Se a pandemia da covid-19 já se encontra controlada atualmente, o mesmo não se pode dizer das sequelas de viver de forma isolada, convivendo com a tensão de uma doença letal e, no caso de crianças e adolescentes, de passar parte do processo de aprendizagem longe das escolas - e, ainda por cima, com a missão de aprender pelo intermédio de telas de celulares e computadores.
Atentas a isso, Roberta Bento e Thaís Bento uniram a experiência que as duas acumulam como educadoras, e especializadas em aprendizagem na relação família-escola, para escrever o Guia para família parceira da escola no pós-pandemia, livro lançado em outubro deste ano com o apoio do Instituto Ayrton Senna.
“Já há pesquisas que mostram que a motivação para os estudos depende de três necessidades básicas: autonomia, o sentimento de competência, e o sentimento de pertencimento. E elas foram muito afetadas durante a pandemia”, diz Roberta Bento. “Não há um botão que faça a criança voltar ao normal de repente, elas ainda enfrentam sequelas desse tempo e desse ambiente onde elas ficaram fechadas”, acrescenta.
A obra reúne dicas práticas de como os pais podem adequar uma rotina de modo a contribuir com um processo de aprendizagem mais prazeroso e saudável para os filhos, usando as tecnologias atuais como aliadas e sem cair no erro de ter comportamentos altamente exigentes que façam dos pequenos uma máquina de produtividade.
A boa notícia é que, para isso, mãe e pai precisam - e devem - se livrar da necessidade de serem os professores dos filhos dentro de casa. “Quando os adultos ficam desesperados para entender um conteúdo para os filhos, eles deixam de fazer aquilo que podem ajudar mais, que é organizar uma rotina na casa para essa hora do estudo acontecer”, afirma Taís Bento, fundadora junto com a Roberta, sua mãe, do site SOS Educação.
Em conversa com o Estadão, elas também comentam sobre os principais erros que os pais cometem nesse processo de aprendizagem, “mesmo que sejam na melhor das intenções”; elencam as estratégias mais eficazes para uma melhora de rendimento escolar - “o que não significa focar em resultados”; e afirmam de forma categórica: “Antes de cuidar dos filhos, os pais também precisam se cuidar”.
Como vocês descrevem esse mundo pós-pandemia do ponto de vista da aprendizagem das crianças, e quais são os principais desafios encontrados pelos pais com relação à educação dos filhos?
Roberta Bento: O pós-pandemia é como um holofote que iluminou questões que já vinham aparecendo aos poucos, como a dificuldade de concentração e a baixíssima autonomia das crianças e dos adolescentes. Antes da pandemia, se essas crianças já estavam recebendo tudo muito pronto e já se movimentavam e saiam pouco na rua, isso acabou vindo de uma forma muito contundente quando a pandemia fechou essa família dentro de casa. Essa criança passou a não saber a conviver com os colegas dentro da escola e os pais tiveram ainda mais a necessidade ou ansiedade de fazer tudo que eles já faziam pelos filhos, como assistir às aulas, fazer a lição de casa e até a fazer a prova da escola para os filhos.
Já há pesquisas que mostram que a motivação para os estudos depende de três necessidades básicas: autonomia, o sentimento de competência, e o sentimento de pertencimento. E elas foram muito afetadas durante a pandemia. Então, quando as crianças e adolescentes voltaram para a escola, eles voltaram já mais fechados, com a autoestima abalada porque aprender pelas telas foi muito difícil. E não há um botão que faça a criança voltar ao normal de repente, tanto no aspecto cognitivo como na parte emocional. Então elas ainda enfrentam sequelas desse tempo e desse ambiente onde elas ficaram fechadas, que acabaram não suprindo essas três necessidades.
Taís Bento: Ainda existe o contexto no qual os professores também estão com sequelas do período de pandemia, por conta da sobrecarga que tiveram do trabalho e de todo emocional prejudicado de levar a sala de aula para dentro de casa. Pesquisas internacionais mostram que a saúde mental dos professores, mesmo em um país de primeiro mundo, onde existe valorização e reconhecimento da classe, também está ainda muito abalada.
Quais os principais equívocos que os pais, ou adultos responsáveis pelo cuidado dessas crianças, acabam cometendo sem perceber nesse processo de desenvolvimento dos filhos?
Taís Bento: A maioria desses comportamentos são feitos na melhor das intenções. Mas, por exemplo, os pais usam muito a frase: “Filho, eu cuido de tudo, e a sua única obrigação é estudar”. Ao dizer para essa criança, adolescente, que a única obrigação dela é estudar, eles não terão a oportunidade, dentro da rotina da família, de desenvolver habilidades, como responsabilidade e autoestima, que eles precisam para aplicar justamente na hora de estudar. Além disso, se a única responsabilidade desse filho ou filha é estudar, a relação deles como aluno, com a escola e com os estudos, fica muito pesada porque não houve o aprimoramento da capacidade de foco e concentração necessários para estudar. Então, o primeiro equívoco é não compartilhar com os filhos as responsabilidades da casa.
Roberta Bento: E um segundo ponto é o quando os pais evitam que os filhos experimentem emoções como tristeza, frustração e tédio. São emoções que fazem parte da nossa vida, a gente precisa ter tristeza para aprender o que é ser alegre. Mas, ao tentar evitar o tempo todo as frustrações, os pais ficam se cobrando e se culpando e perdendo a energia que precisam para ajudar essas crianças em um desenvolvimento pleno e saudável.
Isso acaba parecendo de uma forma clara no uso do celular e exposição às telas. A gente ouve de pais que eles até têm consciência de que o filho não deveria passar tanto tempo na internet, mas quando eles dizem que está na hora de parar de usar os aparelhos, os filhos falam que ficam entediados. E aí eu os pais ficam com pena e deixam as crianças continuarem usando. Assim, a gente vai gerando um contexto em que essas crianças acabam se tornando tanto dependentes do celular, como incapazes de lidar com os desafios do mundo real.
Não há um botão que faça a criança voltar ao normal de repente. Elas ainda enfrentam sequelas desse tempo (de pandemia) e desse ambiente onde ficaram fechadas.
Roberta Bento
Quais estratégias podem ser usadas para tornar o ensino mais prazeroso, e como os pais podem fazer isso sem ultrapassar o limite de pressionar a criança por um excesso de produtividade?
Roberta Bento: Tem até uma frase que é a cultura do Bestinho (adaptação da para “o melhor”, em inglês), em que a mãe e o pai querem que o filho seja o The Best em tudo. E isso se torna uma pressão para criança como um fator que vai baixando autoestima, porque ninguém é bom em tudo. A sugestão para os pais é que não apostem no resultado, mas sim no esforço que o filho coloca diariamente para conseguir dar conta das responsabilidades. Na hora da lição de casa, não é para cobrar se a criança escreveu todas as palavras corretamente ou acertou todas as contas. Mas é para ter certeza que ela sentou para estudar, que fez toda a lição e marcou as dúvidas para perguntar para as professoras depois.
O elogio e a declaração clara de que o pai e a mãe e a mãe sentem orgulho desse filho têm de ser impostos quando a criança cumprir a responsabilidade dela como estudante. A consequência disso será um desempenho melhor lá no final das notas na prova. Quando os pais focam no resultado, acabam conseguindo um efeito reverso do que esperam. Esse orgulho não tem que ser focado na nota, mas no dia a dia da relação do filho e da filha com os estudos. Todos os retornos que nós recebemos das famílias que fazem esse ajuste são muito positivos.
Vocês citam a importância de os pais não assumirem o papel dos professores em casa. Qual a postura mais recomendável na hora de ajudar no ensino do filho?
Taís Bento: O que a gente fala muito para os pais é que o papel da família é o ajudar a criança/aluno na organização de um horário de estudo, a preparação do ambiente, cuidar para que a televisão não esteja ligada. Essa questão da rotina é papel da família. Mas, o conteúdo, não é algo que os pais precisam ir atrás. Os pais precisam usar a escola como parceira para isso. Quando os adultos ficam desesperados para entender um conteúdo para os filhos, eles deixam de fazer aquilo que podem ajudar mais, que é organizar uma rotina na casa para essa hora do estudo acontecer.
Roberta Bento: Se fosse fazer uma analogia, é como se o pai fosse um técnico de futebol, um nadador, que guia no sentido de orientar qual a direção, onde é necessário praticar mais, mas não vai nadar ou correr no lugar do atleta. Vai ser a pessoa que guia, mas quem faz é o próprio filho.
O livro comenta também sobre o temor que os filhos têm de decepcionar os pais, como tirar uma nota baixa por exemplo. O que pode ser feito em casa para evitar esse sentimento?
Roberta Bento: Tem muita oportunidade no dia a dia da família que acaba sendo perdida para evitar que isso aconteça. Quando a família joga ou brinca junto, por exemplo, e a gente fala para os pais que não precisa deixar a criança ganhar sempre. É importante que o pai, a mãe, ganhe de vez em quando, mesmo que o filho fique chateado. Mas o principal é que os pais observem e elogiem algo que os filhos fizeram. Qual a mensagem por trás disso? Que os filhos entendem que os pais não estão focando se ele conseguiu ganhar o jogo, mas no esforço e em outros acertos.
Os pais precisam usar a escola como parceira. Quando os adultos ficam desesperados para entender um conteúdo para os filhos, eles deixam de fazer aquilo que podem ajudar mais, que é organizar uma rotina na casa para essa hora do estudo acontecer.
Taís Bento
Na hora da refeição, é muito comum os filhos de 11, 12, 13 anos de idade, a própria mãe ou pai servir o prato de comida. E a gente fala que, desde muito pequenos, eles são capazes de colocar a própria comida no prato. Se cair - como acontece até com a gente, adultos - a gente diz para a criança: “Não tem problema nenhum, é só a gente juntar de novo, limpar. Mas que orgulho, muito legal a sua tentativa de se servir sozinho”. É aproveitar situações como essa. É o esforço que ele faz e ele não se recusar a tentar que geram o orgulho, e não necessariamente o resultado final. E uma estratégia que funciona muito é fazer esse elogio no momento em que o filho tiver esquecido que ele fez, porque ele vai deixar de pensar que só vai ser amado, respeitado, querido se ele acertar tudo o que for fazer.
Taís Bento: E nos próprios elogios, é importante focar no empenho e não no desempenho. Então, é prestar atenção no dia a dia dele de estudo, no esforço que ele coloca na tarefa e não só na nota que o filho tirou da prova.
Vocês usam analogia interessante para se referir à tecnologia, como se ela fosse “um calmante que esconde os problemas que a família precisa encarar”. Como os pais podem usar essa tecnologia a favor do aprendizado do filho, e quando tomar cuidado para esse uso não se exceder?
Taís Bento: A pergunta que a gente mais escuta é: “Qual o tempo ideal para o meu filho passar nas telas sem prejudicá-lo? A gente fala que esse tempo ideal, ele é medido por alguns pontos que precisam estar presentes na rotina do filho fora da hora que ele tá na tela. Então, por exemplo, praticar atividade física, qualidade de sono, momento de estudo. Esses pontos precisam estar presentes na rotina, e quando eles estão encaixados no dia a dia, o tempo que vai sobrar para essa criança, para esse adolescente, não vai ser prejudicial se eles utilizarem para ficar nas telas, desde que o conteúdo seja adequado para a idade de cada um. Mas existem dois momentos que precisam estar sem tela: hora das refeições e o percurso que os filhos fazem no carro quando estão se deslocando. A tecnologia não pode “comer” esses momentos que as crianças têm com a família e com o mundo real.
É importante focar no empenho e não no desempenho. É prestar atenção no dia a dia de estudo, no esforço que o filho coloca na tarefa e não só na nota que ele tirou da prova.
Taís Bento
Roberta Bento: O tempo gasto com tecnologia não é, em si, o que prejudica a criança, mas sim o que ela deixa de fazer fora das telas. Isso gera a dificuldade no desenvolvimento de habilidades, e que deixa os filhos sem a capacidade de autorregulação, paciência, capacidade para lidar com a frustração e compromete o desenvolvimento da capacidade de relacionamento social. Se for equilibrado, não vai prejudicar.
Uma orientação que aparece no livro é que está tudo bem deixar transparente para as crianças sobre nosso estado de humor, eventualmente em um dia que não estamos bem. Vocês poderiam comentar mais sobre isso?
Roberta Bento: Frequentemente, a gente escuta: “Em casa está difícil, tem muita briga, não quer fazer a cama... Por onde eu começo?” A gente diz: começa cuidando de você mesma. Se você não tem um tempo para uma terapia, uma caminhada, uma atividade física ou um momento em que você pode tomar um banho bem prolongado, ou dormir um pouco mais em alguns dias, ou seja, se você não tem um tempo para você, vai ser muito difícil você não ter o equilíbrio e a energia necessários para dar conta dos ajustes necessários que precisam ser feitos. É como a máscara de oxigênio no avião, é necessário primeiro colocar no adulto e depois na criança.
Quando a gente fala para o filho: “Olha agora eu queria que você brincasse um pouco sozinho porque hoje eu tive um dia difícil, eu não estou bem, estou cansada, triste ou doente”, a gente ensina para esses filhos também a reconhecer esse próprio sentimento e o auto respeito, para eles estabelecerem limites para as relações que eles terão no futuro. A gente fala que o filho aprende não o que a gente fala, mas com o que a gente faz.
O tempo gasto com tecnologia não é, em si, o que prejudica a criança, mas sim o que ela deixa de fazer fora das telas.
Roberta Bento
Taís Bento: A nossa sugestão é dividir com os filhos a responsabilidade do dia a dia da rotina da casa. Com isso, na prática, o filho entende que tem coisas que ele precisa fazer porque são parte de suas tarefas. Hoje em dia, fica muito difícil para os filhos entenderem as consequências de quando não se assume uma responsabilidade porque eles não têm responsabilidade nenhuma. E daí parece que tudo se arruma magicamente, tudo fica pronto magicamente. O aprendizado exige persistência, prática, determinação, e ao compartilhar responsabilidade, os pais criam oportunidades para fazer aos filhos aquele elogio baseado no esforço e na tentativa, e não no resultado.
Dicas práticas de como ajudar na aprendizagem e desenvolvimento dos filhos
- Não focar e elogiar apenas o resultado, mas principalmente no esforço que os filhos aplicam no momento do estudo. “Foco no empenho, e não no desempenho”;
- Organizar uma rotina em que as telas não ocupem espaço de tarefas fundamentais, como estudo, atividade física, brincadeiras com jogos físicos e qualidade de sono; momento da refeição, por exemplo, é necessário fazer sem celulares por perto;
- Reservar um tempo para toda a família desligar os aparelhos, afastar-se das telas e se dedicar à leitura (20 minutos, por cerca de 3 a 4 vezes na semana);
- Estabelecer junto com os filhos uma rotina de estudo e não se preocupar em ser o professor dentro de casa. Uma dica prática: fazer um esquema de metas de notas alcançáveis com as crianças dentro de cada matéria;
- No momento da lição de casa, combinar com o filho a possibilidade de trabalhar por 30 minutos intercalando com intervalos de cinco minutos para descanso;
- Para estimular a leitura e, ao mesmo tempo, ter as telas e tecnologias como aliadas, pensar em apresentar aos filhos obras que já foram retratadas por meio de filmes e desenhos;
- Permitir que as crianças tenham momentos de frustração e tristeza porque, embora sejam sentimentos negativos, contribuem para o desenvolvimento e amadurecimento individual de cada um;
- Fortalecer os sentimentos de autonomia, competência e de pertencimento nos filhos. Esse tripé de sensações são fundamentais para que a criança se sinta motivada a aprender;
- Os pais devem se cuidar também para conseguir ter energia e disposição para cuidar dos filhos (metáfora da máscara de oxigênio no avião). Sem sincero e transparente com as crianças quando precisar de um tempo.
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