Afinal, qual o grande gargalo do Brasil na educação? Falta de infraestrutura das escolas? Desigualdades regionais? A pobreza que afasta alunos dos livros para trabalhar e ajudar na renda da família? Segundo Guiomar Namo de Mello, doutora em Educação, integrante da Academia Paulista de Educação e um das maiores referências do País em formação de professores, o problema é multifatorial e, por isso, precisa de soluções combinadas e foco na garantia da aprendizagem.
Nesta terça-feira, 12, Guiomar se reuniu com especialistas em educação e representantes do setor privado na sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) para discutir propostas para o Plano Nacional de Educação (PNE), que será revisto este ano e renovado para mais uma década.
Segundo Guiomar, o governo federal tem feito propostas que sinalizam caminhos interessantes, mas que, na prática, não deixam claro se há garantias de qualidade da oferta. Um exemplo é o ensino de tempo integral. “Criamos ensino integral porque tínhamos escola pela metade, mas dar o ruim duas vezes não adianta”, diz.
“Precisamos garantir que as pessoas aprendam, independentemente da condição social delas. Esse é o nosso principal desafio.” No centro da melhoria da aprendizagem, destaca Guiomar, está aprimorar a formação dos professores e diretores.
Qual deve ser o foco para a Educação nos próximos dez anos, período de escopo do PNE?
Pode parecer óbvio, mas o foco nos próximos dez anos deve ser aprendizagem das crianças – a aprendizagem o que está previsto, seja na BNCC (Base Nacional Comum Curricular, documento do Ministério da Educação que define o que deve ser aprendido em cada idade), seja nas recomendações dos currículos estaduais, nos referenciais ou nos currículos municipais. Cada sistema de ensino no Brasil tem elementos que estabelecem o que é necessário que as crianças aprendam em cada ano, em cada etapa da escolaridade básica (...) Esses elementos são subsídios, uma plataforma que foi criada pata beneficiar essas aprendizagens.
O problema é que não adianta estabelecer qual é a aprendizagem, nem saber avaliar se essa aprendizagem está ou não acontecendo, se as crianças não estão, de fato, aprendendo.
O professor, aliás, deve estar no centro dessa política, junto ao diretor da escola. Não é uma questão de valorização do professor pela simples valorização, mas sim da valorização do elemento sem o qual o processo de ensino-aprendizagem não pode se realizar (...) Um professor que trabalha em três turnos, ganha pouco, não terá tempo para pensar quais as dificuldades e necessidades de cada aluno, de cada turma.
O diretor tem papel fundamental de fazer a gestão. Precisa de carisma, de competência técnica e treinamento de liderança. Cada vez mais, me convenço de que em uma escola dirigida por um bom diretor, todos os problemas tendem a ser mais amenos.
Para além de valorizar o cargo de professor, o que é preciso mudar na formação docente para atingir esses objetivos de aprendizagem?
A formação é uma das coisas mais importantes – seja a inicial do professor, que é o ensino superior, seja depois disso, na formação continuada, quando ele ingressa na carreira. O ensino superior precisa encontrar formas de ter um projeto integrado e coeso em relação à formação de professores, para que não seja apenas um bacharelado e uma licenciatura dentro de uma área específica.
Quando o professor sai da faculdade, sai sabendo somente o conteúdo relacionado à área dele (Biologia, Química, etc..). Mas precisamos ter professores que possam transitar nas fronteiras das suas disciplinas e que possam estabelecer, sem dispensar o núcleo importante e “duro” do conteúdo, temas interdisciplinares que atendam às necessidades dos alunos.
A segunda coisa importantíssima é que se estabeleça um mecanismo de avaliação dos cursos de ensino superior e formação de professores. Temos um processo de avaliação que está agora com o MEC, mas esse processo tem de ser revisto, porque, entrar em questões mais técnicas. A formação do professor precisa ter dimensão prática desde o início, e não apenas na hora de fazer o estágio
A terceira condição indispensável é que haja mecanismos para financiar este professor, não apenas pagando a sua educação, mas também dando a ele subsídio para que possa se manter enquanto ele estuda. As pessoas que se formam em pedagogia no Brasil estão entre os alunos mais pobres, os que fizeram os piores cursos de ensino médio e que tiraram as piores notas do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Eles já têm uma formação básica muito prejudicada e ainda precisam trabalhar para se sustentar durante a graduação. Que dedicação poderão dar aos estudos e à prática da carreira?
E essa pessoa muitas vezes não tem autonomia cognitiva intelectual cultural para fazer um curso de EAD e absorver da melhor forma aquele conteúdo. Isso se considerar quando o conteúdo é bem trabalhado e apresentado, o que não é a realidade em muitos casos.
O que precisa ser aprimorado na primeira infância? Você considera que faltam investimentos?
Os dados de desenvolvimento humano na área da neurociência deixam clara a importância da educação infantil, desde os anos iniciais até o início do ensino fundamental. É um período crítico para o futuro do desenvolvimento. Então, nós precisamos resolver o nosso problema de alfabetização, de leitura e escrita formal, e, sem dúvida alguma, o investimento na primeira infância vai ser importante agora. Mas precisamos, antes de tudo, entender como usar esse investimento, que tipo de projeto pedagógico tem que ser feito – até mesmo para pensar como usar bem o dinheiro do investimento que já vem sendo feito.
Acho que é importante priorizar a primeira infância e é importante que essa tenha sido uma bandeira forte no congresso nacional – não sei, ao certo, se ainda é agora, mas vinha sendo (...) É preciso entender que, independente dos desafios que temos, eles não podem servir como justificativa para a não alfabetização. Nós precisamos aprender a alfabetizar crianças ainda que elas venham de meios sociais adversos, garantindo que, ao final de um percurso, elas terão seus direitos de aprendizagem plenamente satisfeitos. Esse é o nosso desafio.
E no ensino fundamental?
Eu acho que nós temos os primeiros quatro ou cinco anos do ensino fundamental melhor resolvidos. O nosso problema tem sido essa faixa etária do 6º ao 9º ano, até o início do ensino médio, onde temos uma grande distorção idade-série (por conta de reprovações) e de abandono da escola. Essa é a fase da puberdade, do início da adolescência, uma fase com muitas características emocionais peculiares, onde começam a aparecer transtornos e problemas como o bullying – e também é a etapa que foi mais afetada pela pandemia, pela ausência de escola. É uma etapa difícil, complexa. Quem tem ou já teve filho nessa idade, sabe.
Por outro lado, a neurociência também tem mostrado que, por volta dos 14 e 15 anos, começa a se abrir uma nova janela e oportunidade neurológica de capacidade de grande aprendizagem. É uma fase de constituição e consolidação do pensamento operatório. Mas o que está acontecendo, então? Provavelmente, uma grande desmotivação. Talvez tenha origem ainda na pandemia, mas eu não sei até quando a gente vai poder usar a pandemia como desculpa.
É uma fase que precisa de um cuidado especial do coordenador pedagógico. É importante ter na escola um grupo de apoio ao professor, que ajude o professor a lidar com as situações, porque não é fácil enfrentar uma classe de 32 pré-adolescentes, né?
Precisamos enfrentar, principalmente, os problemas de transtornos mentais que começam a aparecer nessa fase e que podem se agravar no ensino médio.
Leia também
O ensino integral é uma boa ferramenta para alavancar a aprendizagem?
Isso é uma coisa e nós fizemos de um jeito tão complicado... No mundo inteiro, as escolas não são de tempo integral. Nós criamos o ensino integral porque tínhamos uma escola pela metade. Achamos que, botando outra parte, juntando as duas, dava uma escola integral (no sentido de educação completa). Mas isso não é necessariamente verdade. Não vamos esquecer que se você dá duas vezes uma coisa ruim, não adianta nada.
Quando você pensa em ampliar o tempo que a criança fica na escola, precisa pensar numa forma realmente integrada de permanência. E isso envolve um projeto pedagógico específico, uma gestão curricular e preparação de professores própria para essa escola que está funcionando em tempo integral. A gente funcionou bem por muito tempo com escolas em meio período, sobretudo em algumas áreas que, digamos, são mais bem situadas. Não é o tempo na escola que define a qualidade.
Sempre que a gente pensa na escola em tempo integral, ela se torna também um lugar de permanência da criança, de proteção da criança. Se ela vive em ambientes de risco, realmente, a escola tem este papel de cuidado e de proteção – em princípio não deveria ser, mas tudo bem. Podemos até ter a escola integral, desde que a gente tenha um projeto pedagógico coerente que dê conta desta permanência em tempo integral na escola.
Um valor importante, independentemente de quanto tempo a criança vai ficar na escola, é que ela tenha uma formação que atenda tanto ao seu desenvolvimento intelectual e cognitivo, quanto ao seu desenvolvimento físico e o desenvolvimento social, para que elas saibam lidar com situações e tenham, enfim, um caráter de resiliência e de autonomia. Esse é um objetivo de formação integral.
O que você acha do novo ensino médio, em sua proposta original e após as mudanças sugeridas pelo governo Lula? Quais os erros e acertos?
Do ponto de vista histórico, o novo ensino médio foi a primeira vez que a formação profissional pôde estar organicamente integrada ao currículo do ensino médio – porque a formação do ensino médio técnico sempre foi meio marginal, tanto quando ele era feito depois, tanto quanto era concomitante. Essa lei, com todos os problemas que ela possa ter, em especial na implementação, tem esse grande e importante papel, com os itinerários de formação básica.
Eu acho que é importante que a população entenda que o novo ensino médio não tirou formação básica, apenas estreitou e flexibilizou para que o currículo seja mais interdisciplinar e dinâmico. Mas o novo governo não concordou e, primeiro, queria praticamente revogar, o que é uma coisa muito difícil de se fazer com algo que já está em andamento. As escolas já tinham começado a implementar, seria uma grande confusão.
O que o ministério acabou propondo, então? Propôs que não seriam itinerários formativos de 1200 horas, mas sim de 600 horas, e que a formação geral básica, em vez de ter 1800, teria 2400 horas. Quando isso atinge o itinerário formativo, por exemplo na área de Ciências da Natureza, não tem grandes problemas, apenas continua dando uma série de disciplinas que eventualmente o aluno não tem interesse, mas tudo bem. O problema é com o que acontece na educação profissional.
Aquele que, pela primeira vez, pôde se inserir organicamente no currículo do ensino médio nesse itinerário técnico, ao tirar as 600 horas, não vai mais poder fazer isso, afinal nenhuma formação profissional dá para ser concluída com 600 horas – em geral, são 900 horas.
O ensino médio ia perder aquela característica de apenas ser preparatório para a faculdade, para ter uma uma porta de saída imediata para o mercado de trabalho, o que eu acho positivo. Isso ainda está em discussão no Congresso, mas não estou muito otimista (sobre o retorno em relação às horas).
Na sua opinião, o clima polarizado tem atrapalhado os debates sobre educação? Como?
Sim. Eu acho que do jeito que o Brasil está polarizado, tudo vira uma disputa ideológica, partidária, e a aprendizagem das crianças fica sempre secundarizada. Existem, obviamente, diferenças de visão, de concepções, e nós temos que ir discutindo esses conflitos e tentando encontrar convergências.
Como alavancar a oferta do ensino técnico para os jovens? Quais são os ganhos que a educação profissional pode trazer para a aprendizagem dos alunos e para a produtividade do País?
Isso já está bem documentado em pesquisas que mostram o impacto no próprio PIB se a gente aumentar a quantidade de alunos fazendo ensino técnico. Os dados também mostram que muitos saem menos da escola quando há ensino médio técnico, porque os jovens não veem muito sentido de fazer aquele curso (regular), então há uma desmotivação muito grande desses jovens – o que não acontece no ensino técnico, geralmente.
Você precisaria de propostas que engajem esses jovens, muitos dos quais precisam trabalhar logo – e trabalhar logo não significa que nós estamos lesando o direito deles de irem para o ensino superior, pelo contrário, nós estamos dando a ele instrumentos para ter uma estratégia para ingressar no ensino superior.
Eu digo isso como testemunho pessoal: eu jamais teria conseguido entrar numa faculdade se eu não já trabalhasse de dia, enquanto fazia o curso técnico de noite. Fiz um vestibular para estudar à noite na pedagogia e só consegui fazer isso porque eu tinha esse esse percurso do ensino técnico que me ajudou a poder trabalhar para me sustentar, já que vim de uma família pobre, que não podia me bancar enquanto eu fazia faculdade.
Nós temos dados que mostram que, entre os países da OCDE, a nossa quantidade de matrículas no ensino profissional no nível médio é ridícula perto dos outros. A Alemanha tem mais de 40%, quase 50% de matrículas no médio técnico. A Suíça tem quase 70%. No Brasil, temos o menor índice da América Latina, com 8%. Eu acho que tem várias alternativas para ampliar isso. Nós temos um sistema de formação profissional que é muito bom, só que ele não dá conta de atender essa demanda. Então, qualquer iniciativa de parceria, com empresas, por exemplo na área do agronegócio, é bem-vinda.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.