'Ensino híbrido não vai resolver um ano e meio sem escola'

Para Paulo Blikstein, a pandemia trouxe uma ideia 'messiânica' sobre a tecnologia na educação e é preciso se preocupar com empresas tendo acesso a notas e outros dados dos alunos. Ele acha que o foco do ensino tem que continuar no professor

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Foto do author Renata Cafardo

Apesar de dedicar toda a sua carreira à pesquisa do uso da tecnologia na educação, Paulo Blikstein acha que a lição da pandemia é valorizar mais o professor. Não que o especialista em educação e ciência da computação da Universidade Columbia, em Nova York, defenda crianças em bolhas analógicas. “A tecnologia é uma ferramenta muito poderosa de criação, de motivação, de empoderamento”, explica ele, que é o criador do primeiro programa acadêmico de educação maker do mundo, o FabLearn. “Mas não adianta pegar uma aula  tradicional, que o aluno já não gosta muito, e colocar isso numa telinha de celular de 5 centímetros”.

 

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Ele está convencido de que não existe mais a discussão sobre se a tecnologia vai estar na escola e, sim, como. E a resposta são vídeos que as crianças possam fazer com celular sobre problemas da sua comunidade, fotos da vegetação da região, entrevistas com a família, projetos de robótica e programação. “Tem essa coisa messiânica de o ensino híbrido vai nos salvar, que vai recuperar um ano e meio fora da escola. O que vai realmente recuperar é o contato dos alunos com professores, a ressocialização na escola”, diz ele, que assina um relatório sobre o assunto feito para uma parceria entre o grupo D3e, Todos Pela Educação e laboratório Transformative Learning Technology, de Columbia.

 

Blikstein diz ainda se preocupar com a segurança dos dados dos estudantes, já que grandes empresas de tecnologia entraram em massa nas escolas durante a pandemia, sem legislação no País. “Imagina se tivesse um sujeito da empresa X sentado em cada sala de aula, anotando tudo o que acontece com as crianças, tirando foto delas, vendo suas notas, seria um escândalo. Mas como é tudo pelo computador, a gente acha que tudo bem.”

Especialista defende que internet deve ser material básico nas escolas Foto: Elena Durán López

 

Com a volta às aulas neste segundo semestre, a tecnologia vai estar cada vez mais presente na escola?

 

No Brasil, alunos de escolas particulares e de algumas regiões voltam em situação melhor, por estarem em situação de privilégio, tiveram aprendizado diferente com pais, família e internet. Mas tem um contingente muito grande de crianças em situação diferente. Sem condições de conectividade, sem um lugar pra estudar, não tinham quarto, uma mesa, computador, estavam assistindo aulas em condições precárias. Eles voltam não só tendo perdido o ano como esquecido muitas coisas e até com experiências traumáticas. São necessárias políticas públicas bem planejadas e realistas para recuperar. Vejo muito essa visão messiânica, milagrosa, dizendo que a gente vai usar o ensino híbrido para recuperar perdas de um ano e meio. Não tem tecnologia nenhuma que vai recuperar estar longe da escola. E, sim, o contato dos alunos com professores, a ressocialização na escola. Se for a criança da escola particular, um ou dois dias em casa, estudando no computador, no quarto, com os pais ajudando, talvez até funcione. Mas a gente está falando de um país de desigualdades gigantescas. Achar que uma criança de uma comunidade de baixa renda vai ficar três dias por semana em casa, calmamente, sentada num lugar estudando, é completamente fora da realidade.

 

O ensino híbrido não funciona?

 

O ensino híbrido virou uma jabuticaba, ninguém sabe definir e as pessoas estão fazendo uma grande confusão. Tem algumas modalidades híbridas de educação que funcionam, por exemplo, fazer projetos na sua comunidade, na sua casa, trazer dados de fora para a escola, assistir um vídeo ou até uma aula numa quantidade em torno de 10% do tempo da presencial. O dia em casa é pra fazer projetos, coletar dados, não pra ficar assistindo aula em casa. Entrevistar pessoas na sua casa ou pelo zoom, fazer projetos em casa. Se for um ensino criativo e híbrido, tudo bem, mas se for mais do mesmo, um pouco online e outro na sala de aula, não tem sentido nenhum. Infelizmente tem muita conversa de ensino híbrido que é só fazer mais do mesmo, mas um pouco mais virtual. Acho complicado confiar tanto na tecnologia sem ter evidência de que funciona. Essas soluções funcionam quando são guiadas pelo professor.

 

Qual seria a saída para essas crianças então, se todas ainda não puderem estar na escola todos os dias por causa dos protocolos?

 

Deveríamos estar pensando em fazer projetos, vamos pedir para a criança usar o celular para tirar fotos da comunidade, fazer um vídeo dos problemas, tirar foto da vegetacao da regiao, fazer um filme sobre os pratos que sua mãe cozinha, fazer projetos com tecnologia, usando várias mídias, projetos interessantes pra criança, que dialoguem com a vida dela, dos familiares. Nas redes sociais, em vez de postar memes, postar uma entrevista com o avô, um vídeo sobre o córrego da comunidade, o trânsito? Há mil possibilidades de uma educação mais relevante, que também usa tecnologia e está pouco aproveitada. Ao contrário, o que se está fazendo é pegar a aula tradicional, que o aluno já não gosta muito, e colocar numa telinha de 5 centímetros do celular. Mandar o aluno ficar horas vendo isso e depois fazer um monte de exercícios é pedir para ele se desmotivar, sair da escola. 

 

Em seu relatório mais recente você fala justamente disso: que não se discute mais se a tecnologia vai estar na escola, mas, sim, como. É disso que está falando?

 

Sim. Antigamente, o computador entrava na escola quando o governo falava que ia fazer salas de informática, o governo tinha esse monopólio de colocar a tecnologia, hoje ela já está na escola, ou por alunos que já têm celular ou por empresas que fazem projetos com escolas. Não é mais o “se”, não tem mais sentido criar uma bolha e dizer: aqui não entra tecnologia, é só livro, papel e caneta. Mas tem que pensar no “como”. Os alunos têm celular, então vamos mandar fazer pesquisas de campo. Também não pode dar tablet para as crianças e seja o que Deus quiser. Tem que ter currículos que vão usar isso de forma interessante, não é pra ler PDF ou fazer prova de múltipla escolha no tablet em vez do papel, que é a mesma coisa, mas com verniz digital.

 

Mas os professores muitas vezes não têm formação para isso. 

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A gente não pode colocar nas costas do professor e professora a responsabilidade de saber usar a tecnologia de uma forma interessante, mas as redes precisam criar estrutura para dar suporte a eles. Tem redes que criaram equipes de tecnologia pedagógica, não é o cara da TI, é uma pessoa que entende de redesenho curricular com tecnologia. Em Sobral, colocaram um professor a mais por escola, que senta com o professor e ensina a transformar a unidade curricular com tecnologia. Aí ele dá uma aula de biologia, usando robótica, programação. O professor contribui com a experiência que ele tem de sala de aula e o novo professor, de tecnologia, com ideias de como fazer aquilo mais interessante. Claro que tem custo. Mas acho melhor contratar um professor a mais por escola do que comprar 30 lousas eletrônicas que ninguém vai saber usar. 

 

E as crianças precisam ter computador para fazer essas novas aulas?

 

Num país como o Brasil não se pode esperar que toda criança vai ter um celular com internet ilimitada. Então, assim como o Estado provê carteira, livro, mesa, ele tem que prover acesso à internet e aos dispositivos. Celular e tablet não são a melhor forma, não tem teclado, a tela é pequena. Tem que ter salas para as crianças usarem computadores, laptops que podem ser compartilhados. Tem que encarar esses materiais como básicos. Há computadores de baixo custo. A USP tem um projeto que produz um computador de 40 dólares, sem monitor,  que funciona para as coisas básicas de educação. Há várias soluções para universalizar o acesso que não são comprando um macbook para 1 milhão de crianças.

 

 

Sem citar nomes, é muito preocupante elas entrarem sem um referencial de legislação. É claro que tinha uma emergência e que bom que muitas ajudaram, forneceram gratuitamente, mas quando começa a se tornar permanente é difícil. É preciso pensar sobre a proteção dos dados das crianças, onde eles estão, os pais podem requisitar, apagar, o que acontece se a empresa for vendida? A gente não tem nada equacionado. Esses dados estão sendo fornecidos para essas empresas sem que os pais e as redes de ensino tenham controle nenhum disso. Imagina se tivesse um sujeito da empresa X sentado em cada sala de aula anotando tudo o que acontece com as crianças, tirando foto delas, anotando se elas estão estressadas, vendo suas notas, seria um escândalo. Mas como é tudo pelo computador, a gente acha que tudo bem. Há uma tentativa de mistificar a tecnologia, como se ela fosse claramente benéfica e transformadora.  

 

Além dos dados, há outros benefícios para as empresas.

 

Sim. Tem uma base de usuários de graça, faz uma geração de crianças que usam a ferramenta X da empresa X, com benefícios financeiros a longo prazo. É um oportunismo na pandemia. Claro que as empresas ajudam, não é para acabar com tudo, mas isso tem que ser regulado. Tem empresa que chegou nas prefeituras e deu produto de graça, não precisa de concorrência. Há também questões ligadas ao Estatuto da Criança e do Adolescente, da publicidade infantil. Escolas com logotipo da empresa pintado na escola, nos materiais online. Como não pode ter na escola propaganda de um brinquedo, isso também não pode. Existe um discurso de falar que professor é tudo velho, o computador é muito mais personalizado, mas o professor é muito mais personalizado que um vídeo, que uma aula digital. Falam em educação 4.0, híbrida, tudo é uma cortina de fumaça para as pessoas engolirem essa presença das empresas sem controle.

 

Tem também o outro lado, dos pais que agora não querem mais nada de tecnologia na escola pelo tempo que o filho passou usando. 

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Tem o tipo de tecnologia que tem que ser controlado, quando a criança fica jogando, vendo vídeo, sendo sugado pelas telas, que foram desenhadas com esse objetivo. Ou as redes sociais, que realmente são coisas que até os adultos têm problemas em se controlar. Eu não acho que a criança tem que ir pra escola e ficar na frente de um computador, mas tem um outro tipo de tecnologia. Como ir ao laboratório de ciência e usar um computador para fazer o experimento, colocar os dados, fazer um projeto de robótica, de ativismo digital, de arte interativa. A tecnologia como matéria prima para construir coisas. É um uso muito diferente, instrumental, que não é esse viciante que a gente conhece. Essa  ideia de colocar a criança numa bolha sem tecnologia é um problema, é você tirar dela uma ferramenta muito poderosa de criação. 

 

O que fica de lição da pandemia para a tecnologia?

O que fica de lição é, primeiro, tem que levar a sério essa desigualdade de conectividade e acesso. A escola não tinha internet, mas isso nunca tinha sido posto à prova. É uma lição de casa enorme conseguir oferecer para as crianças o mesmo ponto de partida. Mas também mostrou para algumas empresas que achavam que as crianças iam ficar em casa e aprender no seu próprio ritmo...isso foi um desastre. A gente não quer esse mundo dos utopistas da tecnologia, a gente quer o mundo que as crianças vão pra escola, se sujem e convivam, aprendam de outras pessoas, conversem com outras crianças. A escola não é só lugar de aprender o conteúdo, mas de ser cidadão, ser gente, ser amigo, todas essas coisas que se achava que era secundário. Outra lição é como é importante investir no professor. Nos sistemas em que a tecnologia na educação funciona melhor, ela sempre funciona como ferramenta que é colocada na mão do professor. É algo como o médico usa a tecnologia, ele tem que saber medicina, mas às vezes ele usa uma máquina pra fazer raio x, ressonância, mas o médico tá no controle.

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