Alta do euro, suspensão temporária da emissão de vistos de estudante, América Latina como novo epicentro da covid-19... Uma série de fatores econômicos e sanitários ligados à pandemia do novo coronavírus impactaram a vida de brasileiros que pretendiam ingressar em uma universidade europeia no ano letivo 2020/2021.
Os desdobramentos afetaram também os planos de brasileiros que já viviam em território europeu. Apesar de o confinamento na Europa ter terminado, isso não representou uma retomada para muitos estudantes, que se viram obrigados a abandonar seus projetos internacionais por tempo indeterminado.
O cenário pandêmico trouxe incertezas e despertou um sentimento de impotência. “Por mais que eu me organize, estou estagnado agora. A sensação de ter de procrastinar sem querer é péssima. Se eu decidir que hoje vou resolver a minha vida, não consigo. É frustrante”, lamenta Rafael Barros, que retornou ao Brasil um dia antes de a Espanha fechar as fronteiras aos visitantes na tentativa de controlar a pandemia.
A conjunção condicional “se” aparece inúmeras vezes no discurso dos estudantes brasileiros entrevistados pela reportagem do Estado. As dúvidas estão, na maioria das vezes, atreladas à questão econômica (mas não apenas). Estudar na Europa exige planejamento, sobretudo, financeiro e até os mais “organizadinhos” sentiram a desvalorização do real ante o euro.
Quando Isabela Messias traçou o objetivo de fazer um mestrado profissional em comunicação de moda na França, a brasileira de 22 anos tinha calculado quanto de dinheiro precisaria economizar para concretizar a mudança. Estudantes devem comprovar recursos financeiros durante o período de estudos. No caso da França, é exigida a quantia mínima de 615 euros mensais – ou seja, 7.380 euros no ano – para a obtenção do visto de estudante.
“A conta mudou completamente porque o euro está muito mais alto, toda a parte financeira que eu tinha planejado foi por água abaixo”, afirmou. Além do aumento de cerca de 30% da taxa de câmbio com o euro passando a marca dos R$ 6, a personal stylist viu seu salário diminuir com o corte das comissões de venda enquanto o setor comercial esteve paralisado no Brasil durante a quarentena. Ainda que tenha sua candidatura aceita por uma universidade francesa, Isabela cogita adiar o sonho de estudar na França para o próximo ano.
A instabilidade econômica também foi determinante no futuro de Caroline Silva, de 30 anos. Desde setembro de 2019, a brasileira morava em Eaubonne, nos arredores de Paris, e fazia um mestrado em Tradução na École supérieure d'Interprètes et de Traducteurs (ESIT), na capital francesa. Suas fontes de renda foram reduzidas depois que alguns clientes suspenderam a contratação de seus serviços de revisão, tradução e legendagem. “Meu orçamento, que já era apertado, ficou definitivamente comprometido. Ao constatar que a disparada do euro e a queda na oferta de trabalho não durariam pouco tempo, entendi que precisava voltar ao Brasil”, comentou a estudante, que retornou a São Paulo no dia 19 de abril.
Apesar do regresso, Caroline poderia ter concluído o primeiro ano do mestrado, visto que a universidade optou pelo ensino a distância e pelos exames online durante a pandemia. No entanto, a brasileira ficou bastante abalada com o momento de crise. “Os transtornos emocionais provocados pelo caos que se instalou acabaram me levando a priorizar algumas disciplinas e a deixar outras de lado, o que significou algumas reprovações”, contou a tradutora, que sentia a necessidade de voltar para a sua “zona de segurança” depois de experimentar a solidão durante o isolamento social.
“Sem falar na enorme quantia de dinheiro gasto para me manter na França durante todo esse tempo recebendo em real, é muito frustrante por parecer que nadei, nadei e morri na praia.” Enquanto decide os próximos passos, Caroline reconhece que não poderá voltar à Europa neste ano. “Caso um dia eu decida retornar, precisarei ter uma reserva financeira maior, justamente para não ser pega de surpresa novamente”, projetou.
Preocupação com a saúde
O lado financeiro se entrelaçou ao aspecto sanitário no caso de Rafael Barros, que vivia em Barcelona desde outubro de 2019. Durante os primeiros meses, o brasileiro frequentou uma escola de idiomas para aprender o espanhol com o objetivo de fazer uma especialização em administração, sua área de formação, em uma universidade espanhola – Universitat de València (UV), Universitat Autònoma de Barcelona (UAB) e Universitat de Barcelona estavam entre as preferidas.
Enquanto se preparava para o mestrado ou MBA, o jovem morava em um alojamento coletivo atrelado à escola de idiomas. Apesar de dormir em um quarto individual, dividia as outras dependências da casa com até cinco estudantes de diversas nacionalidades. Quando o novo coronavírus atingiu com força a Espanha, restava a ele apenas mais um mês de curso e de moradia. Caso levasse adiante seu plano de ingressar em uma universidade espanhola no segundo semestre, Rafael precisaria procurar uma nova hospedagem em meio à pandemia. Além disso, a necessidade de dividir o imóvel com pessoas desconhecidas era motivo de preocupação. “Eu tinha muito medo de alojamento. Dava para eu ficar em casa, mas não adiantaria nada se o coleguinha saísse todos os dias e trouxesse o vírus”, ponderou.
Em meio a esse contexto particular, com o fechamento de bares e restaurantes e até com o Exército abordando a população nas ruas, o estudante recebeu uma ligação de seu pai, que estava preocupado com o iminente fechamento das fronteiras e pedia seu retorno ao Brasil. Em apenas quatro dias, o brasileiro entrava no avião com destino a São Paulo. O retorno no dia 16 de março foi um momento bastante marcante para o estudante de 22 anos. “Ninguém se cumprimentava, todo mundo usava máscara e luvas. Uma coisa surreal, foi um momento de medo que vivi ao entrar no avião com as aeromoças vestindo roupa de médico, higienizando tudo o que davam aos passageiros. Foi um voo bem tenso, todo mundo se olhava, quem espirrava ficava um pouco constrangido”, relembrou.
Exigências e atrasos
Confinado na casa de seu tio em Indaiatuba, Rafael vê seu futuro em aberto. O estudante deixou a Espanha quando se preparava para realizar o DELE (Diplomas de Español como Lengua Extranjera), o teste de proficiência em espanhol reconhecido internacionalmente, critério obrigatório para cursar uma universidade no exterior. Sem o contato diário com a língua, ele pensa em adiar os trâmites para o próximo ano. Em contrapartida, analisa a possibilidade de voltar ao mercado de trabalho no Brasil e renunciar aos planos de estudar na Europa.
O teste de proficiência também foi um fator preponderante no planejamento de Isabela Messias, no caso dela em francês. Depois de dois anos de estudo, sendo o último de forma intensiva, a personal stylist realizou o TCF (Test de connaissance du français) em março, o último teste aplicado antes do início da quarentena, também o mais próximo da data limite das candidaturas. O resultado, que deveria ser divulgado um mês depois e imediatamente integrado a seu dossier de aplicação, só foi obtido em julho. Devido ao calendário das universidades francesas, sua candidatura foi enviada incompleta. Sem provar o nível de proficiência em francês, Isabela foi recusada pela Université Lumière Lyon 2, sua primeira opção de estudos, e admite não ter muita esperança de ser aceita ainda neste ano por outras faculdades. “Ficar à deriva não é uma coisa muito confortável para mim”, afirmou.
Questões burocráticas
Um outro impasse na vida dos brasileiros foi a suspensão temporária da emissão de vistos, inclusive o de estudante de longa duração. A França projeta uma retomada gradual das atividades, interrompidas no 17 de março devido à crise sanitária ligada à covid-19. “Nosso objetivo é iniciar o processamento das solicitações a partir de meados de julho, de forma progressiva e que leve em consideração a evolução da pandemia no Brasil, sob rigorosas condições de segurança sanitária, protegendo os alunos e os funcionários dos consulados”, informou a Embaixada da França no Brasil. O País concedeu mais de 2.100 vistos para estudantes brasileiros em 2019.
No caso da Espanha, a emissão de vistos de estudantes foi retomada após o fim do estado de alarme. O impacto da covid-19 já se traduz em uma queda drástica no número de pedidos. Foram 3.001 vistos concedidos a estudantes brasileiros em 2019, desse total 1.060 emitidos até 30 de junho – 557 de longa e 503 de curta duração. Segundo dados da Embaixada da Espanha no Brasil, no mesmo período deste ano, foram apenas 110 vistos concedidos (62 de longa e 48 de curta duração) e mais 17 estavam pendentes. “É provável uma queda no número de estudantes internacionais na Espanha (e também no resto de mundo), tanto do Brasil quanto de outros países, levando em conta as maiores dificuldades para os deslocamentos e a crise econômica geral provocada pela pandemia”, analisou a entidade.
Portugal foi outro país que passou pelo processo de suspensão temporária de vistos. A espera dos estudantes, que já costuma ser longa devido à alta demanda, deve ser ainda maior na retomada. Em 2019, o País emitiu 8.516 vistos de estudo a cidadãos brasileiros, sendo 4.106 para estadia temporária (permanência inferior a 1 ano) e 4.410 para residência (permanência superior a 1 ano). As informações são da Embaixada de Portugal em Brasília, que diz ainda não dispor dos dados estatísticos referentes ao ano letivo 2020/2021.
A brasileira Bianca Lima, que foi aceita pela Universidade do Porto para cursar um mestrado profissional em marketing, aguarda os desdobramentos burocráticos para se mudar para Europa. A VSF Global, responsável pelos pedidos de visto para Portugal, solicitou o envio de documentos pelos Correios para dar início ao procedimento.
Para fazer sua especialização na Europa, Bianca recusou a oferta de estender seu contrato temporário de trabalho em uma empresa de tecnologia da informação. Ela planejava ir para Portugal em abril, como turista, e realizar o pedido do visto já em território português enquanto viveria na casa de sua irmã. Após o Carnaval, no entanto, viu o novo coronavírus se alastrar em todo o mundo até o fechamento das fronteiras da União Europeia no dia 17 de março. “Eu já tinha comprado minha passagem aérea para o dia 15 de abril, estou agora com um crédito para remarcar a data. Estou sem previsões, prefiro esperar. Até setembro posso estar lá”, afirmou.
A reabertura das fronteiras de Portugal para visitantes estrangeiros desde o dia 1º de julho não contempla os turistas brasileiros, já que a América Latina é considerada o novo epicentro da Covid-19. Assim, Bianca não tem outra opção a não ser esperar pela emissão do seu visto de estudante no Brasil. “Vou tentar até setembro independentemente de qualquer coisa. Mas estou pensando em outras possibilidades caso seja inviável, como a chance de congelar a vaga para o ano que vem. Acho que a gente precisa ser mais realista que muito otimista”, admitiu.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.