Pela primeira vez na história da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), um aluno foi expulso da instituição em um caso que envolve acusações de importunação sexual, perseguição, violência de gênero e agressões de discriminação de cunho racista e nazista. O estudante, que finalizou em dezembro o 5º ano do curso, foi impedido de colar grau este mês.
O processo, que corre em sigilo e ao qual o Estadão teve acesso, começou com uma denúncia à Ouvidoria da faculdade feita pelo aluno Victor Henrique Ahlf Gomes, de 22 anos, contra a ex-namorada, que também era estudante da instituição.
Ele nega todas as acusações, alega “perseguição política” e tenta na Justiça o direito de receber seu diploma de bacharel da USP. Já a diretoria da faculdade diz que o processo corre em sigilo e ainda não transitou em julgado. Também afirma dar amplo direito à defesa (leia mais abaixo).
Após o término do namoro, ele acusou a menina de “divulgar relatos caluniosos” aos amigos em comum, com a intenção de prejudicar a sua imagem. No entanto, a faculdade investigou mensagens de WhatsApp, ouviu mais de 20 pessoas e concluiu que a ex-namorada era, na verdade, a vítima. O caso então se inverteu e a instituição abriu processo administrativo disciplinar contra Ahlf.
O namoro começou em 2021, ainda no período de aulas online, na pandemia, e foi encerrado em 2022, quando Ahlf fez a denúncia contra a menina. Em 2023, a congregação da faculdade - composta por cerca de 40 membros, majoritariamente professores de Direito da escola, como docentes titulares, chefes de departamento, membros da direção - aprovou por unanimidade a expulsão do aluno.
Alegando irregularidades formais do processo, como o não cumprimento do prazo para convocação dos membros da congregação, o estudante conseguiu na Justiça liminar para barrar a decisão e continuar frequentando as aulas.
O caso então foi analisado novamente pelo órgão máximo da faculdade em setembro de 2024. Também por maioria, foi decidida pela expulsão. Dessa vez, houve 34 votos favoráveis, sete contrários e duas abstenções.
Um dos poucos professores que votaram contra a saída do aluno, José Maurício Conti, docente de Direito Financeiro, se diz “indignado” com a decisão. “Fui juiz por 30 anos. É um escândalo, analisei o caso e estou revoltado com o que aconteceu com esse menino, um aluno espetacular.”
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Ele diz não comentar detalhes do processo pelo sigilo imposto pela Justiça. Para Conti, “professores acovardados” não quiseram se indispor com o clima que havia sido criado contra o aluno.
Durante o processo, Ahlf foi mudado de turno por exigência da USP para se manter afastado da menina, mas com decisões judiciais cumpriu seus créditos e fez inclusive seu trabalho de conclusão de curso, no qual tirou nota 10.
Poucos dias antes da formatura, no dia 4 de fevereiro, Ahlf conseguiu também liminar para participar da colação de grau, mas, na noite anterior, a procuradoria da USP reverteu a decisão. No dia da formatura, estudantes penduraram uma faixa no parlatório da instituição no Largo de São Francisco com os dizeres “abusador não é doutor”.
A conclusão dos professores que conduziram o caso é a de que o estudante cometeu “atos extremamente graves que, para além de violarem preceitos éticos fundamentais da universidade, abalaram sobremaneira a comunidade acadêmica da FDUSP”.
E que eles vão contra o regimento geral da USP, nos itens que mencionam “ato atentatório à moral ou aos bons costumes; perturbar os trabalhos escolares bem como o funcionamento da administração e desobedecer aos preceitos regulamentares”.
O relatório assinado por Rafael Mafei Rabelo Queiroz, professor livre docente do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito, diz que tratava-se de “típico relacionamento abusivo, marcado por elementos distintivos de violência de gênero” e que o aluno também “cometeu atos discriminatórios incompatíveis com as normas de convivência acadêmica da USP”.
Em depoimento para a comissão, a aluna contou que foi forçada a permanecer em um carro com Ahlf enquanto ele se masturbava no estacionamento do Shopping Pátio Higienópolis, o que é caracterizado como crime de importunação sexual. Após esse episódio, ela teria pedido a ele que não mais a procurasse, segundo indicam mensagens trocadas pelos dois.
Poucos dias depois, de acordo com a ex-namorada e com amigos dela, Ahlf teria a agredido fisicamente na própria faculdade, segurando seu braço durante uma aula da disciplina de Direito do Trabalho e exigindo uma conversa do lado de fora da sala. Ela conta ainda que passou a ter medo de frequentar a faculdade, “relatando ameaças e mensagens insistentes”, e pedia a amigos para ser buscada “no final das aulas, para que não saísse desacompanhada”.
O estudante é também acusado de perseguir e agredir verbalmente a ex-namorada com palavrões e com questionamentos sobre postagens de fotos dela com biquíni nas redes sociais e eventuais contatos com outros rapazes depois do rompimento.
Além disso, mensagens de WhatsApp aos quais o Estadão teve acesso e depoimentos de alunos indicam que ele fez comentários racistas e de cunho nazista contra outra estudante negra.
O relatório da USP cita que Ahlf teria realizado “depreciação jocosa da aparência e da residência de uma estudante negra à luz de seus ‘olhos arianos”, por ela não ter “o sangue puro dos alemães”.
Defesa fala em fragilidade das provas
A defesa do estudante nega as acusações e caracteriza a decisão como algo de “extrema ilegalidade praticada por um grupo da Faculdade de Direito munido de finalidade espúria”. Afirma ainda que há fragilidade de provas e que as testemunhas ouvidas não têm credibilidade por serem amigas próximas da vítima.
Na ação que pede a anulação da decisão, a argumentação é a de que o ocorrido “envolve aspectos da vida íntima particular (intimidade) de ambos”, fora do ambiente acadêmico, o que não justificaria a expulsão de um aluno. E diz que “a ocorrência de importunação sexual” não foi “demonstrada, pela fragilidade das provas”.
“O casal havia reatado o namoro, foram voluntariamente ao Shopping, ao estacionamento, ao carro, como qualquer casal de namorados. A troca de carícias e beijos é natural entre namorados, bem como ocorrer contato mais íntimo”, argumenta a advogada Alessandra Falkenback de Abreu Parmigiani no processo.
Ao Estadão, ela afirmou que o aluno se sente “injustiçado e perseguido politicamente, por diversidade de ideologia”. “Estamos diante de uma universidade pública, a maior da América Latina, e pela forma como a questão está sendo conduzida, ela não é aquela instituição democrática que prega”, disse. Ela afirmou ainda que não comentaria detalhes por causa do segredo de Justiça.
No seu relatório que embasou a punição ao aluno pela congregação, o professor Rafael Mafei afirma que a faculdade não tem “a missão de ser uma corregedoria dos relacionamentos amorosos de seus estudantes”. Mas que deve “reconhecer que esses relacionamentos (...) são permeados por deveres de respeito mínimo à integridade e à dignidade das partes envolvidas, cabendo à instituição zelar contra práticas de assédios e abusos quando elas atingem níveis que demandam ação institucional exatamente por prejudicarem o pleno exercício desses papéis”.
Em seus depoimentos ao processo na faculdade, Ahlf afirma acreditar que os conflitos com a ex-namorada derivam de “ciúmes dela em relação a uma outra garota” e de “inexplicável mudança repentina de comportamento dela após uma interação amorosa consensual no estacionamento de um shopping center”. Além de denunciar a aluna para a faculdade, em 2022, Ahlf também fez boletim de ocorrência e entrou com ação penal privada, por supostos crimes contra a honra.
Caso será analisado pelo órgão máximo da universidade
Depois de decisões liminares, a defesa aguarda o julgamento do mérito do processo que pede a nulidade da decisão. Ahlf também entrou com um recurso no Conselho Universitário (CO), órgão máximo da USP, que ainda não foi apreciado.
Cada faculdade tem uma congregação, que é seu principal órgão, e o CO é a instância máxima de toda a universidade.
Para a presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto, Julia Wong, a decisão é “historicamente importante” para que se “reafirme a necessidade de políticas nas universidades para coibir a violência de gênero”. “Esse comportamento precisa ser desencorajado e extinguido da faculdade.” Ela ressalta o fato de que a expulsão se deu mesmo em uma congregação da faculdade de Direito, majoritariamente composta por professores homens.
Procurado, o diretor da faculdade de Direito, Celso Campilongo, afirmou que os processos são confidenciais a ainda não transitaram em julgado em nenhuma das duas esferas. “Há de se garantir o amplo direito de defesa, a presunção de inocência e a privacidade, bem como se evitar a revitimização dos envolvidos”, afirmou ao Estadão.
A aluna envolvida - cujo nome não foi mencionado por proteção à vítima - foi procurada pela reportagem, mas o Estadão não obteve retorno. O espaço continua aberto.
Ao ser procurado, Victor Ahlf preferiu se pronunciar somente por meio da sua advogada.
Questionada sobre a existência de eventuais boletins de ocorrência contra ele, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo não localizou registros relativos às acusações citadas no processo conduzido pela Faculdade de Direito da USP.