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Cigarro, bebida e aparelho de ‘gatonet’: como universidades usam apreensões da Receita na pesquisa

Bebidas alcóolicas viram álcool em gel e cigarros se tornam adubo; programa envolve mais de 500 instituições de ensino e pesquisa do País para reaproveitamento de mercadorias apreendidas

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Foto do author Roberta Jansen
Atualização:

Uma parceria inédita firmada entre a Receita Federal e instituições de ensino e pesquisa de todo o País promove o aproveitamento cada vez mais eficiente de toneladas de mercadorias apreendidas diariamente e que, até pouco tempo atrás, tinham de ser totalmente destruídas. Para além da doação pura e simples, a receita aposta em inovação. Por meio desse programa, aparelhos de “gatonet” estão sendo transformados em microcomputadores; bebidas alcóolicas em álcool gel e cigarros em adubo para plantações.

Para se ter uma ideia dos volumes arrecadados pela Receita Federal, no ano passado o total calculado em reais chegou a R$ 3,8 bilhões em mercadorias retidas no controle aduaneiro e também em operações de combate ao contrabando. Dentre os produtos mais apreendidos estão os cigarros (22,7% do total), eletroeletrônicos (16,82%), peças de vestuário (5,27%), bebidas alcoólicas (2,19%), perfumes (0,91%), entre outros. Antes das parcerias, a maior parte das mercadorias apreendidas era destruída.

Mercadorias apreendidas pela Receita Federal no Porto de Itaguaí: parcerias com universidades estão reaproveitando vários itens Foto: João Laet/Estadão

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A ideia do reaproveitamento de mercadorias surgiu durante a pandemia de covid-19, quando começou a faltar álcool em gel no comércio e sobrar bebidas alcóolicas apreendidas nos depósitos da Receita Federal. O Instituto Federal do Sul de Minas foi uma das primeiras instituições acionadas: seria possível transformar toda aquela bebida em álcool em gel?

“Desde 2020, transformamos 44 mil litros de bebidas alcóolicas em álcool em gel”, contou o reitor do instituto, Cléber Ávila. “Há pouco tempo começamos também a transformar vinho em geleia.”

Os produtos são usados pela própria instituição ou doados para escolas, repartições públicas, asilos e hospitais.

Na esteira do álcool em gel vieram os aparelhos chamados oficialmente de TV Box, que permitem o acesso livre às plataformas de streaming e são proibidos no Brasil. A novidade, em pleno período do confinamento, bateu recorde de apreensão.

Atualmente, estima-se que existam nos depósitos da Receita Federal nada menos que 2,5 milhões de aparelhos desse tipo. O volume se transformou num grande desafio para o reaproveitamento, em vez da destruição pura e simples.

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“Esse é um dos meus projetos preferidos: a transformação das TV Box em mininotebooks”, contou a gerente nacional do programa Cidadania Fiscal, da receita, Ana Paula Sacchi Kuhar.

“Na época da pandemia, apreendemos um número recorde desses aparelhos e precisávamos definir o que fazer com eles. Porque, até para destruir, nós teríamos que arcar com os custos. Um colega entrou em contato com uma universidade e surgiu essa ideia de transformá-los em computador. Desde 2021, já transformamos milhares de TV Boxes em computadores e entregamos para escolas públicas.”

No processo, os especialistas removem o software dá acesso ilegal aos satélites e bloqueiam o aparelho para que não seja utilizado na captura de sinal. Feito isso, o aparelho pode ser reconfigurado para funcionar como um microcomputador, após a instalação de um sistema operacional e de softwares educacionais gratuitos.

“São muitos modelos diferentes de TV Box e, para cada um, temos que ter um protocolo de descaracterização”, contou o professor Leonardo Henrique Soares Damasceno, da Universidade Federal de Alfenas, em Minas Gerais, que participa do programa.

“Cada protocolo que eu desenvolvo jogo no grupo das instituições de ensino que participam do programa e todas elas podem replicar, a gente vai se ajudando dessa forma.”

A ideia do reaproveitamento de mercadorias surgiu durante a pandemia de covid-19 Foto: João Laet/Estadão

Cigarro e tabaco irregulares são apreendidos diariamente e também eram inteiramente destruídos. Somente no ano passado foram 171 milhões de maços de cigarros – a grande maioria vinda do Paraguai.

Ainda nas dependências da Receita Federal, os cigarros são colocados em uma máquina capaz de separar as embalagens do tabaco e do filtro dos cigarros – numa velocidade de aproximadamente mil maços por hora.

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O objetivo dessa separação é o reaproveitamento do material: o tabaco é enviado a instituições parceiras e usado em processos de compostagem, para a produção de adubo e inseticidas; os filtros são usados em compostos para fazer telhas e blocos de construção; e os plásticos são enviados para reciclagem. Apenas no Instituto Federal do Sul de Minas, desde 2021 foram 440 toneladas de tabaco transformadas em adubo.

“Com isso, já tem muitos institutos federais que não precisam mais gastar parte de seu orçamento com adubo e inseticida para seus cursos de agronomia”, afirmou Ana Paula Sacchi Kuhar. “Elas já conseguem produzir o suficiente para o próprio uso.”

As apreensões de cigarros eletrônicos vêm crescendo nos últimos cinco anos, atingindo um total de R$ 61 milhões no ano passado. Não por acaso, várias instituições de ensino já estão desenvolvendo tecnologias para transformar o cigarro eletrônico – que é proibido no Brasil – em algum outro produto.

Algumas das ideias já em desenvolvimento são usar o líquido para produtos de perfumar ambientes e as baterias em outros eletroeletrônicos.

Uma outra parceria importante da Receita é feita com presídios femininos para o reaproveitamento de roupas de grifes estrangeiras ou falsificadas que entraram de forma irregular no Brasil. Alunos de cursos de moda treinam as detentas para descaracterizar as peças para que elas possam, posteriormente, ser doadas.

“Já doamos toneladas de peças de roupas em casos de calamidades públicas como enchentes, para as pessoas que perderam tudo”, lembrou Ana Paula, da Receita Federal.

Há ainda ações pontuais, dependendo do tipo de mercadoria que aparece no depósito. No ano passado, por exemplo, um carregamento de cabelo humano no valor de R$ 54 mil não foi requisitado por ninguém depois de passar mais de três meses no porto de Itaguaí. Os 65 quilos de cabelo foram então doados para a ONG Cabelegria, de São Paulo, que confecciona perucas para pacientes com câncer.

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O programa que começou timidamente como um projeto piloto já envolve mais de 35 instituições de ensino no Brasil todo.

“É muito importante para as comunidades locais, para os estudantes, para o custeio dos institutos federais, para todos”, resumiu Cléber Ávila.

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