Educação financeira contra vício em bets ajuda, mas é preciso mais; entenda

Pressão de influenciadores, facilidade de acesso a apostas em celulares e funcionamento do cérebro exigem que políticas olhem também para a psicologia e o comportamento, dizem especialistas

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Foto do author Renata Cafardo

A educação financeira ajuda, mas não é suficiente para afastar crianças e adolescentes do vício nas bets, as apostas esportivas online. É o que dizem os próprios especialistas em educação financeira.

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“Há uma pressão grande de influenciadores, o futebol, a facilidade, o hábito de usar celular, e ainda a ilusão de gratificação imediata. O caminho está aberto demais para que esse comportamento surja”, diz a doutora em psicologia econômica, consultora e membro do comitê de pesquisa da International Network for Financial Education da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Vera Rita de Mello Ferreira. “Educação financeira não é a salvação da lavoura.”

Ela explica que, sim, é preciso educar crianças e jovens a usar conscientemente o dinheiro porque são hábitos mais fáceis de serem trabalhados cedo. No Brasil, segundo dados do Pisa, avaliação de educação da OCDE, 71,7% dos estudantes de 15 anos não conseguem fazer cálculos de um orçamento. A maioria também não entende como funcionam os empréstimos nem sabe analisar extratos bancários.

Atrativo do futebol é um dos desafios no caso das crianças e adolescentes Foto: Wpadington/Adobe Stock

No caso dos jogos de azar, diz Vera, é preciso “bombardear” com informações sobre pessoas que se endividaram e de como eles são estruturados para que, sempre, se perca mais do que se ganhe. No entanto, as apostas esportivas online são um fenômeno novo e sequer fazem parte da maioria dos currículos de educação financeira.

Para ela, as políticas públicas precisam olhar também para questões de psicologia, do comportamento, de regulamentação, de proteção do consumidor e também de como é feita a arquitetura para atrair a população de todas as idades para as apostas.

Caso contrário, só informação não resolve. “É como o bilhete da loteria que está escrito atrás que a chance de ganhar é uma em 50 milhões. Ninguém deixa de apostar por isso.”

Veja dicas de especialistas para lidar com o tema:

  • Compartilhe relatos ou histórias de pessoas que tiveram problemas com apostas, que perderam muito dinheiro, se viciaram ou tiveram consequências sérias na saúde mental
  • Não trate as apostas como algo divertido
  • Não discuta pretensas habilidades para se conseguir ganhar mais facilmente
  • Fique atento à cultura de apostas de adultos dentro da família, isso também leva a uma naturalização para crianças e adolescentes
  • Fale dos riscos, mas com equilíbrio e bom senso. Ser muito alarmista com tudo por fazer a crianças ou o adolescente ter medo de tudo ou, por outro lado, querer testar os pais
  • Discuta educação financeira e fale do valor do dinheiro, de como ele é ganho e da importância de se poupar o futuro
  • Acompanhe de perto as atividades das crianças e adolescentes em celulares e redes sociais

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Crianças veem como desafio

As ciências do comportamento mostram como o cérebro vai em busca de recompensas intermitentes, como nos mecanismos de apostas, em que ganhos são intercalados com perdas. Isso leva o cérebro a acreditar que elas voltarão a ocorrer.

No caso das crianças, diz Vera, há ainda o fato de que elas entendem o jogo como brincadeira e não compreendem ainda o valor real do dinheiro. “Tem ainda o efeito de manada: ‘todo mundo joga na escola e não quero ficar de fora’. E o desafio de aprender a fazer aquilo, é como aprender a amarrar sapato, ele quer saber os macetes”, completa.

A professora de Matemática Meire Ribeiro, de uma escola estadual em São Vicente, no litoral paulista, diz que já notou que “saber jogar nas bets” confere “status” a certos alunos na classe. “Eles pedem para esses colegas jogarem pra eles e também pedem dinheiro emprestado”, conta.

Este mês, ela trabalhou pela primeira vez o assunto nas aulas de educação financeira - que faz parte de um itinerário formativo do ensino médio na rede - em seis salas e notou como o assunto interessa. Mas sentiu dificuldade em conseguir convencê-los dos riscos. “São meninos pobres, que muitas vezes passam necessidade. Veem os influenciadores e acham que vão enriquecer facilmente.”

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O material da Secretaria Estadual da Educação traz vídeos em que especialistas falam de histórias de endividamento e riscos para a saúde mental. A professora conta que ainda ajudou alunos a fazerem contas de quanto já apostaram para mostrar que perderam mais do que ganharam. “Eu estava preocupada desde o começo do ano, mas você tem de saber lidar com os adolescentes. Não dá para tirar o celular nem fazer ele parar de jogar de uma hora para outra.”

Para Vera, uma das soluções seriam grandes campanhas com “marketing de sinal trocado” mostrando, por exemplo, histórias de pessoas que tiveram muitos problemas com o jogo, tanto financeiros quanto de saúde mental. “É preciso juntar forças, famílias e escolas, com regulamentação, trabalho com influenciadores, com adolescentes que são considerados líderes. Mas é tudo muito novo.”

Vera Rita de Mello Ferreira, doutora em psicologia econômica, diz que educação financeira precisa vir acompanhada também de políticas que olhem para a psicologia e o comportamento. Foto: Vera Rita de Mello Ferreira

Bom senso para falar dos riscos

O pesquisador do Instituto Ame Sua Mente Gustavo Estanislau, psiquiatra da infância e da adolescência, também considera que educação financeira não é suficiente e fala da importância de os pais alertarem para riscos, mas com bom senso e equilíbrio.

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“Tem mãe e pai com discurso alarmista para tudo. Aí as bets vão entrar em mais um grupo de coisas que os pais trazem. Nesses casos, as crianças começam a desenvolver senso de alarme para tudo, com medo do mundo, ou passam a bater de frente e a testar tudo porque não conseguem mais discernir.”

Ele lembra ainda que as apostas podem ser até mais perigosas se aparecerem em situações de tédio, tristeza ou baixa autoestima dos adolescentes. “Elas acabam entrando na vida deles para reduzir algum desconforto e, por isso, tendem a ser mais viciantes. Ele joga para reduzir a tristeza, se sentir melhor.”

Em nota, o Ministério da Educação (MEC) informou que a educação financeira faz parte da Base Nacional Comum Curricular e diz que as transformações na sociedade com o uso de novas tecnologias são “imprescindíveis para inserção crítica e consciente” e devem ser “incorporados pelas redes de ensino e pelas escolas”. Afirmou ainda induzir a abordagem de tais conteúdos a partir de ações como a Estratégia Nacional de Educação Financeira (Enef) e formação de professores.

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