Professores da Universidade de São Paulo (USP) estão, desde o início da semana, sendo impedidos de entrar em alguns prédios da instituição por alunos em greve, que têm feito barricadas nos portões. Nesta quarta-feira, 27, o professor titular de Direito Financeiro, Fernando Scaff, não pôde entrar na faculdade no Largo São Francisco para se reunir com a direção. “Cheguei, me viram de terno e gravata e disseram: ‘professor não entra’. São alunos de Direito impedindo um direito fundamental, de ir e vir”, diz.
Ele dá aulas na sexta-feira e acredita que não será possível fazê-la presencialmente por causa das barreiras. “A melhor saída é voltar para as aulas online imediatamente”, completa. Na pandemia, a USP chegou a ficar mais de um ano com aulas remotas.
A paralisação dos estudantes foi aprovada na terça-feira, 20. A pauta principal dos grevistas é o atual déficit no quadro de docentes. A USP perdeu 818 professores entre 2014 e 2023, como mostrou o Estadão. São 15% a menos de docentes, sem que tenha mudado o número de alunos, resultado de anos de crise financeira e da pandemia, quando não foram autorizadas novas contratações.
A reitoria apresentou um plano de novas contratações, mas isso não acalmou os ânimos na universidade. A maioria desses novos professores só deve chegar à instituição no ano que vem porque é preciso abrir editais para concursos públicos e realizar os processos de seleção, com diversas etapas.
Alunos grevistas e a Associação de Docentes da USP (Adusp) veem a proposta como lenta e ineficiente. Os estudantes que participam do movimento negam agir com violência e dizem que, se não houver restrições de acesso, a paralisação perde força.
Segundo o Estadão apurou, já há outros professores organizando suas turmas para voltar ao modelo remoto por causa da greve. A reitoria deixou a cargo dos docentes e das unidades a decisão de optar ou não pelo online por causa do movimento, que cresceu nos últimos dias na universidade, considerada este mês a melhor instituição de ensino superior da América Latina. Professores têm recebido mensagens de alunos não envolvidos na greve, questionando se devem ou não ir ao câmpus.
A professora titular do Instituto de Física Renata Funchal, a pedido dos alunos, deu aula remota já esta semana, mas a reunião online foi interrompida por estudantes em greve. “Entraram, rabiscaram o que eu estava apresentando, coisa de criança mimada. Tive que parar a aula ao vivo e gravar um vídeo”, conta.” Para ela, foi um ato violento, que não poderia ser normalizada. “Liberdade não é fazer o que quero, é ter escolhas e respeitar as escolhas dos outros. Esses movimentos são autoritários e têm reivindicações absurdas”, completa.
Renata diz que embora considere a fase de aula online na pandemia como “terrível para formação dos alunos”, voltou agora para o formato como paliativo. “É muito difícil repor aula. Para não prejudicar os alunos, resolvi fazer isso. Mas acho que quem quer ter aula deveria estar presencialmente na USP pedindo isso”, completa ela, que dá a disciplina de Mecânica Quântica para o 3º ano.
Apesar da reclamação de professores ouvidos pelo Estadão, na noite de terça-feira, 26, uma assembleia da Associação de Docentes da USP (Adusp) decidiu paralisar as atividades até segunda, 2. O gesto foi uma demonstração de apoio à greve dos estudantes. Eles vão se reunir na segunda que vem, em nova assembleia, para decidir o indicativo de greve.
Presidente da Adusp, Michele Schultz diz que ainda não é possível medir a adesão dos docentes à paralisação. Segundo ela, apesar de a reitoria ter liberado as vagas, os processos de contratação são demorados, e o problema continua na universidade. Ela dá aulas na USP Leste, uma das unidades com mais queixas de déficit de docentes.
“A reitoria tem de pensar um plano de urgência para essas unidades que tiveram disciplinas canceladas e para os alunos com formação atrasada. Poderia ser uma força-tarefa, deslocar profissionais para ajudar as unidades para isso ser feito mais rapidamente”, afirma. “Tudo isso compromete o ensino e a qualidade da USP. Essa nova posição no ranking internacional é fruto do passado.”
Em nota, a Adusp afirma que a “greve geral na USP é justa e necessária”. “É um método histórico do movimento estudantil a utilização dos piquetes para que a greve siga viva e seja respeitada pelos docentes. Para os professores que estão se queixando de não conseguirem dar aulas, o que os estudantes têm a dizer é que a nossa luta também é a luta dos docentes. Lutamos pela contratação de professores e funcionários para que nossos cursos sigam vivos e com qualidade, mas também pelo fim da sobrecarga de trabalho aos servidores que já estão em atividade na universidade.”
Barricadas no laboratório de Química
“Não entendo como impedir agressivamente de assistir aula melhora algo na universidade”, diz a professora titular de Bioquímica Alicia Kowaltowski, que também foi proibida dar aulas de laboratório na segunda-feira, 25, no Instituto de Química.
Segundo ela, o local estava tomado por carteiras, impedindo tanto a entrada dela quanto a saída de uma técnica que estava do lado de dentro. “Tinham uns 20 estudantes, de máscara, empillhando mobiliário. Tentei argumentar, mas não dava nem para conversar. Com essa violência, temos menos aprendizado, menos ciência”, diz ela.
Alicia argumenta que, apesar da reivindicação dos alunos ser para que haja mais professores, eles só estão “piorando a vida dos docentes”.
O professor Scaff diz que em anos de universidade nunca havia sido impedido de entrar “em seu local de trabalho”, apesar de ter vivenciado outras greves. A diretoria do Faculdade de Direito do Largo São Francisco afirmou, em nota, que é “inconcebível que docentes sejam impedidos pelos estudantes de ingressar em seu local de trabalho”.
Disse ainda que a instituição tem “tradição de Território Livre”, o que inclui liberdade de cátedra, pluralismo de ideias e respeito às divergências. “A imposição unilateral e excludente de um componente importantíssimo de qualquer instituição de ensino é incompatível com as tradições libertárias e de respeito às diferenças próprias do espírito acadêmico.”
O Estadão esteve na Faculdade de Direito nesta quarta. O principal prédio da unidade está com as duas entradas bloqueadas, com objetos - como lixeiras e bancos de madeira - e com o acesso controlado por alunos.
Em uma negociação com a diretoria da faculdade, na última terça, a administração acatou alguns dos pedidos dos estudantes sob a condição dos alunos desbloquearem as entradas, o que foi negado pelos manifestantes. “Se a gente deixar de controlar as entradas, desfazer o piquete, as aulas vão ser retomadas e tudo vai voltar ao normal”, disse ao Estadão um dos estudantes, que pediu para não ser identificado.
“Não estamos parados e à toa”, acrescentou à reportagem outra aluna, também do centro acadêmico do Direito, e que pediu anonimato.
Os alunos alegam que não estão impedindo a entrada de professores, mas admitem que o trânsito é facilitado para pessoas que apoiam a greve. Eles reclamaram de professores que passaram a decidir dar dar aulas de forma remota.
O Estadão também percorreu a Cidade Universitaria, onde constatou que praticamente não havia aulas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), na Escola de Comunicações e Artes (ECA), na Arquitetura (FAU) e na Escola Politécnica. A maioria das entradas estava também fechada com barricadas e estudantes, mas a reportagem não presenciou confrontos.
A assessoria de comunicação da ECA informou que, na unidade, os professores têm respeitado o movimento dos estudantes e interromperam as aulas esta semana. Na Poli, a diretoria suspendeu as aulas da graduação, durante dois dias, em virtude da greve. A expectativa é que elas voltem nesta quinta-feira.
Na pós-graduação, algumas aulas continuavam normalmente. No Instituto de Matemática e Estatística (IME), a barreira de piquetes, vigiada por um aluno de graduação, podia ser ultrapassada por professores e alunos da pós. Na Poli, também havia pós-graduandos em atividades.
Reivindicações dos alunos
Nos últimos meses, por causa da falta de professores, disciplinas obrigatórias não puderam ser oferecidas, atrasando a formatura em alguns cursos. A reitoria havia autorizado a contratação de 879 profissionais, de forma escalonada, até 2025, e teve de adiantar o processo por pedidos de faculdades e pressão dos estudantes.
Para os alunos em greve, a solução, além de ser muito demorada, é insuficiente. Segundo eles, a decisão considera apenas a reposição do número de professores que desligados entre 2014 e 2023, sem levar em conta questões como envelhecimento de docentes, que leva a menor capacidade de dar aulas, e os novos cursos criados – caso da habilitação em Coreano, no curso de Letras, que hoje está praticamente paralisada pela falta de professores.
Na semana passada, o reitor Carlos Gilberto Carlotti Junior e outros representantes da reitoria se reuniram com dez alunos que fazem parte do movimento de greve. A representante do Diretório Central de Estudantes Sofia Rochi afirmou que “foi uma abertura ao diálogo, mas nada foi decidido, nem deliberado. Nós estudantes colocamos nossas reivindicações, mas sentimos a reitoria inflexível”. Uma próxima reunião deve ocorrer nesta quinta-feira, 28.
Outra reivindicação dos estudantes é o Programa de Apoio à Permanência e Formação Estudantil (PAPFE). No ano passado, a USP aumentou as bolsas de auxílio de R$ 500 para R$ 800, além de mais R$ 500 para aqueles que vivem na moradia da universidade. No entanto, os alunos ainda consideram os valores insuficientes para se manterem em São Paulo.
O novo programa também eliminou um auxílio permanência específico para alunos da USP Leste, de R$ 250 adicionais. Estudantes da unidade afirmam que o perfil no local é majoritariamente pobre, trabalhador, e que por isso demanda um valor maior em comparação ao que recebem os que estão na Cidade Univeristária, na zona oeste.
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