Guedes diz que Fies bancou universidade até para filho de porteiro que zerou o vestibular

Sem saber que era gravado, ministro da Economia afirmou que o governo federal deu bolsas para 'todo mundo' e que 'desastre' enriqueceu meia dúzia de empresários

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BRASÍLIA - Sem saber que era gravado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, reclamou que o governo federal deu bolsas em universidades para “todo mundo” por meio do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). Segundo o ministro, que não citou detalhes ou provas, até quem não tinha a “menor capacidade” e "não sabia ler nem escrever" entrou na graduação por esse caminho. Guedes disse que o filho do seu porteiro foi beneficiado mesmo após zerar o vestibular, ainda que o programa tenha exigências de nota mínima para aprovar o financiamento.

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Para o ministro, o Fies foi um “desastre” que enriqueceu meia dúzia de empresários. As falas de Guedes foram feitas em reunião do Conselho de Saúde Suplementar (Consu), na terça-feira, 27. “O porteiro do meu prédio, uma vez, virou para mim e falou assim: 'Seu Paulo, eu estou muito preocupado'. O que houve? 'Meu filho passou na universidade privada'. Ué, mas está triste por quê? 'Ele tirou zero na prova. Tirou zero em todas as provas e eu recebi um negócio dizendo: parabéns, seu filho tirou...' Aí tinha um espaço para preencher, colocava 'zero'. Seu filho tirou zero. E acaba de se endereçar a nossa escola, estamos muito felizes”, disse Guedes.

Além do ministro da Economia, participaram da reunião o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, da Justiça, Anderson Torres. Ainda acompanharam o debate representantes do Ministério Público Federal (MPF) e da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). No mesmo encontro, Guedes disse que o chinês “inventou” o novo coronavírus e desenvolveu vacinas menos eficazes do que as dos EUA. Já Ramos afirmou que se vacinou “escondido” e que incentiva o presidente Jair Bolsonaro a se imunizar por temer pela vida do mandatário. Mais tarde, Guedes se desculpou sobre a menção à China e Ramos negou que tentou passar despercebido ao se vacinar.

Paulo Guedes, ministro da Economia de Jair Bolsonaro Foto: Gabriela Biló/Estadão

Queiroga alertou os colegas que a reunião estava sendo gravada após mais de 40 minutos de debate. “Só não manda para o ar, por favor”, disse Guedes. A Saúde chegou a transmitir parte das falas dos ministros, mas retirou o vídeo das suas redes sociais. O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) apresentou requerimento na CPI da Covid-19 no Senado para ter acesso à íntegra do encontro.

Após citar o suposto caso do filho do porteiro, Guedes disse que “botaram todo mundo” na universidade. “Deram bolsa para quem não tinha a menor capacidade. Não sabia ler, escrever. Botaram todo mundo. Exageraram. Foi de um extremo ao outro”, afirmou o ministro.

O Fies é um programa do governo federal que concede financiamento para estudantes cursarem o ensino superior em universidades privadas. Pelas regras mais recentes, pode receber o financiamento quem participou do Enem, a partir de 2010, e obteve média aritmética das provas igual ou superior a 450 pontos e não zerou a redação. Criado em 1999 e ampliado em 2010, o programa já teve critérios diferentes. Guedes não citou quando o suposto filho de seu porteiro foi beneficiado. O recorde de vagas ofertadas pelo Fies ocorreu em 2014: 732 mil. Em 2020, foram apenas 100 mil.

As críticas de Guedes ao Fies foram feitas no momento em que o ministro defendia que a iniciativa privada é mais eficiente que o poder público. O programa, porém, foi apontado como exemplo de que é preciso ter cautela ao subsidiar o acesso ao serviço privado. “Foi de um extremo a outro”, disse o ministro.

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Guedes afirmou que percebeu a deficiência da rede pública e passou a investir, décadas atrás, na educação privada. “Acho que vai acontecer a mesma coisa na saúde”, disse Guedes. Ele chegou a dizer que uma solução para garantir o acesso da população aos serviços de saúde seria a entrega de “vouchers”. "Você é pobre? Você está doente? Está aqui seu voucher. Vai no Einsten, se você quiser", declarou o ministro, em referência ao Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.

Para ilustrar a crise na educação, Guedes disse que as universidades estão em estado “caótico”. “Paulo Freire. Ensinando sexo para criança de 5 anos. Todo mundo... maconha, bebida, droga. Dentro da universidade. Estado caótico. Eu prevejo o mesmo fenômeno para a saúde”, disse o ministro.

Após descobrir que estava sendo gravado, Guedes disse que as críticas tratavam apenas de algumas universidades. Ele afirmou ainda que estudou em escolas públicas e disse ser a "prova viva" de que com "algum investimento" uma pessoa pode sair da classe média baixa e ter "sucesso na vida profissional". Procurada, a Economia não se manifestou sobre as falas de Guedes.

Para o ministro, o Estado brasileiro "quebrou" e não tem capacidade de acompanhar inovações na educação e saúde. "Quebrou no exato momento em que o avanço da medicina, não falo nem da pandemia. Falo do direito à vida. Todo mundo quer viver 100 anos, 130 anos. Todo mundo (quer) procurar serviço público. E não há capacidade instalada no setor público para isso. Vai ser impossível", disse Guedes.

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Problemas no Fies

Doutor em Educação e professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), Gregório Grisa afirma que a manifestação de Guedes é "preconceituosa" e sem respaldo em dados do Fies. O professor pondera que o programa tem problemas, passou por expansão descoordenada e encolheu por impactos da crise econômica, mas afirma que dados de evasão entre alunos com o financiamento, por exemplo, são até menores do que dos estudantes que não tem o apoio do governo. Além disso, as notas do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), que avalia concluintes da graduação, são niveladas. "Os alunos (com contrato do Fies) partem de patamares diferentes, têm menor renda, e conseguem nota igual a de estudantes regulares no Enade", afirma Grisa.

Ex-secretário de Educação Superior (2013-2014) e professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), Paulo Speller afirma que o Fies ajudou a ampliar o acesso à universidade aos estudantes mais pobres. “O número de pessoas alfabetizadas e com formação vem crescendo. O acesso ao ensino superior faz diferença na renda das pessoas”, afirma. Ele disse que Guedes pode ter usado um exemplo exagerado ao citar que uma aluno com nota zero foi aprovado no Fies. "Com nota zero, até onde estou informado, é impossível. Eventualmente alguma faculdade particular pode até facilitar a entrada, mas não com bolsa do poder público. Sempre há um critério", disse.

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Na reunião, Guedes declarou que vê duas formas de "ajudar o pobre" neste cenário de crise do setor público. "Uma é direto na veia. Você dá o dinheiro pro pobre. (O auxílio emergencial) Foi a maior redução de pobreza em 40 anos no Brasil. Outra é a forma antiga de Brasília, que é assim: monta um ministério. O ministério passa o dinheiro para o banco público. Repassa para uma agência autônoma (...) Um dia, dos 100 que você emprestou chega 1 no pobre", declarou o ministro.

Já para ilustrar a suposta ineficiência do SUS, Guedes disse que um paciente fica "8 dias deitado" no hospital público, depois de uma cirurgia, enquanto a alta ocorre na manhã seguinte em uma unidade privada. "No hospital privado, chega e bate na porta: 'Fez cirurgia ontem de apendicite?' De manhã cedo, 'está com febre?' 'Não'. 'Vamos embora. Vamos sair da cama aí, pô. Vai ficar na cama, não. Desalojar.' No hospital público o cara fica 8 dias deitado, aí tem uma fila no corredor querendo entrar. Não tem gestão", declarou Guedes.

Toda a fala de Guedes começou após o ministro demonstrar surpresa e apoio ao descobrir que operadoras de saúde têm de fazer reembolso ao SUS por serviços prestados na rede pública a usuários dos planos privados.

O ministro da Saúde disse que as declarações do ministro reforçam a agenda liberal do governo Bolsonaro, mas afirmou que universidades públicas formam os melhores profissionais de saúde no País e lideram pesquisas na área. Queiroga disse que falta transparência em dados do setor privado, como de internações e mortes pela covid-19.

"Vamos ficar envergonhados da mortalidade do público", disse Guedes, sobre a possibilidade de ter mais dados da rede complementar. "Quando mais a gente conseguir descarregar para o outro lado, melhor", completou o ministro, em referência a aumentar o número de clientes dos planos privados. Na reunião, Guedes disse que o governo deve fazer serviços públicos de "elite". "Que sejam as melhores possíveis. Mas não tenhamos a ilusão de que será possível fazer uma rede pública para atender todo mundo", afirmou o ministro.

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