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USP explica à Justiça por que negou cota a aluno: ‘Pele clara, lábios finos e cabelos raspados’

Alison Rodrigues foi aprovado em Medicina na universidade por meio das cotas raciais, mas teve a inscrição barrada pela banca de heteroidentificação. Defesa vê ‘evidente erro de julgamento’

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Foto do author Caio Possati
Atualização:

A pedido da Justiça, a Universidade de São Paulo (USP) apresentou os motivos de ter negado uma vaga ao candidato Alison dos Santos Rodrigues, de 18 anos, em fevereiro deste ano. O jovem foi aprovado em Medicina por meio das cotas para pretos, pardos e indígenas (PPI), mas teve a sua inscrição barrada pela bancada de heteroidentificação da instituição. Os avaliadores entenderam que o estudante, que se autodeclara pardo, não apresenta as características fenotípicas de uma pessoa negra.

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O caso motivou críticas e a comissão de análise foi acusada de agir como um tribunal racial. Após a repercussão, a reitoria defendeu o processo de heteroidentificação, mas afirmou que vai aperfeiçoar o modelo.

A judicialização do caso levou o Juiz Danilo Martini De Moraes Ponciano, da 2ª Vara do Foro de Cerqueira César (interior de São Paulo), onde o processo tramita, a pedir para a USP explicar como foi feita a identificação do candidato. Nesta sexta-feira, ele deferiu um pedido liminar para que Alison frequente as aulas na universidade. A USP afirmou, em nota, que a decisão judicial será acatada.

A resposta foi apresentada na quarta-feira, 3. Na declaração, a universidade descreveu Alison Rodrigues como uma pessoa “de pele clara”, que possui “boca e lábios afilados” e que o “cabelo raspado” do estudante impediu a bancada de identificá-lo adequadamente.

Alison dos Santos Rodrigues foi aprovado em Medicina. Foto: Arquivo pessoal/Laise Mendes dos Santos

Na justificativa anexada aos autos, a USP diz que o candidato passou pela 1ª fase da heteroidentificação, análise dos documentos e fotos, “em que nenhuma das duas bancas confirmou sua autoidentificação para os critérios da universidade (sem que uma soubesse da decisão da outra)”.

Alison Rodrigues passou, então, para a 2ª etapa da análise, feita por videoconferência. “Ele leu sua autodeclaração para a Banca de Heteroidentificação, que concluiu que o candidato tem pele clara, boca e lábios afilados, cabelos raspados impedindo a identificação, não apresentando o conjunto de características fenotípicas de pessoa negra”, afirmou a universidade.

A USP também anexou no documento o parecer produzido pelos membros da Comissão de Heteroidentificação, que afirma que “diante do conjunto de informações apresentadas, a comissão entendeu, de maneira consensual, por ratificar a conclusão da Comissão de Heteroindetificação, segundo o qual o recorrente não cumpre os requisitos necessários à vaga reservada para o grupo PP (Pretos e Pardos) na Universidade de São Paulo, porque não possui traços fenotípicos aptos a defini-lo como preto e pardo”, diz a instituição.

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Na declaração, a USP defendeu o processo de avaliação. Afirmou que Alison “foi submetido a procedimento bastante criterioso, com múltiplas conferências, bancas diferentes, sistema cego de double checking (dupla checagem), possibilidade de recurso administrativo e com exercício do contraditório e da ampla defesa”.

Segundo os critérios da USP, a análise não é feita com base na ascendência do candidato, mas pelo seu fenótipo (características físicas). O Supremo Tribunal Federal (STF), em 2017, definiu que os aspectos de pretos e pardos a serem considerados pelas bancas em concursos e processos seletivos são:

  • Textura do cabelo (crespo ou enrolado);
  • Nariz largo;
  • Cor da pele (parda ou preta);
  • Lábios grossos e amarronzados

Procurada para se manifestar sobre as declarações, a USP não retornou os contatos da reportagem até a publicação do texto. Questionada, a defesa de Alison também não respondeu. O Tribunal de Justiça de São Paulo informou que “o processo está em fase de liminar”.

Alison foi aprovado em novo modelo de vestibular

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Alison foi aprovado em Medicina na USP por meio do Provão Paulista, novo vestibular unificado das instituições públicas estaduais de ensino superior, criado em 2023. Por se considerar racialmente pardo, ele se candidatou nas vagas de PPI, destinadas a pretos, pardos e indígenas. Ele encaminhou os documentos à universidade para provar que estava dentro dos padrões da política de cotas.

Depois de passar pelas avaliações de análise de documentos e vídeoconferência, Alison Rodrigues foi convocado a estar em São Paulo para participar da Semana de Calouros da USP, em 26 de fevereiro. Durante o dia, recebeu um e-mail com a informação de que o seu ingresso na universidade não tinha sido aprovado

A tia do candidato, Laise Mendes dos Santos, de 35 anos, acompanhou o processo ao lado do sobrinho. Ao Estadão, ela contou que eles até tentaram marcar um encontro presencial com a USP, mas ouviram que o Rodrigues não era especial para ter uma segunda avaliação.

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Em nota, a advogada Giulliane Jovitta Basseto Fittipald, que representa Alison na Justiça, disse que “é evidente o erro de julgamento da comissão e a ausência de razoabilidade em sua decisão, bem como é nítido que os parâmetros utilizados pela Comissão de Heteroidentificação são absolutamente subjetivos, sem critérios adequados para serem aferidos”.

“É fácil identificar no Alison traços de pessoas de cor negra, como: pele escura, nariz achatado, com o dorso curto, asas da base ainda mais alargadas, assim como narinas maiores e ponta arredondada. Da mesma forma, no desenho dos lábios, tendo em vista em pessoas negras o aspecto dos lábios é maior que em pessoas de cor branca, além do cabelo crespo, características estas fenotípicas pardo, descendente de negros”, acrescentou.

Portanto, seguiu a advogada, “não pode alguém que possui traços típicos de negros, ser julgada como sendo branco quando toda a sua família e características são de negritude, sua autodeclaração para fins do edital é de pessoa parda, e assim se compreende desde o seu nascimento”.

Outros casos

O caso é semelhante ao do estudante Glauco Dalalio do Livramento, de 17 anos, aprovado para Direito da USP, mas que também teve seu ingresso negado porque a comissão de heteroidentificação afirmou que ele não cumpria os requisitos para ser considerado pardo, conforme o jovem se autodeclara.

O estudante foi descrito pelos avaliadores com “de pele clara, boca e lábios afilados, cabelos lisos” depois de encontro virtual e remoto com o candidato. A defesa de Glauco alegou que o estudante não foi avaliado de forma adequada pela comissão de heteroidentificação e acionou a Justiça.

Em 4 de março, o Juiz Randolfo Ferraz de Campos, da 14º Vara de Fazenda Pública de São Paulo, acatou o pedido da defesa e concedeu liminar em favor do estudante, ordenando a USP a reestabelecer a matrícula do jovem.

O mesmo aconteceu com um candidato aprovado em Engenharia de Produção. Sua entrada foi negada pela comissão de heteroidentificação da USP, que não o reconheceu como pardo. A defesa do rapaz apresentou à Justiça a certidão de nascimento do pai do estudante, que em 1957 foi registrado como alguém de cor parda, e conseguiu liminar para se matricular.

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Reitoria promete melhorar sistema com avaliações presenciais

O reitor da USP, Carlos Gilberto Carlotti Junior, disse que pretende alterar o sistema de heteroidentificação de candidatos às vagas de cotas raciais da instituição, realizando entrevistas com os candidatos apenas de forma presencial, para evitar distorções.

Carlotti prevê que todas as entrevistas com os candidatos às vagas de cotas raciais passem a ser de forma presencial, e não mais virtual com feito hoje. Ele avalia, inclusive, pagar as passagens para candidatos que moram longe de São Paulo./COLABOROU RENATA OKUMURA

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