BRASÍLIA - A Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira, 18, o texto-base do projeto de homeschooling, ensino em casa, uma das bandeiras do presidente Jair Bolsonaro (PL). A proposta foi aprovada, diante de pais e crianças que estavam na galeria do plenário da Casa, com 264 votos favoráveis e 144 contrários. Houve 2 abstenções. A votação dos destaques - sugestões de mudança ao texto-base - ficou para esta quinta-feira, 19.
A sessão durou cerca de quatro horas. Deputados que apoiaram a proposta afirmaram que um dos objetivos do projeto é dar segurança jurídica e tirar as famílias da ilegalidade.
O texto aprovado inclui uma emenda apresentada pela deputada Bia Kicis (PL-DF) em plenário e acolhido pela relatora Luisa Canziani (PSD-PR). Kicis propôs "evidenciar" que os pais ou responsáveis que optarem pela educação domiciliar não incorrerão em crime de abandono intelectual de seus filhos ou dependentes.
Durante a sessão, o deputado João Carlos Bacelar (PV-BA), contrário ao homeschooling, afirmou que a proposta vai aumentar a desigualdade educacional no País. O parlamentar classificou o projeto como "negacionista" e um "retrocesso para a educação e para a democracia".
"A educação domiciliar desvaloriza a profissão do docente", afirmou. "(A ultra direita) quer entregar seus filhos para quem não foi formado para ensinar."
O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (Progressistas-PR), afirmou que o ensino domiciliar "está criminalizado no País". "Uma família de pessoas que trabalham no circo, de pessoas que têm uma vida nômade, recebem a visita do Conselho Tutelar, recebem a visita da polícia, para que seus filhos vão para a escola, mas eles não têm como fazer isso", disse. "E tem outras famílias que querem se dedicar à educação dos seus filhos e o fazem com muita presteza."
A proposta aprovada pela Câmara altera um trecho da lei que estabelece as diretrizes e as bases da educação nacional. O projeto ainda precisa passar pelo Senado. Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou o modelo de ensino domiciliar constitucional, mas disse que caberia ao Congresso definir as regras. Hoje, pela Constituição, a escola é obrigatória dos 4 aos 17 anos.
O projeto de lei votado na Câmara prevê que os pais devem ter ensino superior ou ensino tecnólogo para ensinar em casa. Há outros requisitos, como os pais ou responsáveis não poderem ter antecedentes criminais e a obrigação de matricular o filho em instituições de ensino para avaliações periódicas, com o objetivo de verificar a qualidade das aulas oferecidas à criança ou ao adolescente.
A proposta admite ainda que o homeschooling seja feito por terceiros, os chamados preceptores. A figura do preceptor é duramente criticada por especialistas em educação. A Frente Nacional das Escolas Particulares (FENEP) alerta que a possibilidade de um terceiro ser o responsável pelo ensino domiciliar pode abrir caminho para que qualquer pessoa monte uma escola informal ou para que qualquer um se torne professor de escola básica da noite para o dia.
"(O relatório) abre espaço para expressiva ampliação da modalidade, a partir de uma terceirização descabida, com indesejável precarização do processo educacional, com prejuízos imensuráveis às nossas crianças", afirma a FENEP.
Entre as entidades contrárias ao projeto, está o Todos pela Educação. A instituição defende o "papel da escola na formação e socialização de jovens e crianças e as limitações estruturais de monitoramento e regulação de tal prática".
"Em vez de propor o homeschooling no País, caberia ao Governo Federal liderar a inserção de temas estruturantes para a Educação Básica, essenciais para alcançarmos uma Educação Básica de qualidade, especialmente frente ao cenário atual pandêmico", critica o Todos pela Educação.
Não há estatística oficial sobre famílias adeptas do modelo, que é reconhecido ou adotado em mais de 60 países. A Associação Nacional de Ensino Domiciliar (Aned), em 2018, contabilizava cerca de 15 mil estudantes de 4 e 17 anos educados em casa. O Brasil tem 46,7 milhões de alunos na educação básica. Defensores da medida dizem que isso daria segurança jurídica aos pais que têm condições de educar os filhos em casa e garantiria um modelo de fiscalização pelo poder público.
“Este é a vitória da liberdade. Onde não há liberdade, não há educação”, comemora Rick Dias presidente da Aned. Para ele, a aprovação do PL é uma vitória tanto para os pais educadores quanto para os responsáveis que enviam seus filhos à escola. “Porque não são mais obrigados a enviar”.
Rick diz que passar pela Câmara dos Deputados era a parte mais difícil e foi superada. “Não vai emperrar no Senado. Sobre a nossa articulação política, preferimos ficar em segredo. Os inimigos da educação domiciliar ficam atentos à nossa estratégia. Vamos pensar e articular.”
Coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda classifica como retrocesso a regulamentação do ensino domiciliar. A representante entende que o perfil de quem votou a favor do texto é contraditório. Uma vez que são os mesmos deputados favoráveis a políticas de austeridade e contenção de gastos.
“Eles aprovaram um projeto de lei que vai exigir novos gastos porque teremos de ter um sistema paralelo de organização, implementação, monitoramento e avaliação.Além disso, é muito difícil avaliar uma política que acontece a nível privado. Isso em um cenário onde nós já estamos com R$63 bi a menos na Lei Orçamentária, sem contar nos impactos da covid”, pontua.
Raquel Franzim, diretora de educação e culturas infantis do Instituto Alana, ressaltou o posicionamento contrário à matéria de centenas de entidades educacionais e pelo direito infantojuvenil. “O direito da criança e do adolescente fica comprometido. Nós vivemos um período desafiador com pandemia, que só aumentou as desigualdades.”
Para ela, a matéria não tinha nenhuma prioridade. Franzim considera mais importante os esforços para priorizar a votação do Sistema Nacional de Educação(SNE), além dos esforços de colaboração intersetorial entre os entes federados para recuperar as lacunas na sociedade em decorrência da pandemia.
“Há um consenso entre as organizações da educação e no campo do direito sobre o retrocesso. Certamente, isso vai ser ponto de atenção e, de alguma maneira, esforço para recuperar, seja no senado ou na esfera jurídica”, projeta.
A falta de regulamentação no Congresso Nacional tem sido um dos argumentos para que tentativas de implementar a educação domiciliar no País sejam barradas em Estados e municípios. A Assembleia de Santa Catarina, por exemplo, aprovou lei para permitir homeschooling em novembro de 2021. O Tribunal de Justiça, porém, suspendeu a lei, a pedido do Ministério Público.
No Paraná, a tentativa de criar regra local também parou no Tribunal de Justiça. Por unanimidade, a Corte decidiu, em março, que era inconstitucional a lei aprovada pela Assembleia seis meses antes. O entendimento dos magistrados foi de que o assunto precisa de regulamentação federal.
A Câmara de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, aprovou projeto semelhante. A prefeitura prometeu criar uma mesa para discutir, mas não deu prazos.
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