Cota racial é avanço, mas reconhecer pardos desafia bancas de avaliação, dizem especialistas

Caso de estudante que teve matrícula barrada pela USP coloca luz no tema; comissões de análise foram criadas para evitar fraudes, mas precisam ser diversas e aprimorar critérios

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Foto do author Giovanna Castro
Atualização:

O processo de análise de candidatos a cotas raciais em vestibulares voltou a ser discutido esta semana após um estudante autodeclarado pardo ter sua matrícula negada pela Universidade de São Paulo (USP). Sua foto circulou em portais de notícia e redes sociais, reunindo comentários de quem viu a decisão como injustiça.

“Sempre me considerei pardo”, afirmou o estudante Alisson Rodrigues, de 18 anos, ao Estadão. A USP, por sua vez, diz que “a comissão foi criada para coibir fraudes e garantir a integridade da autodeclaração das pessoas convocadas para a matrícula nas vagas reservadas para política de ações afirmativas para pessoas negras, de cor preta ou parda”. O candidato pode recorrer da decisão.

Alison dos Santos Rodrigues foi aprovado em Medicina. Foto: Arquivo pessoal/Laise Mendes dos Santos

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Para especialistas em diversidade racial e cotas, como Juarez Xavier, ex-presidente e responsável pela criação da comissão de heteroidentificação para cotas da Universidade Estadual Paulista (Unesp), é inegável o avanço proporcionado pelas cotas raciais em relação ao aumento de diversidade nas universidades públicas do País. Mas o processo de implementação de bancas avaliadoras assertivas é longo e deve ser discutido com a sociedade civil.

“Na Unesp, aprimoramos essa ferramenta ao longo do tempo e hoje temos um nível de assertividade bastante alto”, afirma ele, professor de Jornalismo da Unesp e membro do Núcleo Negro Unesp para a Pesquisa e Extensão (NUPE). A Unesp tem uma comissão do tipo desde 2016. Já a USP só criou a sua comissão em 2022.

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Para Xavier, quanto mais diversa é a banca de avaliação, mais precisos são os resultados. “É preciso ter ativistas negros, antropólogos, historiadores e, no nosso caso, temos até um professor branco que tem sido fundamental para a análise”, afirma.

Além disso, ter objetivos claros quanto às características físicas que se enquadram no perfil de pessoas pardas – normalmente, são as que mais sofrem com negativas contestadas, por conta da birracialidade – é “fundamental”, segundo o especialista. O Supremo Tribunal Federal (STF) definiu, em 2017, quais características devem ser consideradas em concursos e vestibulares.

Márlon Reis, advogado, coordenador jurídico da Educafro e secretário geral da Comissão Nacional de Direitos Difusos e Coletivos do Conselho Federal da OAB, afirma ser “é imprescindível que as comissões de heteroidentificação sejam devidamente capacitadas para distinguir entre indivíduos brancos com características fenotípicas pardas e aqueles de perfil efetivamente negro”.

Segundo a USP, sua banca de avaliação considera o conjunto de fatores fenotípicos: a cor da pele morena ou retinta, o nariz de base achatada e larga, os cabelos ondulados, encaracolados ou crespos e se os lábios são grossos – mesmos critérios propostos pelo STF.

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Bancas devem ter diversidade, diz especialista

Segundo Xavier, é comum que ativistas negros tenham vieses – alguns consideram que só pessoas pardas com tonalidades de pele mais escuras teriam direito a cotas, enquanto outros entendem que os fenótipos vão além da cor da pele. Só é possível equilibrar esses vieses dos resultados da comissão, afirma, quando há diversidade de avaliadores e critérios objetivos que definem o que é ser pardo.

“O julgamento racial no Brasil, diferente dos Estados Unidos, é um racismo de marca. Por isso, é preciso que a banca veja aquilo que o segurança do banco e do aeroporto vê e usa pra barrar alguém (preto ou pardo)”, diz. “Ter critérios definidos é uma ferramenta pra não deixar o viés ativista ser determinante”.

Estudos raciais brasileiros mostram que, apesar de existirem diferenças entre pretos e pardos em relação ao preconceito vivido por cada um, os dados macroambientais evidenciam que ambos os grupos têm condições sociais similares. E é nisto que está fundamentada a política de cotas: inserção e equidade social, que também alcança indígenas, outra etnia marginalizada.

Beatriz Bueno, produtora cultural e pesquisadora sobre parditude da Universidade Federal Fluminense (UFF), acredita que faltam instruções para as bancas avaliadoras sobre características ambíguas de pessoas pardas e como avaliá-las. “É preciso evoluir muito na política em relação ao reconhecimento das pessoas pardas. Os critérios devem ser diferentes para pardos e pretos, mas não só isso. Devem levar em consideração a regionalidade da pessoa que está se autodeclarando”, afirma.

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Segundo a pesquisadora, que compartilha com seus mais de 85 mil seguidores no Instagram conteúdos relacionados à experiência parda, em cidades onde grande parte da população é preta, como no Rio de Janeiro e em Salvador, a interpretação sobre pardos tende a ser diferente de cidades do Sul, onde há menos pretos. O preconceito e as condições sociais, portanto, também tendem a apresentar diferenças.

“As pessoas pretas devem ser identificadas pelos traços negroides predominantes. São aquelas que, independente da região do Brasil, não seriam apontadas como brancas por ninguém. A banca para essas pessoas é apenas para fazer uma validação de que o inscrito é o mesmo da foto, sem grandes discordâncias ou especulações sobre a identidade dos indivíduos”, diz Beatriz.

Já as pessoas pardas são um grupo de características ambíguas. “Há descendentes de negros que têm cabelos lisos naturais, como a (cantora) Preta Gil, enquanto existem pessoas como (a também cantora) Vanessa da Mata, que têm a pele branca, mas os traços do rosto e cabelos demando sua ascendência negra. E não podemos mais nos esquecer de incluir os descendentes de indígenas, que em maioria têm cabelo liso.”

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Na hora de julgar quem tem direito ou não à cota, defende Beatriz, é preciso levar esses fatores em conta. “Os movimentos políticos antirracistas precisam incluir pautas multirraciais em suas agendas e não querer adotar sistemas binários. Estamos no Brasil, um país reconhecido mundialmente pela miscigenação”, diz.

*Este conteúdo foi produzido em parceria com o Núcleo Negro Unesp para a Pesquisa e Extensão (NUPE)

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