A Justiça decidiu anular o processo administrativo contra o ex-aluno de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Victor Henrique Ahlf Gomes, de 22 anos, exigindo que ele cole grau e receba o certificado de conclusão do curso. O estudante foi expulso pela faculdade, em um caso que envolve acusações de importunação sexual, perseguição, violência de gênero contra uma ex-namorada e agressões de discriminação de cunho racista e nazista. Ele nega todas as acusações e alega “perseguição política”.
A USP informou que vai recorrer da decisão por meio da sua procuradoria-geral. Procurada, a defesa de Ahlf Gomes afirmou que a decisão da Justiça foi “correta” e que “analisou de forma precisa os elementos do processo administrativo”.
Mesmo com a sentença da Justiça, que saiu nesta segunda-feira, 24, a Faculdade de Direito manteve a expulsão do jovem em votação nesta quinta-feira, 27.
A congregação, órgão máximo da faculdade, é composta por cerca de 40 membros, majoritariamente professores de Direito da escola, como docentes titulares, chefes de departamento, membros da direção. Esse colegiado analisou o recurso da defesa que pedia a anulação da decisão.
As esferas judicial e administrativa são autônomas. O entendimento da direção da Faculdade de Direito da USP é de que a determinação judicial pode anular os encaminhamentos dados no processo administrativo, mas depois que forem esgotados os recursos nos tribunais.
Para a defesa, a decisão judicial deveria se sobrepor à administrativa. “Espero que a Faculdade de Direito tenha humildade para reconhecer as suas falhas e corrigi-las”, disse a advogada Alessandra Falkenback de Abreu Parmigiani, que defende o aluno.
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Só três integrantes da congregação votaram pela reversão e 33 foram a favor da expulsão. Outros três se abstiveram e um foi favorável, mas com penas mais brandas. O caso já havia sido apreciado em 2023 e em 2024 pelo colegiado e nas duas vezes a decisão foi a mesma.
É a primeira vez na história que a faculdade de Direito do Largo São Francisco expulsa um aluno.
O processo corre em sigilo, mas o Estadão teve acesso à decisão da juíza Gilsa Elena Rios, da 15ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo. A magistrada afirma que “a pena de eliminação/expulsão não é razoável e proporcional”. E mantê-la “acabaria por retirar o patrimônio educacional e histórico acadêmico conquistado”. Ela ainda diz que USP precisa “arcar com as custas, despesas processuais e honorários advocatícios”, fixados em 10% sobre o valor da causa.
Ainda conforme a juíza, a USP “deverá providenciar a colação de grau do autor, conceder o certificado de conclusão do Curso de Direito e o respectivo diploma”.
Quais foram as acusações? Como foi o processo?
Durante o processo todo, que começou em 2022, Ahlf foi mudado de turno por exigência da USP para se manter afastado da menina, mas com decisões judiciais cumpriu seus créditos e fez inclusive seu trabalho de conclusão de curso (TCC), no qual tirou nota 10. Ele se formou no fim do ano passado e colaria grau em fevereiro.
A conclusão dos professores que conduziram a análise do caso na faculdade é a de que o estudante cometeu “atos extremamente graves que, para além de violarem preceitos éticos fundamentais da universidade, abalaram sobremaneira a comunidade acadêmica da FDUSP”.
Tudo começou quando Ahlf Gomes, após o término do namoro, acusou a jovem de “divulgar relatos caluniosos” aos amigos em comum. A intenção, segundo ele, era de prejudicar a sua imagem. No entanto, a faculdade investigou mensagens de WhatsApp, ouviu mais de 20 pessoas e concluiu que a ex-namorada era, na verdade, a vítima. O caso então se inverteu e a instituição abriu processo administrativo disciplinar contra o aluno.
Em depoimento para a comissão instaurada na faculdade para apurar o caso, a aluna contou que foi forçada a permanecer em um carro com Ahlf enquanto ele se masturbava no estacionamento do Shopping Pátio Higienópolis, o que é caracterizado como crime de importunação sexual. Após esse episódio, ela teria pedido a ele que não mais a procurasse, segundo indicam mensagens trocadas pelos dois.
Poucos dias depois, de acordo com a ex-namorada e com amigos dela, Ahlf teria a agredido fisicamente na própria faculdade, segurando seu braço durante uma aula da disciplina de Direito do Trabalho e exigindo uma conversa do lado de fora da sala. Ela conta ainda que passou a ter medo de frequentar a faculdade, “relatando ameaças e mensagens insistentes”, e pedia a amigos para ser buscada “no final das aulas, para que não saísse desacompanhada”.
Para a juíza, não houve importunação sexual porque “todo o contexto (...) ocorreu fora da universidade e sob o aspecto privado dos envolvidos, que estavam em situação de relação amorosa pendente de resolução, se reatavam ou não o namoro”. “O que faltou, provavelmente pela ausência de maturidade de ambos, foi uma conversa franca entre o casal”, diz a sentença.
Afirma ainda que se aluno “tivesse o perfil de “stalker”, teria continuado a alegada perseguição, o que não ocorreu, pois faz três anos que ambos não mantêm contato”.
Para Gilsa Elena Rios, “ainda que as conversas mantidas com a aluna, em caráter privado por Whatsapp, possam ter natureza reprovável sob o aspecto social, não se revestiu de conduta que tenha trazido danos irreversíveis aos envolvidos”.
Mensagens de WhatsApp aos quais o Estadão teve acesso e depoimentos de alunos indicam que ele fez comentários racistas e de cunho nazista contra outra estudante negra. O relatório da USP cita que Ahlf teria realizado “depreciação jocosa da aparência e da residência de uma estudante negra à luz de seus ‘olhos arianos”, por ela não ter “o sangue puro dos alemães”.
Na sentença, a juíza afirma que as acusações de racismo não foram comprovadas porque foram apresentadas “conversas de WhatApp de forma unilateral pela vítima”. Ela diz também que os depoimentos dos alunos “divergiam entre si”.
Nesta quinta-feira, um grupo de alunos da São Francisco fez um protesto durante a reunião da congregação pedindo que a expulsão se mantivesse. Eles carregavam cartazes com a inscrição “abusador não é doutor”.
A advogada afirma que ele se sente “injustiçado e perseguido politicamente, por diversidade de ideologia”. “A sentença analisou de forma precisa e detalhada os elementos do processo administrativo, a forma como foi conduzido, tendo até transcrito depoimentos de testemunhas de acusação comprovando que não corroboravam os fatos alegados pela aluna”, afirma Alessandra.
A sentença cita duas testemunhas que negam ter visto qualquer violência da parte dele durante a aula ou que dizem que a própria aluna teria desmentido acusações posteriormente em conversas. A jovem foi procurada pela reportagem, mas não respondeu. Seu nome foi preservado por proteção à vítima.
O deputado estadual Leonardo Siqueira (Novo) enviou nesta semana um requerimento para a Secretaria de Ciência e Tecnologia do Estado pedindo esclarecimentos sobre pontos do processo administrativo. Entre eles, questiona se a comissão da faculdade “tem competência para investigar a vida de qualquer investigado para contextos externos à instituição” e ainda por que a questão não foi encaminhada ao Ministério Público.
Procurada, a secretaria informou que remeteu os questionamentos à USP, que apesar de ser uma instituição estadual, tem autonomia administrativa.