Por Fermín Damirdjian, orientador educacional do Ensino Médio
Li, há quinze anos, em uma época em que o jornal ainda reservava certa sacralidade em seu formato de celulose matinal, um artigo que me marcou. O psicanalista Contardo Caligaris discorria sobre as diferenças entre um ensino divertido e um ensino interessante. Desde então, nesse longo intervalo de tempo ocupei-me diariamente de um percurso escolar rico e intenso entre a orientação educacional do Ensino Fundamental 2 e o Médio na Escola da Vila. As cenas cotidianas, somadas a alguns elementos conceituais, continuaram a alimentar leituras antigas, tais como esse velho artigo.
Uma das cenas que me faz lembrar esse tema é a constante pergunta que surge em reuniões de pais sobre como motivar os filhos para que leiam e estudem. Sempre há, nessa pergunta, dois sentidos implícitos que se alternam de reunião em reunião: ora ela carrega um ressentimento em relação a "essa geração", pois "na minha época a gente estudava, pegava no batente", ora o ressentimento se volta à instituição: "a escola precisa se renovar e encontrar formas mais motivantes".
Comecemos pelo primeiro sentido descrito: comparações entre as gerações são inevitáveis, pois utilizamos nosso próprio repertório para entender o mundo à nossa volta. Por outro lado, não podemos nos ater à nossa experiência para nos cobrirmos de certezas, inclusive porque nossa memória nos trai: que levantamento estatístico temos para dizer que "antigamente" se estudava mais? Não será que muitos dos que não estudavam espirravam mais rápido do sistema escolar? Será que estávamos atentos a tudo aquilo que não funcionava bem, do alto dos nossos 15 ou 16 anos? E, muito além disso: será que não lembramos com saudade e nostalgia de uma época que, vista com tanta distância e estando já mais maduros, com uma vida minimamente construída, nossa memória faz uma leitura mais polida sobre o passado, o que resulta em uma espécie de romance autobiográfico com o qual nos deleitamos? Afinal, depois de passado tanto sufoco, temos direito a nos sentirmos heroicos depois de um sem-número de trapalhadas acadêmicas, amorosas, profissionais e familiares cometidas ao longo desta longa estrada da vida. Depois que tanta coisa deu errado, podemos nos enganar um tiquinho pensando que tudo deu certo. Algumas doses de otimismo retroativo podem ser necessárias para seguir avançando.
Já com relação ao segundo sentido da queixa, eu pretendo me estender um pouco mais: a escola tem que se reinventar e entreter mais os seus alunos. Tem que conquistar mais essa moçada inquieta, muito bem informada, esperta, que sabe apertar botões - ops, botões existiam até o fim dos '90, agora são telinhas - enfim, mexe com tecnologia com a mesma desenvoltura com que Louis Armstrong dedilhava seu trompete. Incrível, esse pessoal "já nasce sabendo"!
Ora, é verdade que a geração atual de crianças e adolescentes está diante de uma avalanche de estímulos que são diferentes de outrora. Isso traz muitos efeitos, e interpretá-los é uma tarefa árdua. Qualquer um que apareça com duas ou três frases definitivas sobre isso, sejam elas saudosistas ou não, está incorrendo na gigantesca tentação de entender o mundo de forma simples e apressada.
No caso do cotidiano escolar, entendemos que sim, é preciso se renovar. Mas não significa que educadores e demais cidadãos inquietos com o tema se deram conta disso agora. Há abundância de propostas transformadoras nos últimos 30 ou 40 anos - não por coincidência, em período posterior a longos ciclos de ditaduras militares na América Latina e em muitos países europeus. Basta ver a vasta quantidade de educadores de referência que proliferaram na Argentina, Brasil, Espanha ou Portugal, para ficar nos exemplos mais próximos e evidentes. A transformação de uma instituição que é, apesar de todos os seus pesares, a mais respeitada pela população, perdendo apenas para a família, como atestam algumas pesquisas, esbarra em questões políticas, mercadológicas e culturais que não são simples de superar.
Ao mesmo tempo há fundamentos elementares que, embora tenham inaugurado as primeiras décadas do século XX com a consolidação da escola como um direito fundamental, estão longe de envelhecer, pela profundidade e consistência pelas quais interpretam o ato de aprender. Muitas delas, tão díspares e amplas como a psicanálise ou os fundamentos vygotskianos, apontam para um ponto que nos interessa na discussão entre o que é divertido e o que pode ser interessante. Vejamos como.
Um dos muitos paradoxos do ato de ensinar é que o professor deve contar com a atividade intelectual do aluno. A ideia de transmitir conteúdo com a mesma mecanicidade com a qual se rega uma planta não pode ser mais considerada depois de todo o acúmulo teórico da psicologia, psicanálise, pedagogia e neurologia. Não existe aprendizagem sem atividade intelectual. O que um professor faz é oferecer as melhores condições possíveis para que o aluno abocanhe o conhecimento que lhe é exposto. E não se trata de um simples desfile de exposições acadêmicas: os professores se desdobram para não apenas "explicar direito", mas também para gerar no aluno a percepção de certa carência de modo a, diante de seu repertório prévio e de suas lacunas, apropriar-se do momento e do modo adequados para incorporar o que lhe é proposto. Mais ou menos como um urso que, ao longo de suas quatro ou cinco décadas de vida, aprende a se posicionar no lugar certo do rio a cada temporada em que os salmões resolvem subir até a nascente onde nasceram, e assim abocanhar seu almoço. O professor dá elementos e condições para que o aluno aprenda a se posicionar cada vez melhor e desenvolva sua competência para se nutrir daquilo que lhe é proposto, por meio das mais diversas estratégias didáticas.
Pois bem, isso é impossível sem que o aluno se mexa. Ora, então, como é que a escola pode motivar meu filho a aprender? O erro está em pensar que um aluno deve se mover pela motivação. A motivação pode até existir, mas não é a peça-chave. Essa chave reside muito mais na mobilização. O que se procura é que se desenvolva um movimento intelectual capaz de dialogar com o desejo individual do aluno. É nesse diálogo um tanto obscuro que transita a construção do conhecimento e do saber. Como explicar o papel da motivação de tantos alunos que, sim, tiveram ótimos desempenhos escolares em instituições tão austeras e tradicionais de outros tempos? A escola tradicional era um lugar divertido? Não necessariamente. Algo ali mobilizava alguns desses alunos. Resta saber o que ocorria com aqueles que não entravam no jogo, mas isso é outra história.
A motivação nos remete a algo mais próximo da razão: segundo o dicionário Aurélio, motivar é dar motivos, fundamentar. Ora, é claro que devemos dar os motivos de frequentar a escola e expor as razões pelas quais um aluno deve estudar. Mas garanto que isso é apenas um ingrediente, longe de ser determinante, dentre aqueles que podem fazer alguém de fato estudar. O que de fato se busca é mobilizar o aluno.
Entreter, divertir, isso pode ajudar um pouco, especialmente no ensino infantil, pois é uma linguagem mais palatável para se apresentar um determinado patrimônio cultural - a língua, a música, as habilidades matemáticas, o que for. No entanto, com o avanço da idade, os alunos estão mais aptos a se apropriar de um repertório mais complexo, sem necessariamente se divertir para tanto. Um aluno pode ser motivado a entrar em sala de aula pontualmente se lhe forem oferecidos, por exemplo, chocolates. Mas isso não servirá para mobilizar seus recursos pessoais mais profundos de modo a que aprenda mais.
Voltando ao revisionismo autobiográfico entre as gerações, será que antigamente - sabe-se lá a qual antigamente cada um se refere - os alunos não precisavam se divertir tanto para se mobilizarem intelectualmente?
Será que os adolescentes, hoje, têm acesso a tão vasta gama de entretenimentos cotidianos que perderam a capacidade de se mobilizar sem que haja uma ferramenta de diversão como mediação? É difícil responder, inclusive porque isso é uma generalização perigosa que desconsidera brilhantes criações que vemos no dia a dia escolar, feitas com imaginação, esmero e muito interesse. Mas, sim, notamos que há um imediatismo crescente e preocupante, que avança sobre alimentos açucarados, drogas e demais estímulos fragmentados de retorno curto e imediato.
Tudo isso não impede que nos preocupemos com muito do que vemos nas crianças e adolescentes de hoje. Mas não devemos esperar que a construção de conhecimento seja apenas motivadora, somente pela grande oferta de diversão que parece ter se tornado um imperativo no mundo contemporâneo. Inclusive porque há fortes indícios de que essa abundância está gerando uma perigosa falta de desejo. E sem ele não há mobilização.
Para saber mais:
CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber, formação de professores e globalização, Capítulos 4 e 5. Porto Alegre: Artmed, 2005.
CALLIGARIS, Contardo. Vida divertida ou vida interessante? Folha de São Paulo, dez/2002.
LA TAILLE, Yves de.; HARKOT-DE-LA-TAILLE, Elizabeth. Valores dos jovens de São Paulo. São Paulo: Instituto SM para a Equidade e a Qualidade Educativa, 2005.
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