Aos 17 anos, Kelly Pereira, caloura do curso de Engenharia de Alimentos do Instituto Mauá de Tecnologia, é a primeira pessoa da família a ingressar no ensino superior. Filha de um confeiteiro e de uma camareira, ela cumpriu toda a trajetória escolar em escolas públicas e escolheu a Engenharia de Alimentos depois de buscar informações sobre os cursos mais alinhados aos seus interesses. “Percebi que é um curso muito técnico, com perspectivas de aplicações ligadas à medicina, ao direito e à sustentabilidade, áreas que me atraem. Sinto que é como se esse curso tivesse sido desenhado sob medida pra mim.”
Para chegar a essa conclusão, Kelly precisou superar o desestímulo estrutural à presença de mulheres nas ciências exatas, preconceito que influencia o meio escolar, as famílias e o conjunto da sociedade. O resultado disso, do ponto de vista estatístico, é que a proporção feminina nos cursos de Engenharia no Brasil limita-se a 25%, contra 60% de participação no ensino superior como um todo. Em alguns cursos, como Engenharia Mecânica e Engenharia da Computação, o índice cai para 10%. Na edição mais recente do Enem, em que as mulheres corresponderam a 52% do total de candidatos, apenas 18% delas optaram pelas engenharias, enquanto mais de 70% se inscreveram nos cursos de Saúde e Ciências Sociais.
O valor do exemplo
Adriana Tonini, professora da Universidade Federal de Ouro Preto e presidente da Associação Brasileira de Educação em Engenharia (Abenge), considera que um dos pontos cruciais para impulsionar o interesse das meninas desde cedo pelas engenharias é que elas tenham acesso a exemplos inspiradores de sucesso na carreira. Pesquisa realizada recentemente pela organização Força Meninas com 1,4 mil meninas de 10 a 17 anos, alunas de escolas públicas e privadas em todo o País, revelou que 57,1% delas não conhecem uma mulher sequer que trabalhe nas áreas de ciências, tecnologia, engenharia e matemática. “É um círculo vicioso que se reflete no mercado de trabalho, onde as mulheres não encontram oportunidades iguais para crescimento profissional e equiparação de cargos e salários”, diz a presidente da Abenge.
Liedi Bernucci conhece bem o poder do exemplo. Ela foi a primeira mulher eleita para dirigir a Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP),em 2018, para um mandato de quatro anos – a instituição contava 124 anos de existência naquele momento. “Quando fui eleita, formou-se uma fila de professoras, alunas e servidoras para me cumprimentar. Senti ali que teria um papel a cumprir não apenas como diretora, mas também em relação à representatividade feminina.” Por coincidência ou não, no período em que ela esteve na direção da escola, houve um momento em que 10 das 11 instituições acadêmicas, conhecidas como “centrinhos”, estavam sendo presididas por alunas.
Hoje, a Poli tem 20% de participação feminina nos cursos de graduação e 25% nos cursos de pós-graduação. No corpo docente, as mulheres são 13% do total e apenas 9% entre os professores titulares. Certamente é pouco, mas um olhar em perspectiva pode mudar essa percepção. A Poli foi a última faculdade da USP a ter uma mulher como professora titular – o pioneirismo coube a Maria Cândida Reginato Facciotti no ano 2000, quando a escola já somava 107 anos de existência.
Mundo fascinante
Para criar pontes entre jovens no início da trajetória e profissionais consolidadas, o Instituto Mauá de Tecnologia está lançando neste ano um projeto de mentoria para suas alunas – a ideia é que cada uma das inscritas seja acompanhada por uma mentora experiente, processo que se estenderá entre abril e outubro, com dois encontros mensais. Ávida por essa troca de experiências, Kelly já se inscreveu. “Sempre fui entusiasta das histórias das mulheres cientistas, é algo que adoro estudar e conhecer. Tanto que minha autora predileta, Ali Hazelwood, trata desses temas.”
Uma das 37 mentoras já confirmadas do projeto – todas voluntárias – é Ana Paula Serra, pró-reitora de graduação do Instituto Mauá de Tecnologia (primeira mulher a ocupar o cargo, a propósito). Ela está celebrando um aumento de 23% para 29% na presença feminina no primeiro ano dos cursos da instituição em 2025, resultado que credencia as iniciativas como um trabalho ativo de divulgação no ensino médio. “Sabemos que é preciso começar ainda mais cedo, no ensino fundamental, para mostrar às meninas que o mundo das exatas é fascinante e que há lugar para elas nesse mundo.”