Após formar donos de unicórnios, USP quer estimular startups de ‘deep tech’; entenda o que é

Novas empresas miram desenvolver produtos de alta complexidade, como concreto com baixa pegada de CO2 e laser para tratar tumores cancerígenos

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Foto do author Roberta Jansen

Depois de formar vários donos de alguns dos mais famosos unicórnios (startups que atingiram valor de mercado superior a US$ 1 bilhão) brasileiros, a Universidade de São Paulo (USP) está voltada agora para as chamadas deep tech, empresas de tecnologia que buscam desenvolver produtos de alta complexidade. É o caso de um concreto com baixa pegada de CO2 e um laser para o tratamento de tumores cancerígenos, entre tantos outros.

O conceito de empresa unicórnio foi criado em 2013, quando essas startups eram tão raras que fazia sentido compará-las a uma figura mitológica; não mais de 40 em todo o mundo. Em dezembro de 2023, segundo a plataforma CB Insights, que monitora esse tipo de empresa, no entanto, já eram 1,2 mil no planeta, 24 delas no Brasil. Fundadores de pelo menos sete delas (IFood, Nubank, Gympass, 99, C6 Bank, Wild Life e Merama) são oriundos da USP.

USP de São Carlos desenvolve tecnologias óticas para o tratamento e diagnóstico do câncer  Foto: MAURICIO DUCH/ESTADÃO

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“No começo desta fase (2013-2019), quando todo o movimento das startups estava surgindo, tivemos bons resultados na criação efetiva das empresas (registro do CNPJ dos alunos ainda na graduação) e vimos os primeiros unicórnios muito de perto, surgindo no ‘nosso quintal’”, contou o professor André Fleury, do Departamento de Engenharia de Produção da USP e integrante da Agência de Inovação da universidade.

“Foi um momento oportuno da nossa história focado basicamente em serviço, em resolver problemas das pessoas, como criar um aplicativo de táxi, um delivery de comida, um cartão de crédito sem anuidade, essas coisas. E, claro, tivemos também uma safra espetacular de empreendedores”, continua Fleury.

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Não por acaso, neste período, por dois anos consecutivos, 2016 e 2017, a USP foi considerada a universidade mais empreendedora do Brasil.

“Conforme o movimento das startups ficou gigante e global, passamos a nos especializar em nossa atividade principal; a formação de empreendedores e empreendedoras de excelência”, explicou Fleury. “Para isso, procuramos levar os fundamentos do empreendedorismo para todos os alunos e alunas da USP e acompanhar aqueles que desejam entender o que é empreender, como empreender e como iniciar o empreendimento.”

Para estimular os alunos a criar e desenvolver ideias inovadoras, a universidade investe em disciplinas e cursos na área (administração financeira, fundamentos de marketing, gestão da inovação, empreendedorismo digital, entre outras), incentivos a empresas juniores, bolsas para estruturar novos negócios, maratonas de programação e incubadoras de empresas. Atualmente, estão incubadas na USP 236 empresas.

“Nesse meio tempo, o mercado mudou. O momento dos unicórnios de baixa tecnologia foi até 2021. Os juros subiram muito e o apetite dos investidores diminuiu. O segundo ponto é que as frutas mais baixas já tinham sido colhidas”, afirmou Fleury.

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“Agora, estamos voltados para as startups de tecnologia profunda. É uma lógica de empreendedorismo mais complexa do que a de fazer um cartão de crédito, por exemplo. Estamos subindo a régua, digamos assim, temos desafios maiores para chegar no mercado, como mais tecnologia e mais stakeholders.”

O professor Vanderlei Salvador Bagnato, do Instituto de Física da USP de São Carlos, coordena um laboratório de biofotônica, onde desenvolve tecnologias óticas para o tratamento e diagnóstico do câncer. Um deles, para o câncer de colo de útero, está prestes a ser incorporado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Atualmente trabalhando na Universidade do Texas, nos EUA, Bagnato desenvolve uma nova técnica para tratar o melanoma.

“É uma ação fotodinâmica”, explicou. “A fonte de luz ativa moléculas nas células tumorais que ajudam a eliminar o tumor.”

Daniel Varela e Lilian Moriyama da USP de São Carlos; unidade atua no desenvolvimento instrumentos e novos aparelhos na área médica Foto: MAURICIO DUCH/ESTADÃO

Um outro trabalho de ponta que está sendo desenvolvido sob a coordenação de Bagnato é o uso de uma fonte de luz para quebrar a resistência das bactérias a antibióticos; ou seja, elas voltam a ser suscetíveis ao remédio.

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Atualmente, há uma preocupação generalizada no meio médico por conta da tendência de muitas bactérias se tornarem resistentes aos medicamentos disponíveis, tornando-as letais.

Um levantamento da Universidade de Princeton, nos EUA, publicado na PLOS Medicine, estimou que a cada ano, em todo o mundo, as bactérias multirresistentes provocam 136 milhões de casos de infecção hospitalar – quatro milhões deles no Brasil. Se o trabalho de Bagnato for à frente, será uma contribuição para lá de valiosa para todo o mundo.

“Ajudei a formar de trinta a quarenta startups em São Carlos”, contou o especialista. “Empresas para o desenvolvimento de aparelhos para o tratamento da fibromialgia, para os sintomas do Parkinson, lasers para odontologia, foram criadas a partir dessas iniciativas.”

“Quando falamos em inovação, não se trata apenas de criação, da excelência científica, é preciso resolver um problema relevante”, disse. “Na área da saúde, o trabalho precisa ter uma relevância social e econômica, essa é uma boa inovação. Não adianta descobrir uma forma de diagnóstico e o tratamento custar US$ 200 mil. Meu negócio é desenvolver instrumentos, novos aparelhos, para essas soluções.”

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Professor da Escola Politécnica da USP e membro do Centro de Inovação em Construção Sustentável, Vanderley John também trabalha em uma inovação de grande potencial: reduzir em até 50% as emissões de CO2 do concreto. Atualmente, a indústria do cimento responde por 8% das emissões mundiais dos gases do efeito estufa, um percentual significativo. Isso ocorre porque o concreto é o material mais produzido do mundo: são 4,2 bilhões de toneladas por ano. E também porque para cada tonelada de cimento produzido há uma emissão de 800 quilos de CO2.

“Isso é feito reduzindo a quantidade de água necessária para fazer um concreto ‘trabalhável’”, contou o professor. “Com essa tecnologia, esperamos reduzir em 50% a pegada de CO2 do concreto.”

O professor dá os primeiros passos para a criação de uma startup como parte do programa Inova USP.

“Colocar esse tipo de tecnologia, que chamamos de hard tech, no mercado é difícil, demanda a existência de uma fábrica, de uma cadeia de suprimentos, estamos optando por montar uma startup com pesquisadores e bolsistas”, contou.

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“Atualmente nosso foco é no fortalecimento do empreendedorismo de base tecnológica, ligado principalmente aos projetos de pesquisa e aos alunos de pós-graduação”, resumiu André Fleury. “Já temos alguns anos neste contexto e alguns primeiros resultados, esperamos ver amadurecer e evoluir bastante nos próximos anos.”

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