Como o Brasil pode sair dos últimos lugares dos rankings de alfabetização?

Com o maior déficit das últimas décadas, País luta contra ‘efeito cascata’ provocado pelo crescimento do analfabetismo

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Por Rafael Burgos

“Os dados do pós-pandemia mostram que a alfabetização precisa ser foco das políticas públicas do novo governo”, afirma Patrícia Botelho, especialista em alfabetização e professora da Universidade Mackenzie. Na última quinta-feira, 18, ela participou do terceiro meetpoint da série “Reconstrução da Educação”, que debate os caminhos para o Brasil retomar investimentos nos ensinos infantil e fundamental, fortemente abalados pela pandemia e por cortes de verba no governo Bolsonaro.

Segundo o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), que acompanha o processo de alfabetização de estudantes do 2º ano, a proporção de crianças com dificuldades para ler e escrever dobrou entre 2019 e 2021, saltando de 15,5% para 33,8%. A baixa participação do exame em Estados como Roraima indica que o número pode ser ainda pior.

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Nesse sentido, o Ministério da Educação (MEC) deve lançar, em breve, o Pacto pela Alfabetização na Idade Certa, programa inspirado no exemplo cearense, que é referência em educação no País. Junto ao Escola em Tempo Integral, lançado na última semana, o governo Lula aposta na reedição da parceria com Estados e municípios para alavancar a alfabetização de crianças até os 7 anos.

Como destaca Alan Porto, secretário de Educação do Mato Grosso, o Pacto busca federalizar um modelo de alfabetização que já vem sendo implementado, com sucesso, em onze Estados brasileiros. “Isso tem de vir junto com um apoio técnico e pedagógico, incentivo à formação continuada de professores e um sistema de reconhecimento às escolas com bons resultados – com apoio àquelas que não alcançarem as metas”.

Secretária de Educação de Ferraz de Vasconcelos, Paula Trevizolli espera um maior investimento do MEC e uma atuação mais próxima aos municípios voltada à alfabetização na ponta. Considerada uma cidade dormitório, a cerca de 40 km de São Paulo, Ferraz foi fortemente afetada pelos cortes dos últimos anos.

A proporção de crianças com dificuldades para ler e escrever dobrou entre 2019 e 2021, saltando de 15,5% para 33,8% Foto: TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO - 16.06.2021

“Temos muitas crianças em situação de vulnerabilidade social. Cerca de 70% dos recursos recebidos via Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica) já estão comprometidos com a folha de pagamento, por isso o que sobra é uma quantidade pequena diante das muitas necessidades da região. Não queremos deixar nenhuma criança para trás”, destaca.

Alfabetização é desafio anterior à pandemia

As dificuldades para alfabetizar integralmente os estudantes no Brasil já eram uma realidade antes da pandemia. Segundo estudo da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal em parceria com Unicef e Undime, 330 mil crianças brasileiras estavam fora da pré-escola em 2019. Com a suspensão do ensino presencial, as desigualdades sociais e no acesso à tecnologia ganharam evidência, o que contribuiu para uma realidade ainda pior em 2023.

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“A gente já vinha com essa preocupação de como melhorar esse processo. E os resultados atuais mostram que houve uma regressão na pandemia”, diz Patrícia. Segundo o Estudo Internacional de Progresso em Leitura (Pirls), que avaliou o desempenho de mais de 400 mil estudantes do 4º ano em 57 países, o Brasil obteve uma das piores notas no quesito habilidade de leitura, com quatro em cada dez alunos apresentando dificuldades para ler.

O que é uma criança alfabetizada?

“Ao final do 2º ano, ela deve ser capaz de compreender um texto simples, curto e com palavras cotidianas”, pontua a professora, que destaca as dificuldades das escolas para elaborar mecanismos de acompanhamento das habilidades desses estudantes.

Um bom professor alfabetizador deve ter clareza sobre os processos e etapas envolvidos na alfabetização, saber como a criança aprende e qual a melhor forma de estimulá-la a ler e escrever. “Esse conhecimento é importante dentro de uma formação de professores eficaz. Saber que o papel da criança é aprender a relacionar letras e sons, fazendo-a enxergar essa relação na própria linguagem oral, no cotidiano”, afirma Patrícia.

Gerente de Conhecimento Aplicado na Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Beatriz Abuchaim acrescenta que um dos desafios é pensar tanto a educação infantil como a alfabetização enquanto partes do mesmo processo, já que, desde cedo, as crianças são estimuladas a desenvolver sua aprendizagem, criando hipóteses de escrita.

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“Muitas pessoas pensam na alfabetização como (sinônimo de) ensino fundamental, mas essa discussão precisa começar antes. Sabemos que a criança terá curiosidade pela leitura e escrita mesmo antes da educação infantil. Por nascer num mundo letrado, ela desenvolve essa curiosidade e cria hipóteses de escrita, de maneira espontânea”, afirma.

Nesse sentido, o papel da escola, diz ela, é fazer com que esse processo ocorra de maneira intencional, desenvolvendo as habilidades de leitura e escrita. “Nossa Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é muito clara ao trazer essas questões de leitura e escrita para o currículo da educação infantil. Como País, temos que nos responsabilizar por isso”, lembra.

Efeito cascata

Outro desafio provocado pela pandemia diz respeito à maior desigualdade no processo de aprendizagem entre estudantes, que, em alguns casos, acumularam perdas equivalentes a um ano de formação, se comparados a alunos alfabetizados antes da covid-19. Como resultado, a bola de neve atinge os anos seguintes do desenvolvimento escolar, já que o déficit na alfabetização retarda a aprendizagem no currículo de disciplinas.

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“Há um efeito cascata. Como que a criança vai aprender história se ela é incapaz de compreender um texto daquela disciplina?”, questiona Beatriz, enfatizando a diferença entre letramento e alfabetização – o primeiro concebe a imersão da criança em toda uma cultura escrita, que vai prepará-la até a alfabetização propriamente dita.

Com o atraso na trajetória escolar dos alunos, aparecem desafios na formação inicial de professores, já que muitos precisam desempenhar a função alfabetizadora sem terem sido devidamente treinados para isso.

Se todas essas causas e consequências do fracasso do processo de alfabetização não forem mapeadas e combatidas, os respingos chegarão ao Ensino Médio, alerta Alan Porto, responsável pelo programa Alfabetiza MT. “Se não combatermos o analfabetismo na sala de aula, não vai haver um ensino médio capaz de superar esses desafios”.

No primeiro meet point da série Reconstrução da Educação, gestores públicos e pesquisadores da área destacaram que a recomposição da educação no Brasil passa pelo fortalecimento de uma cultura democrática nas escolas, pelo combate às desigualdades desde a alfabetização e pelo investimento em professores.

Já no segundo encontro, os especialistas discutiram a ampliação das vagas de tempo integral nas escolas brasileiras. Segundo o Censo Escolar de 2022, somente 14,4% dos alunos da rede pública estão matriculados no ensino integral em todo o País – o Plano Nacional de Educação (PNE) estabelece 25% dos alunos da educação básica como meta para 2024. O levantamento aponta, ainda, que metade das escolas públicas brasileiras não possui nenhum estudante em modalidade integral.

Programação

15/5 – Educação no Brasil hoje e recomposição da aprendizagem (veja como foi);

16/5 – Ensino integral e professores (veja como foi);

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18/5 – 10h: Educação infantil e alfabetização;

23/5 – 10h: Ensino médio;

25/5 – 10h: Ensino fundamental 2 e tecnologia;

29/5 – das 10h às 12h: Fórum Reconstrução da Educação.

Veja como fazer a inscrição aqui.

Reconstrução da Educação é uma realização do Estadão, em parceria com a Fundação Itaú, Fundação Lemann, Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Fundação Vivo Telefônica, Instituto Natura e Instituto Península. E tem o apoio do Consed, da Undime e do Todos Pela Educação.

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