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Como freio do MEC à educação a distância pressiona ensino superior privado, órfão do Fies

Governo paralisa por 9 meses aumento do mercado que disparou após fim do financiamento estudantil; maioria em faculdades particulares está no EAD, com questionamentos de qualidade

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Foto do author Renata Cafardo
Atualização:

O setor do ensino superior privado no País cresceu nos últimos anos órfão do Fies (financiamento estudantil) e ancorado nos cursos a distância, que se tornaram o novo alvo de atenção do Ministério da Educação (MEC). Pela primeira vez na história, a maioria dos alunos de graduação em instituições particulares não está mais no ensino presencial.

Mas a falta de regulação somada a questionamentos de qualidade fez o governo barrar a ampliação da EAD até março de 2025 e traz incertezas sobre o futuro das universidades e faculdades privadas.

As mudanças no mercado - agora fechado por nove meses - podem favorecer os grandes grupos educacionais. Eles concentram o maior número de vagas e dos polos de ensino a distância, instalações obrigatórias para cursos EAD, cuja abertura foi facilitada nos últimos anos. Desde 2018, o MEC não precisa autorizar previamente a criação de polos ou sequer visitá-los para avaliação.

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Nove instituições têm 67% dos 4,1 milhões de alunos em graduação a distância no País. A maior delas é a Vitru Educação, empresa que entrou na B3 em maio, mas já havia aberto capital na Bolsa de Nova York. Dona da Unicesumar e da Uniasselvi, tem cerca de 700 mil estudantes a distância e 20 mil presenciais.

Segundo relatório da consultoria Hoper Educacional, feito com dados do censo do MEC, em seguida estão Kroton e Yduqs, donas de marcas como Anhanguera e Estácio, respectivamente.

Especialistas do setor ouvidos pelo Estadão reconhecem que o mercado precisa de um novo marco regulatório, mas fazem críticas à suspensão imposta pelo governo. Uma portaria, no começo do mês, proibiu a abertura de polos, autorização de novos cursos e a expansão de vagas nos que já existem até 2025. A suspensão atinge apenas o setor privado.

As medidas paralisam um mercado responsável por 78% do ensino superior brasileiro: dos 9 milhões alunos de graduação do País, 7,3 milhões estão no sistema privado e 2 milhões em universidades públicas.

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EAD facilita acesso de população mais pobre, mas lacunas de regulação ampliam debate sobre qualidade Foto: Werther Santana/Estadão

Uma das justificativas do MEC é também a de colocar freio em um cenário de ociosidade e evasão. Há 20 milhões de vagas autorizadas em EAD no Brasil e só 4 milhões ocupadas, segundo dados oficiais. São mais de 40 mil polos, centenas sem nenhum aluno.

Além disso, os referenciais de qualidade para os cursos a distância são ainda de 2007, quando as possibilidades de ensino mediado pela tecnologia eram muito menores.

‘Expansão desordenada e descontrolada’

“A EAD é uma estratégia importante no processo de expansão do ensino superior, com democratização e desconcentração. Mas o que a gente observa é uma expansão desordenada e descontrolada”, disse ao Estadão Marta Abramo, secretária de Regulação e Supervisão da Educação Superior (Seres) do MEC.

Segundo ela, após esse período de suspensão, o governo vai propor um decreto que dará as diretrizes para a nova regulação e avaliações da área.

Atualmente, não há regras sobre a quantidade de horas curriculares que precisam ser presenciais, como deve ser a relação entre tutores e alunos, qual a estrutura de um polo nem como os estudantes precisam ser avaliados.

Isso em um mercado que cresceu 700% em 10 anos em número de cursos. De cada 10 alunos que ingressam hoje no ensino superior, 7 vão para a educação a distância.

“A EAD cresceu tanto que o MEC não consegue exercer seu papel de regular e de avaliar qualidade”, resume João Mattar, presidente da Associação Brasileira de Educação a Distância (Abed).

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As restrições impostas pela gestão Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao EAD vêm desde o ano passado, quando o ministro da Educação, Camilo Santana, declarou que “acabaria com licenciaturas 100% a distância” no País.

Em novembro, o governo suspendeu processos de autorização em 17 áreas e depois articulou com o Conselho Nacional de Educação (CNE) novas diretrizes para os cursos de formação de professores, que limitaram em 50% a parte do currículo que pode ser oferecida a distância.

“A única política de expansão do ensino superior que deu certo após o Fies foi a EAD, que não onera os cofres públicos, consome recurso zero da União”, diz o consultor João Vianney, da Hoper Educacional.

Seu argumento é repetido por 10 de 10 defensores da EAD no País: a inclusão dos alunos de baixa renda. De fato, quem faz graduação a distância são trabalhadores, integrantes de famílias com menos escolaridade, mais velhos, com predominância de pretos e pardos e moradores das periferias e do interior do Brasil.

“Era aquele aluno que fazia o curso noturno, pegava um ônibus na sua cidade no fim do dia para fazer faculdade na outra cidade maior. Ele agora está na EAD”, completa Vianney.

A mensalidade média de um curso a distância no País é de R$ 233, enquanto no ensino presencial é de R$ 750. A modalidade que hoje sustenta o ensino superior privado, no entanto, também sai mais barata para as instituições, com menos profissionais contratados, menor estrutura e possibilidades de ganhos na escala.

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Dados do MEC mostram que há 171 alunos para cada professor em EAD, já que muitas aulas são gravadas em vídeos e usadas de forma maciça, enquanto a taxa é de 48 por estudante no presencial.

Há polos que funcionam em escolas, mas há denúncias de espaços em borracharia ou postos de gasolina - muitas vezes eles são usados apenas para provas.

Os dados de avaliações do próprio ministério são inconclusivos para se determinar que os cursos ou formandos de EAD têm resultado pior. São tantos indicadores e carentes de atualização que ora alguns mostram certa desvantagem para os alunos de EAD ora indicam o contrário ou nenhuma diferença.

“Independentemente do resultado, não tem como fazer formação de qualidade do professor, à altura dos desafios do mundo moderno, em EAD. É um profissional que exige interação constante, desenvolvimento de habilidades relacionais”, diz Olavo Nogueira, diretor executivo do Todos pela Educação, movimento que assumiu posição forte contra a modalidade na formação docente.

“Não que não haja problemas de qualidade no presencial também, mas o EAD não pode ser a estratégia de política educacional para formação de professores.” Os campeões da EAD são justamente os cursos de Pedagogia, com 650 mil alunos.

Em países como Finlândia, Chile e Cingapura não é permitida a formação docente a distância, mesma proibição dada a graduações de Medicina.

A entidade defende que o governo crie uma espécie de ProUni para professores, com bolsas em universidades privadas integrais, curso presencial, estágios e incentivo financeiro para bons alunos.

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Desidratação do Fies

“O crescimento da EAD está conectado com a pandemia, com a revolução tecnológica, mas também com a desidratação do financiamento”, completa Henrique Lago da Silveira, sócio da área de educação do escritório Mattos Filho. “Ela acolheu os ‘órfãos’ do Fies.”

O sistema de financiamento do governo federal foi uma grande alavanca para ensino superior privado a partir de 2010, quando o então governo Lula facilitou contratos. A falta de planejamento na concessão do crédito levou ao que ficou conhecido como farra do Fies e a uma grande inadimplência em 2015. Com as mudanças no programa, hoje só 5% dos alunos são atendidos pelo financiamento, índice que chegou a 28%.

Para Silveira, é positivo um marco regulatório, mas é preciso construir um referencial de qualidade que não seja só baseado em titulação de professor, regime de dedicação exclusiva, infraestrutura. “Muitas vezes o aluno quer ter aula com quem está no mercado, não precisa ser doutor, e não faz diferença se é uma aula síncrona (com transmissão em tempo real), gravada”, afirma.

Na opinião do especialista, a suspensão na EAD pode criar problemas como os que ocorreram com os cursos de Medicina, que ficaram proibidos de serem abertos por anos, causando uma guerra de liminares na Justiça.

A decisão final saiu no começo do mês, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que a abertura de novos cursos siga as regras previstas no edital do programa Mais Médicos, cuja constitucionalidade vinha sendo questionada. “Quem tinha vagas valorizou muito nesse período, se criou uma escassez artificial no mercado. O argumento é que haveria uma reforma regulatória, que não ocorreu”, afirma.

A confusão na Medicina dividiu o setor. Presidente da Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup), Elizabeth Guedes elogia a decisão e diz que o STF “pacificou o mercado” e “acabou com a farra de liminares motivadas pela ganância e não pelo ensino”.

Os cursos de Medicina são minas de outro do setor, com mensalidades médias de R$ 9,7 mil. Um dos grupos que mais cresceram nos últimos anos foi Afya, que comprou instituições com cursos médicos e hoje tem 60 mil alunos. Listada na Bolsa de Nova York, já é um dos nove maiores grupos de ensino superior privado no País.

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“Os pequenos vão ficar nove meses alijados de poder entrar no mercado, cria uma concentração, favorece os grupos grandes que já têm muitas vagas”, diz Mattar, sobre a suspensão de novos cursos e vagas na EAD.

“É positivo ter novos referenciais de qualidade, mas a paralisação susta a evolução do ensino superior e quem poderia mostrar novos caminhos, em lugares de necessidade social” completa a presidente do Semesp, Lucia Teixeira, também representante do setor.

Instituições reclamam que as estratégias para 2025 estão agora comprometidas, já que os planos teriam de ser finalizados no fim deste ano, quando a portaria ainda estará valendo.

Beth Guedes, que é irmã do ex-ministro da Economia Paulo Guedes, evita criticar as medidas do governo Lula e afirma que não há “richa ou animosidade” com o setor. Mas avisa que vai pedir ao MEC que o prazo de março de 2025 seja revisto para não “fechar o mercado”.

“Houve expansão absurda sem avaliação. As instituições que oferecem com qualidade se veem envolvidas com outras que operam de forma paralela”, afirma. “É preciso definir o que são metodologias mediadas por tecnologias. Não é só botar legenda no vídeo e falar que é carga horária.”

O presidente da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES), Celso Niskier, também vê canais de diálogo com o governo, mas reforça que o MEC precisa considerar as várias formas de ensino híbrido disponíveis e ainda criar novas diretrizes curriculares que considerem as inovações tecnológicas.

“Elas precisam ser atualizadas ano a ano por conta das mudanças do trabalho. Nenhuma delas fala de inteligência artificial, por exemplo”, afirma.

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“Quando não há regras claras, o mercado se perde. Mas precisamos de regulação mais moderna, mais eficiente, sem caráter policialesco. Não dá para dizer que tudo é picaretagem e carimbar EAD como segunda categoria”, acrescenta Niskier.

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