano, a faculdade abriu a graduação com 180 vagas.
Pouco tempo depois da abertura do curso, o MEC concluiu a análise e rejeitou o pedido da UniMauá porque, segundo a pasta, a graduação não estaria em uma cidade com demanda social, ou seja, onde há déficit de médicos em relação ao tamanho da população. Outro argumento foi o da falta de convênios da instituição de ensino com hospitais pelo período que determinava a lei da época, de 10 anos.
A UniMauá questiona os critérios aplicados pelo órgão federal para indeferir o curso. Sobre a demanda social, diz que o MEC não usou esse parâmetro de número de médicos por mil habitantes em outros casos. E, sobre a duração dos convênios com hospitais, defende que seja considerado o período de 5 anos, que é usado pelo Inep para avaliação in loco dos cursos.
O indeferimento cabe recurso, mas o MEC orienta que a faculdade deve interromper as aulas “para evitar maiores prejuízos aos matriculados”.
A Medicina da UniMauá é o mais barato do Distrito Federal. Os alunos pagam R$ 6,3 mil, devido a um desconto de 40% dado à 1ª turma do curso. O valor integral seria de R$ 10,5 mil, semelhante ao das faculdades concorrentes na região.
Por isso, os alunos se preocupam em não poder arcar com os custos de outra faculdade. A opção é cogitada caso o curso seja fechado, e baseia-se na política de transferência assistida que o MEC oferece para graduações que foram descredenciadas ou desativadas.
O problema é que, como os cursos nunca foram autorizados pela pasta, o ministério afirma que a possibilidade não se encaixa para esses estudantes.
“Não será possível a transferência assistida por uma questão regulatória - créditos prestados de forma irregular não são passíveis de aproveitamento -, e por uma questão prática - não existe para onde mandar esses alunos: as faculdades e os leitos estão todos ocupados (a lei prevê número mínimo de leitos para cada turma de Medicina, de forma a permitir experiências práticas durante a formação)”, diz o consultor jurídico do MEC, Rodolfo Cabral.
“Esses estudantes são levados a erro, pelo sonho deles, que é legítimo. Mas, estão sendo levados a erro por omissão das instituições na prestação das informações completas aos estudantes”, acrescenta.
A UniMauá, por sua vez, defende o curso por ter recebido boas avaliações de órgãos que avaliam a infraestrutura e qualidade da graduação. “Desde o primeiro dia de sua existência, o curso esteve coberto por decisão judicial autorizativa”, ressalta. Afirma ainda que o governo descumpre a decisão da Justiça e diz ser “alvo de ataques ilegais e injustificados do MEC”.
‘Se o curso fechar, não tenho condições de pagar outro’
Rodrigo atua como advogado e banca o próprio curso. O aluno conta não ter “plano B”. Assim como outros alunos das faculdades que abriram o curso sem autorização do MEC, diz estar confiante de que a instituição irá resolver a situação por estar amparada por decisão judicial.
“Se o curso fechar, não tenho condições de pagar outra universidade”, afirma uma colega de Rodrigo, que não quis ser identificada. “É o MEC que emite o diploma. E se o registro foi negado à Mauá, os alunos vão cursar por 6 anos e não ter diploma?”
O curso de Medicina é o mais cobiçado por pequenos e grande grupos educacionais, por ter as mensalidades mais caras e baixas taxas de inadimplência e de vacância.
Assim como a UniMauá, outros sete cursos de Medicina funcionam por meio de liminares que autorizaram o vestibular e o funcionamento enquanto a análise dos processos não é finalizada pelo MEC. São eles:
- Centro Universitário Facens (UniFacens), em Sorocaba (SP);
- Campus Jequié e campus Vitória da Conquista (BA) do Centro Universitário de Excelência (Unex);
- Faculdade de Ciências Médicas de Maricá, em Maricá (RJ);
- Faculdade Santa Teresa, em Manaus (AM);
- Centro Universitário Goyazes (UniGoyazes), em Trindade (GO);
- Faculdades Integradas Aparício Carvalho Vilhena (FIMCA), em Vilhena (RO).
As sete faculdades começaram o semestre letivo, destravado pelas liminares, mas sem certeza de que as graduações serão realmente autorizadas, já que seus processos ainda não foram concluídos. Assim, os 680 estudantes desses cursos correm o mesmo risco dos 180 alunos da Unimauá: de perderem o tempo e o dinheiro investido.
“O que não podemos permitir é as instituições abrindo cursos de Medicina sem a finalização das análises sobre a viabilidade e qualidade do curso”, afirma Cabral, consultor jurídico do ministério.
As faculdades, por sua vez, criticam a demora do MEC em analisar os processos, que aguardam decisão final da pasta há meses. Em janeiro do ano passado, havia 369 processos com análise pendente no ministério, que tem imposto restrições à criação de novos cursos desde a Lei do Mais Médicos, em 2013, que traz exigências estruturais para a liberar os cursos.
A abertura dessas graduações foi solicitada enquanto não havia chamamento público aberto, por isso algumas das faculdades alegam que não deveriam ser cobradas pelas regras do Mais Médicos - como necessidade social, taxa de leitos por estudante e equipes de Saúde da Família na região.
No começo do mês, o Supremo Tribunal Federal (STF) ratificou a constitucionalidade dessa lei para abertura de novos cursos de Medicina.
“A expansão dos cursos de Medicina era um projeto do governo através da Lei dos Mais Médicos. O que aconteceu com as judicializações foi que essa situação não foi coordenada pelo Ministério da Educação como deveria. Mas no momento em que foi determinado que esse processo se vincule ao Mais Médicos, a garantia da qualidade e da necessidade social estão preservadas”, diz Marta Abramo, da Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (Seres) do MEC.
A Associação Brasileira das Mantenedoras de Faculdades (Abrafi), uma das entidades que representam as instituições privadas, argumenta que os cursos são legítimos por possuírem liminares autorizando as aulas, e não irregulares, como sustenta o MEC.
A Faculdade Santa Teresa (FST) diz que a expedição de portaria do MEC que liberava o curso chegou a aparecer no portal em 08/08/2023, “com cadeado e aguardando apenas ser publicada”, mas nunca foi de fato publicada. A instituição diz não ter recebido explicação sobre o motivo para a autorização não ter saído.
“Por isso, a faculdade insistiu em garantir seu direito por meio do Poder Judiciário”, diz. Afirma ainda rejeitar “qualquer postura alarmista que possa causar desassossego entre os estudantes”.
Já a Faculdade Fimca Vilhena afirma que “cumpriu todas as exigências” das normas do MEC e que a oferta do curso está no escopo do Mais Médicos, “haja vista se tratar de região interiorana, carente de médicos”.
A instituição fala em “injustificada omissão do MEC em proferir decisão, mesmo após mais de oito meses do término da instrução do processo” e “reiterados descumprimentos às decisões judiciais”.
A Faculdade de Ciências Médicas de Maricá também disse que, no seu caso, “a cidade constou no edital do Mais Médicos publicado em outubro de 2023, o que significa que a necessidade social foi atestada, não apenas pela comissão de especialistas (que outorgou nota 5 na avalição, a maior nota possível), mas também pelo próprio MEC, não havendo razão, portanto, para o indeferimento do curso”.
Já o Centro Universitário Facens (Unifacens) diz que, em seu processo de autorização no MEC, “ficou evidente que todos os critérios avaliativos e regulatórios do ministério, bem como os requisitos legais de demanda social em saúde analisados pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) foram integralmente atendidos”.
Segundo a faculdade, a portaria de supervisão (um tipo de punição) do ministério fere a segurança jurídica e a efetividade das decisões judiciais, e criou um “clima de desconfiança” na comunidade.
A Unex disse que “em resposta à longa espera e à falta de posicionamento por parte” do MEC, “e em meio a processos que já se estendem por 975 dias”, os cursos de Medicina de Jequié e Vitória da Conquista tiveram seu funcionamento garantido por decisão judicial.
Como funciona a autorização de um curso de medicina?
Para receber autorização, um curso de Medicina passa pelo MEC e pelo Ministério da Saúde. O processo envolve os seguintes passos:
- análise de documentos pelo MEC;
- avaliação in loco pelo Inep;
- parecer do Conselho Nacional de Saúde (CNS);
- análise da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES);
- decisão e publicação da portaria de autorização pelo MEC.
No MEC, a análise inicial verifica se estão presentes todos os documentos exigidos para o curso e a sua viabilidade. Em seguida, a avaliação pelo Inep é feita por meio de visita in loco na instituição para verificar fatores como a integração do curso com o sistema local e regional de saúde, atividades práticas, laboratórios e unidades hospitalares conveniadas. O curso deve receber nota de pelo menos 4 (em escala de 1 a 5) para ser aprovado.
Já no Ministério da Saúde, o parecer do Conselho Nacional de Saúde avalia a coerência do projeto político-pedagógico com as necessidades sociais em saúde e a relevância social do curso. Há também análise sobre se existem ao menos 5 leitos por estudante na rede SUS local.
Além disso, desde dezembro de 2023, quando o MEC publicou a portaria 531/2023, novos critérios foram adicionados na análise feita pelo Ministério da Saúde de pedidos de autorização de novos cursos (ou aumento de vagas nas graduações já existentes) instaurados por força de decisão judicial, ou seja, que não passaram pelo edital do Mais Médicos.
A partir de então, a pasta passou a analisar se o município onde o curso está sendo solicitado atende aos critérios de relevância e necessidade social, além de verificar se há, na rede SUS local, infraestrutura e serviços adequados e suficientes para a oferta do curso.
Há ainda quantidades mínimas de leitos, equipes de atenção primária à saúde e programas de residência médica, e a obrigatoriedade das instituições oferecerem contrapartidas por meio do investimento de 10% do faturamento anual bruto projetado na estrutura do SUS.
Essas novas regras são as mesmas fixadas no terceiro edital do Mais Médicos, publicado em outubro do ano passado. Só depois de todas essas etapas, o processo volta para o MEC, que, diante das informações avaliadas nas etapas anteriores, publica a portaria autorizando ou não o curso.
O que algumas instituições de ensino alegam é que, por terem solicitado os cursos fora do Mais Médicos, não deveriam ser submetidas às mesmas regras do chamamento público. Outras aceitam as regras, mas reclamam da lentidão na avaliação dos processos.
O MEC afirma que recebeu liminares com prazos curtos, de 10 dias ou até de 48 horas, para que os pedidos fossem analisados, mas que o trabalho leva tempo. Defende ainda respeito à fila de análises.
“O MEC nunca ficou inerte nesse processo, ao contrário, todos os processos tramitaram, muitos já estão chegando na parte final e, claro, agora com a decisão [do STF], isso nos traz mais segurança”, diz a secretária da Seres/MEC.
O que é a Lei do Mais Médicos?
A Lei do Mais Médicos determina que a autorização de novos cursos privados de Medicina se dê apenas por meio de chamamento público e priorize áreas com necessidade social e infraestrutura de saúde para receber as graduações. O objetivo é descentralizar os médicos para que regiões interioranas onde não há assistência de saúde suficiente sejam ocupadas.
Em 2018, o governo Michel Temer (MDB) publicou uma moratória suspendendo por cinco anos a abertura de cursos. Sem editais para chamamento público, faculdades que desejavam criar graduações ou aumentar vagas acionaram a Justiça, que em muitos casos concedia a autorização.
Após o fim da moratória, em 2023, já no governo atual, o MEC retomou a política de abertura de cursos e vagas de medicina por meio da Lei dos Mais Médicos. Mas o governo atual herdou mais de 360 pedidos feitos durante a moratória, dos quais hoje restam 195 pendentes.
E são justamente essas vagas o alvo da discussão atual. Enquanto o MEC tenta adequar os cursos abertos por meio de liminares às exigências da Lei do Mais Médicos, as instituições alegam que seus pedidos são anteriores à publicação do último edital e que a decisão judicial já lhes dá autonomia para funcionar, mesmo sem o sinal verde do ministério.
Neste mês, o STF determinou que todos os novos cursos de medicina devem ser abertos por meio de chamamento público, o edital dos Mais Médicos, e que o MEC analisasse todos os 195 processos restantes, observando as regras do edital. Isso não significa, porém, que esses cursos serão necessariamente autorizados, nem que os alunos das oito faculdades que funcionam via liminar terão suas vagas garantidas.
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