Professor critica banca racial de cotas: ‘Em que ambiente científico se decide pela aparência?’

Wilson Gomes, da Universidade Federal da Bahia, vê discriminação contra os pardos e metodologia frágil em comissões de heteroidentificação; caso na USP motivou polêmica

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Foto do author Marcio Dolzan
Atualização:
Foto: UFBA
Entrevista comWilson GomesPesquisador e orientador no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal da Bahia

As bancas de heteroidentificação que barraram candidatos a cotas em universidades brasileiras estão “tirando apenas os pardos da fila”, para professor Wilson Gomes, pesquisador o Programa de Pós-Graduação em Comunicação na Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Recentemente, o caso de um estudante autodeclarado pardo que teve a matrícula barrada na Universidade de São Paulo (USP) teve ampla repercussão. A foto do jovem circulou nas redes sociais, sob críticas de “tribunal racial”.

Por outro lado, a USP e parte dos especialistas reafirmou o argumento de que o modelo foi criado para coibir fraudes em autodeclarações, que ocorriam com frequência antes das bancas. A avaliação com base nas características físicas foi chancelado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2017.

Os avaliadores das universidades se baseiam em critérios fenotípicos: o conjunto de traços observáveis. Isso significa que analisam cor da pele, cabelos e formato da boca e do nariz para indicar se o candidato deve ou não entrar por meio da cota racial.

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“Para todo mundo, vale a autodeclaração, menos para os pardos”, critica, Gomes vê como incoerência a autodeclaração ser aceita para definir a porcentagem de negros e pardos no Brasil, mas não na hora da matrícula nas universidades. “Você move o pardo para a caixinha que lhe interessa”, diz.

Para ele, o modelo dessas comissões de heteroidentificação também carecem de metodologia adequada. “Em que ambiente científico se permite decidir se um corpo social é merecedor de privilégio, de reconhecimento de dívida histórica, baseado só no olhar sobre a aparência?”, questiona.

Confira os principais trechos da entrevista:

Como avalia a decisão da USP de tentar barrar a matrícula de um aluno que se considera pardo porque, na avaliação da universidade, ele “não apresenta as características fenotípicas”?

No fundo, é uma questão que vem se arrastando, mas cada vez mais, talvez mais por uma conscientização: muitas das pessoas incluídas como negros se consideram pardas. Isso foi mostrado no último Censo. E o sentimento com relação às cotas muda justamente por isso - a ideia de que os negros são uma parcela menor da população, e que os pardos é que são a maioria.

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É bastante compreensível esse movimento da autocompreensão do Brasil como país mestiço. É uma história longa, que de repente foi abafada, negada e substituída pelo discurso à americana, sobre a composição racial da população brasileira. Se abre cota para pardos, é preciso deixar que participem; porque são os pardos a maioria no Estado, e não pretos. Por outro lado, há a tradição que quem faz parte dos tribunais que decidem quem é merecedor da cota. São ligados ao movimento negro, ligados a defender determinada ideologia, e que buscam nos pardos características de negros.

Alison dos Santos Rodrigues foi aprovado em Medicina, mas teve a matrícula negada pela USP Foto: Arquivo Pessoal/Laise Mendes dos Santos

Como assim avaliação do fenótipo? Mede o crânio? Fazer isso, aquilo? Não é genotípica, é fenotípica. Significa: vou olhando para a sua cara, e decido. Em que ambiente científico se permite decidir se um corpo social é merecedor de privilégio, de reconhecimento de dívida histórica, baseado só no olhar sobre a aparência? Ou se, em primeiro lugar, esses juízos sobre o nível de mestiçagem ou a classificação étnica ou racial não variassem, a depender do ambiente em que você nasce? Ricos brasileiros ficam chateados com os Estados Unidos quando descobrem que não são brancos. Não pode ser brasileiro e branco nos Estados Unidos; é uma casinha reservada aos anglo-saxões. Você descobre que, por diferentes lugares, há leituras diferentes das aparências.

Há entendimentos diferentes quanto à questão da aparência…

A USP e as universidades brasileiras, em geral, resolveram que a decisão baseada na aparência é aquela que decide se é uma pessoa merecedora de uma espécie de recompensa histórica, na tentativa de gerar uma política afirmativa. Mas no Brasil, se for ficar nessa definição básica de manual, não precisa nem sequer de um preto para fazer um pardo. No Brasil, para fazer um pardo, pode misturar dois pardos, ou pode misturar um pardo e um índio, por exemplo. Qualquer mistura no Brasil que envolva uma dessas três aí - pardos, pretos e índios - faz um pardo. Uma pessoa pode absolutamente ter cabelos lisos e ter uma pele morenada. Se meu irmão nasce loiro, e eu nasço assim, sou pardo e ele não é? Que universo é esse? É claro que o problema está na concepção.

Não estou discutindo nem sequer a justiça das cotas, se são justas ou não. Essa é a discussão que não está nesse momento. Já fui decisivamente a favor de cotas, hoje eu pensaria sobre isso. Ainda sou favorável, mas eu pensaria muito nos critérios de atribuição de cotas. Mas com relação ao juízo feito por tribunais raciais que olham para a sua aparência e dizem ‘não, esse cabelo não é, esse nariz não é’... Mas não é segundo quem? Por que que todos os pardos, todos os mestiços brasileiros, precisam ter nariz chato, precisam ter cabelo com determinada textura, uma cor de pele? Quem determinou isso?

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Em uma declaração à Justiça, a USP descreveu o aluno que teve a matrícula negada como “de pele clara”, com“boca e lábios afilados” e que o “cabelo raspado” do estudante impediu a banca de identificá-lo adequadamente.

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Não, não impediu a banca de identificá-lo adequadamente. Adequadamente é o que, nesse caso? Ele é o que ele é. Se a USP achar que deve avaliar se ele, de fato, é mestiço, que faça um exame de DNA. A USP tem um monte de laboratórios. Não sei onde isso ia levar, mas, de qualquer maneira, é isso. Pede para o cara mandar a foto dos pais. Há outros critérios que poderiam ser mais científicos e confiáveis se, de fato, quiser manter isso. Se não, diz que não tem cota para pardo aqui, só cota para preto. Banca essa decisão dentro da sociedade.

O cabelo podia ser liso, batendo nos ombros. O menino é filho de indígena com pardo, tem cabelos lisos: aí não é pardo? Pela própria definição que adotam aí, isso é um pardo. “Não pode ser, o menino tem olhos claros, lábios afilados”. Puxou a mamãe e não puxou o papai. A gente vai fazer o quê? Apaga o genitor se não for isso? Pardo não é justamente a mistura? Você quer ter vaga para o pardo, mas não cabe pardo! Só cabe se tiver traços negros. Se tem vaga para pardo, não pode ser assim. É questão de lealdade com a sociedade e de respeito à ciência.

O aluno barrado disse que sempre se considerou pardo, e por isso se autodeclarou como tal. Na avaliação do senhor, é possível uma comissão de análise considerar esse entendimento de outra forma?

O Brasil não tem uma autoridade racial que aponta o dedo se é pardo, preto, amarelo, se é isso, aquilo. O Brasil gosta de ficar nessas coisas, num critério, digamos, do século 16. No fundo, se trata de tirar os pardos, os mestiços, da fila, que deveria ser reservada, segundo esse movimento, para os negros, para os pretos.

Há um argumento de que, considerando o custo de eventuais erros e injustiças com a entrada de alunos por autodeclaração indevida (ou seja, fraudes), a comissão vale mais a pena. Como avalia? Como tornar a análise efetiva nesse tipo de processo seletivo?

Quantas pessoas foram retiradas da fila e qual é a composição étnica dessas pessoas? Pessoas brancas são retiradas dessa fila também? Porque todas as notícias que vejo são de pessoas mestiças. Não sei quantos brancos foram retirados dessa fila. É uma fila para retirar brancos ou para retirar pardos? Para todo mundo vale falar autodeclaração, menos para os pardos; a autodeclaração dos pardos você não precisa levar a sério. Quando precisa aumentar o numerador, para fazer os cálculos sobre quantas vagas vamos pedir para os negros, aí você move os pardos para cá. Quando você vai distribuir as vagas dessa cota, tira os pardos. Onde estava no contrato que tinha a ver com preto? ‘Não, mas é porque você não sofre racismo’, Está bem, mas a cota é para o pardo ou para quem sofre racismo? Inclusive, outras pessoas podem sofrer racismo, mas a cota é para o pardo. E como sabe que ele não sofreu racismo? Vai depender do ambiente que a pessoa vive. Em Salvador, por exemplo, pode ser que o sujeito preto não sofra racismo. Em Santa Catarina, o sujeito da minha cor poderia sofrer racismo. Depende muito de onde será julgado. Quem vai julgar? O cara vai fazer uma lista dos B.Os de toda vez que ele sofreu racismo para apresentar às comissões?

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