Um adolescente de 16 anos perdeu R$ 4 mil apostando em jogos no seu celular, usando o cartão dos pais. A família demorou a perceber o vício nas chamadas bets porque, como quase sempre acontece, os palpites começam com valores menores.
Outro jovem, de 15 anos, de uma escola de elite de São Paulo e apaixonado por futebol, achou divertido apostar a mesada junto com amigos e ver quem acertava mais o número de passes em um jogo. Numa escola pública, um aluno pediu Pix de R$ 3 para a professora para jogar nas bets.
Essas são histórias reais relatadas à reportagem. Os nomes são preservados para proteger as identidades dos adolescentes.
A proximidade com o futebol, os games e o celular fizeram com que as bets entrassem no universo infantil e adolescente com uma força que preocupa escolas, famílias e especialistas.
O maior risco é a forma como as apostas esportivas são apresentadas, o que atrai fortemente crianças e adolescentes. A publicidade ostensiva online e offline, com influenciadores e até medalhistas olímpicos, durante o jogo de futebol, na camisa dos times, nas redes sociais, normaliza as bets e faz com que pareçam saudáveis e divertidas.
A falta de regulamentação no País, que só agora começa a ser enfrentada, também permite que o público infanto-juvenil fique desprotegido e tenha acesso a uma atividade proibida para menores. O Instituto Jogo Legal, entidade que representa o setor, diz que o problema está nos sites irregulares.
Uma coisa que era do mundo adulto, concentrada em cassinos, de repente entrou na palma da mão, e ainda veio associada a uma paixão pelo futebol. É poderoso e avassalador
Fermín Damirdjian, orientador educacional da Escola da Vila
“Uma coisa que era do mundo adulto, concentrada em cassinos, mesa de boteco. De repente entrou no bolso, na palma da mão, e ainda associada à paixão pelo futebol, promovido pela TV no jogo. É poderoso e avassalador”, diz o orientador educacional da Escola da Vila Fermín Damirdjian, na zona oeste de São Paulo.
O colégio mandou este ano comunicado aos pais sobre o problema depois que soube do envolvimento de alunos e trabalha o assunto em projetos sobre saúde mental.
As pesquisas mostram ainda que crianças e adolescentes têm menor capacidade de controle de impulso e são mais suscetíveis a atividades que prometem recompensas rápidas e parecem emocionantes. Por isso, dizem especialistas, só educação financeira não resolve a questão.
Na Camino School, na Barra Funda, zona oeste, a direção começou a discutir o problema no meio do ano porque foi avisada pelas famílias sobre casos e percebeu que os professores ainda sabiam pouco do tema. Agora prepara uma formação para os docentes que inclua bets, como aulas para falar do vício e suas consequências.
“Cai muita coisa sobre a agenda das escolas, falta tempo. Nós, como sociedade, ainda estamos despreparados para essa juventude conectada e eles, desprotegidos”, diz Letícia Lyle, diretora da Camino. Na rede estadual paulista, discussões sobre bets foram incorporadas neste mês ao material didático online, na disciplina de educação financeira no ensino médio.
A preocupação com as apostas online esbarra ainda na falta de pesquisas sobre impactos nas populações. Mas estudos já mostraram que jovens têm mais possibilidades de se viciar em jogos de azar do que adultos pela imaturidade biológica e emocional.
O fato de os jogos estarem disponíveis em celulares, além de facilitar o acesso, incorpora uma camada de preocupação. Estudos recentes também já têm ligado o uso frequente de aparelhos e redes sociais ao vício e a problemas de saúde mental em crianças e adolescentes. Tem aumentado também o número de escolas que proíbem o uso.
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‘Sou bom nisso’, disse jovem de 15 anos
“O tempo todo, nas redes sociais, estão expostos a histórias de pessoas que teoricamente tiveram sucesso, sendo muito jovens, dizendo que ganharam dinheiro rápido. Começam a acreditar que é comum”, diz o pesquisador do Instituto Ame Sua Mente Gustavo Estanislau, psiquiatra da infância e da adolescência. “A bet aparece na vida dele, ajuda a chegar a um lugar sem muito esforço.”
A mãe de um jovem de 15 anos, de uma escola de elite da zona oeste paulistana, diz que o filho contou orgulhoso aos pais que tinha ganho dinheiro em apostas esportivas online. “Ele veio como se fosse legal, dizendo ‘sou bom nisso’!”, lembra. O menino usava parte da mesada em apostas - R$ 20, R$ 30, R$ 50, sucessivamente - que previam quantidade de passes em jogos de futebol.
“Comecei a jogar junto com meus amigos para ver quem ganhava mais, você não pensa direito, tem tanta propaganda. A gente pode apostar em um jogo na Turquia, na Inglaterra ou no que passa na sua frente, parece um game”, diz o garoto corintiano fanático. Os pais tiraram o acesso do menino ao Pix, conversaram sobre o vício e informaram à escola. Depois de jogar várias vezes durante um mês, ele não mais voltou a apostar.
Uma das referências mundiais em regulamentação do tema é um relatório do Parlamento da Austrália, de 2023. “O jogo online tem sido deliberadamente e estrategicamente comercializado juntamente com os esportes, o que o normalizou como atividade divertida, inofensiva e sociável”, diz o texto, acrescentando que isso “manipula” o público mais “impressionável e vulnerável”, as crianças e adolescentes.
O governo australiano ainda discute o que será tornado lei no país após recomendações do relatório, especialmente na publicidade. As apostas esportivas online cresceram em muitos países a partir da Copa de 2018.
Novas exigências
No Brasil, o Ministério da Fazenda está finalizando o cadastramento das bets com novas exigências, o que levará a cobrança de impostos e transferências bancárias apenas para as empresas regularizadas. Estima-se que 15% do mercado seja de sites sem registro, que permitem que apostadores joguem apenas com um número de celular.
Esse mercado movimenta entre R$ 60 bilhões e R$ 100 bilhões no País, quase 1% do Produto Interno Bruto (PIB). Há preocupação sobre endividamentos e com os recursos que deixam de ser gastos com bens e serviços.
“Criança e adolescente só vão apostar a partir de 1º de janeiro (quando entra em vigor a nova regulamentação) com a conivência do pai ou responsável”, diz o presidente do Instituto Jogo Legal, que representa o setor, Magnho José. Para ele, o problema são bets ilegais que não exigem CPF e data de nascimento do jogador. No entanto, a reportagem ouviu relatos de adolescentes que jogaram em plataformas de apostas autorizadas, burlando sistemas de registro.
Em junho, o Instituto Alana fez denúncia ao Ministério Público de São Paulo porque encontrou dez perfis de influenciadores mirins, entre 6 e 17 anos, que fazem propaganda de sites de apostas. Segundo a entidade, os perfis ainda estão ativos.
Procurada, a Meta, plataforma responsável por abrigar os perfis em redes como o Instagram, afirma que suas políticas “não permitem conteúdos potencialmente voltados a menores de 18 anos que tentem promover jogos online envolvendo valores monetários” e diz remover posts desse tipo.
Veja dicas para lidar com o tema:
- Compartilhe relatos ou histórias de quem teve problemas com apostas (perdeu muito dinheiro, vício ou efeitos na saúde mental)
- Não trate apostas como algo divertido
- Não discuta pretensas habilidades para se conseguir ganhar mais facilmente
- Atenção à cultura de apostas de adultos na família, isso leva a uma naturalização para crianças e adolescentes
- Fale de riscos, mas com equilíbrio e bom senso. Ser alarmista com tudo pode fazer a criança ou adolescente ter medo de tudo ou, por outro lado, querer testar os pais
- Discuta educação financeira e fale do valor do dinheiro, de como ele é ganho e da importância de se poupar o futuro
- Acompanhe de perto as crianças e adolescentes em celulares e redes sociais
Meninos mais expostos
Resolução do Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária (Conar), de fevereiro, diz que anúncios de apostas online precisam indicar que a atividade é restrita a menores e não devem usar “símbolos, recursos gráficos e animações, linguagem, personalidades ou personagens reconhecidamente pertencentes ao universo infanto-juvenil”. E a propaganda só pode ser feita por “influenciadores que tenham adultos como seu público-alvo”.
Para a coordenadora do eixo digital do Instituto Alana, Maria Mello, as regras não são suficientes. Ela se preocupa especialmente com meninos, pela forte ligação com o futebol, além da falta de controle efetivo do sites de apostas para verificação etária.
“É preciso uma ação mais sistêmica”, diz. Além da fiscalização e regulamentação eficazes, Maria recomenda campanhas para famílias e escolas sobre como falar do assunto.
Questionado sobre o atrativo das bets para crianças e adolescentes principalmente pela ligação com o futebol, Magnho José diz que as bets seguem as regras de publicidade para o público. “O problema não é o jogo. São esses influenciadores que passam mensagem de que você vai ficar rico. O jogo é entretenimento e nada mais que isso, não é meio de vida”, afirma.
Em nota, o Ministério da Educação (MEC) diz que a educação financeira faz parte da Base Nacional Comum Curricular, que as transformações com o uso de novas tecnologias são “imprescindíveis para inserção crítica e consciente” e devem ser incorporadas pelas redes de ensino e escolas. Afirma ainda induzir a abordagem disso a partir de ações como a Estratégia Nacional de Educação Financeira (Enef) e formação de professores.
Já a pasta da Saúde afirma ampliar o atendimento para problemas de saúde mental, incluindo jogo patológico. E diz que foram habilitados mais novos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) este ano, sendo 314 exclusivos para crianças, adolescentes e jovens.
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