Brasileiros temem fim de ‘sonho canadense’ após novas regras de imigração e crise política no país

Obtenção de residência permanente ficou mais difícil nos últimos anos. Problema migratório tem elo com crise política que fez primeiro-ministro renunciar; governo diz que foco é tornar quem já está no país morador definitivo, mas sem pressionar serviços sociais

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Foto do author Isabela Moya
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O Canadá tem fama de receber profissionais estrangeiros de “braços abertos”. Não é para menos: em 2021, 23% da sua população já era de nascidos fora do país. Esse cenário fez com que muitos brasileiros - e outros estrangeiros - migrassem atrás do “sonho canadense”.

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A lista de atrativos inclui segurança nas ruas, facilidade de imigração, empregos de sobra e pagos em dólar, bons sistemas de saúde e educação, além da alta internacionalização. Mas, nos últimos anos, as regras ficaram mais restritivas.

Até 2023, obter visto de residente permanente no Canadá era bem mais simples do que nos Estados Unidos ou na maioria da Europa. Bastava ser aceito em instituição de ensino superior canadense para conseguir visto de estudante, o que dava direito a trabalhar meio período. Após concluir o curso, a permissão de trabalho era estendida para tempo integral por até três anos.

Esse tempo geralmente era suficiente para dar início ao processo do “green card canadense”, isto é, o status de residente permanente no Canadá. Esse documento concede ao estrangeiro quase todos os direitos de um cidadão local, com exceção de votar e se eleger para cargos políticos.

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Niina Daccache e Rodrigo Rühee moram no Canadá desde 2021, mas os planos feitos na época para continuar no país não são mais válidos nas regras atuais e eles temem precisar retornar ao Brasil Foto: arquivo pessoal

As condições para imigrar ficaram mais rígidas em 2024. O número de residentes não permanentes no país triplicou em três anos - subiu de cerca de 1 milhão em 2021 para 3 milhões no terceiro trimestre de 2024. A pressão migratória é um dos motivos por trás da renúncia do premiê Justin Trudeau nesta semana.

Ao Estadão, o governo canadense disse que o foco é tornar os atuais residentes temporários permanentes. Esses imigrantes “continuarão a apoiar a força de trabalho e a economia sem colocar demandas adicionais” nos serviços sociais, “já que estão estabelecidas no Canadá com emprego e casa”. Por outro lado, afirmou que as universidades atraíram número crescentes de estudantes, que ficaram “sem suporte adequado”.

Agora, muitos brasileiros que imigraram recentemente para o Canadá estão voltando. Outros seguem por lá, mas sem saber se os anos e os dólares investidos no plano serão, de fato, compensados.

Gabriel Borges, de 42 anos, é um dos brasileiros que foi “tentar a vida” no Canadá. Ele abriu mão de uma vida confortável no Brasil, com emprego estável como recrutador de talentos, além de condição financeira de classe alta, atraído pela “sociedade multicultural e mercado de trabalho dinâmico canadense”, conta.

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O plano era uma “receita de bolo” seguida por muitos brasileiros. O migrante vai estudando, pode trabalhar meio período (20 horas por semana), e o cônjuge tem direito a visto de trabalho em tempo integral. “O filho, a partir dos 4 ou 5 anos, pode ir para a escola pública gratuitamente. Após a formatura, você tem de um a três anos de visto de trabalho”, descreve ele.

“Na época que eu vim, não era uma questão de se, mas era uma questão de quando”, diz Borges. Durante esse período de quatro a cinco anos, o estrangeiro se torna apto a acumular os pontos para conseguir um convite para aplicar para a residência permanente canadense.

Foi exatamente essa “receita” que Borges seguiu em 2016, quando veio com a esposa, inscrita em um mestrado, e seu filho de 3 anos. Deu certo: em 2019, ele já era um residente. Hoje, trabalha em uma multinacional como gerente global de aquisição de talentos, e teve mais um filho, já no país norte-americano.

Para aplicar para a residência, o Canadá tem um sistema de pontos. Ao alcançar pontuação mínima, o estrangeiro pode receber um convite para, caso queira, aplicar para o processo que lhe permite morar no país e usufruir de todo o serviço público.

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Os pontos levam em conta principalmente os critérios de:

  • Idade: candidatos mais jovens tendem a receber mais pontos, pois são entendidos mais anos potenciais de contribuição para a força de trabalho;
  • Nível de Educação: um nível de educação mais alto tende a resultar em pontuação maior;
  • Experiência Profissional: a experiência de trabalho, tanto no Canadá quanto internacionalmente, contribui para a pontuação, mas a prática no país é especialmente valorizada;
  • Proficiência Linguística: quanto melhores as habilidade em inglês e/ou francês - que são avaliadas por meio de testes de proficiência -, maiores os pontos recebidos

Fatores como ter familiares no Canadá, uma oferta de trabalho de um empregador canadense ou experiência de trabalho ou estudo prévio no país aumentam a pontuação de um candidato. Além disso, as habilidades linguísticas, experiência de trabalho e educação do cônjuge do candidato também contribuem para a pontuação total.

Para receber o visto de estudante, é preciso também comprovar capacidade financeira de se manter, ainda que seja permitido trabalhar. Isso faz com que os candidatos sejam, em sua maioria, pessoas de classes sociais mais altas - um perfil distinto aos que buscam imigrar nos Estados Unidos.

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O engenheiro Eduardo Gomes, 43, decidiu voltar do Canadá, onde morou durante dois anos, para o Brasil, após perceber que não conseguiria os pontos necessários para residir no país Foto: arquivo pessoal
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Com planos semelhantes aos de Borges, o engenheiro mecânico Eduardo Gomes, de 43 anos, chegou no Canadá em 2022, mas voltou em 2024, quando seus planos não saíram como o imaginado.

Ele havia cursado uma pós-graduação em uma instituição canadense a distância, na pandemia. Mesmo assim, o país garantiu seu direito de trabalho de um ano (prorrogado posteriormente por mais um ano e meio) ao se graduar. Ele conseguiu emprego em uma multinacional fabricante de produtos de célula de combustível e um lugar para morar na região de Vancouver.

Mas, durante os dois anos em que morou lá, não se adaptou, e as novas restrições do governo canadense fizeram com que desistisse de buscar a residência permanente.

“Enfrentei problemas pessoais, não consegui fazer amigos, me sentia sozinho, deprimido. Ao mesmo tempo, o governo começou a restringir a permanência de imigrantes com vistos temporários, como o meu. Chegou num ponto que a pontuação (cobrada pelo governo canadense) estava tão alta que eu não ia conseguir o convite para aplicar para o visto de residente permanente”, relata.

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O engenheiro relembra o susto que tomou quando juntou os documentos para aplicar para a residência. “Olhei no site do governo pra ver como estava, e a pontuação mínima (para receber o convite) havia quase dobrado”.

Assim como Gomes, a psicóloga Nina Daccache também se mudou para o Canadá no pós-pandemia e tem passado por dificuldades para conseguir a residência permanente. Ela chegou ao país em 2021, junto com o marido. Eles moravam na Nova Zelândia e, pensando em crescimento profissional e qualidade de vida para criar a família, optaram pelo Canadá.

O marido de Nina foi como estudante, podendo trabalhar meio período, e ela, como cônjuge do candidato, trabalhando em período integral na área de RH, a mesma em que atuava no Brasil. Após a formatura dele, o casal recebeu permissão para trabalhar no país por mais três anos, até 2026. Até lá, planejam conseguir o convite para a residência permanente, mas temem que os cerca de US$ 35 mil dólares (R$ 215 mil, na cotação atual) investidos nos últimos três anos sejam perdidos.

Os planos pensados por Nina inicialmente não deram certo - um dos motivos foi o aumento da pontuação necessária para tentar residência permanente. Outro problema é que a regra de migração deixou de privilegiar funcionários que tenham contrato de trabalho com uma empresa canadense. Antes, se a companhia comprovasse a necessidade de um imigrante para uma vaga específica, o candidato recebia mais pontos - hoje, não mais.

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O casal de brasileiros Nina e Rodrigo seguem no Canadá tentando conseguir a residência permanente após investirem mais de 30 mil dólares no sonho de morar no país Foto: arquivo pessoal

Agora, Nina pretende aumentar a pontuação da família pelo fato de seu marido falar francês, algo valorizado no país. “Ele já fez a prova de idioma três vezes, mas sempre deixam uma das notas dele 1 décimo abaixo do que ele precisaria para a média necessária para imigração. Continuamos na luta para atingir a nota, investindo bastante dinheiro, já que cada prova custa em média US$ 400, e torcendo para a nota de corte do programa não subir muito até lá”, conta.

“Em meio a tudo isso, o custo de vida aqui em Vancouver aumentou muito, principalmente para moradia, o que dificulta ainda mais todo o processo”, afirma a brasileira. “É uma luta diária pelo sonho e objetivo que viemos buscar”.

Restrições a imigrantes

As restrições na imigração do Canadá começaram no início de 2024, quando o governo restringiu os vistos de estudante, uma das principais formas de entrada de estrangeiros. Foi fixado um limite - até então inexistente - de emissão de vistos para estudantes internacionais, visando a estabilizar a entrada de pessoas no país dentro do período de dois anos.

A ideia é que, ao longo do último ano, as autorizações para estudar no país caíssem para 360 mil, redução de 35% ante 2023. Esses limites eram ajustados para cada província, de forma a restringir mais os vistos naquelas em que a população de estudantes internacionais teve crescimento considerado mais insustentável pelo governo.

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Com o Plano de Imigração 2025-2027, “a população de residentes temporários do Canadá diminuirá nos próximos anos para se alinhar com nossas metas econômicas de longo prazo e fortalecer a integridade e a qualidade de nossos programas de residentes temporários”, afirmou o governo na época em que divulgou as mudanças.

  • Desde o início do ano, a comprovação financeira para tirar o visto de estudante aumentou e as autorizações de trabalho passaram a ser concedidas só aos cônjuges de estudantes estrangeiros de mestrado ou doutorado. Agora, outros programas, como a graduação, dão direito de trabalho apenas ao estudante, não mais ao cônjuge.
  • Outra mudança foi na permissão de trabalho após a formação do curso. Desde setembro, as faculdades particulares - que tiveram grande alta na atração de alunos internacionais nos últimos anos - não dão mais esse direito.

As regras mais rígidas foram implementadas porque o governo passou a priorizar a entrada de imigrantes que atuam nas áreas de escassez no país: agricultura, comércio, transporte, saúde, ciência, tecnologia, engenharia e matemática. Enquanto esses setores são incentivados, a situação ficou mais difícil para as pessoas em carreiras fora dessas áreas.

Com a menor quantidade de vistos disponíveis, reduziu-se também o número de convites para a residência permanente, o que fez com que a pontuação mínima para conseguir a residência aumentasse bastante. Esse cenário todo pegou muitos imigrantes, como Gomes e Nina, desprevenidos, que já tinham feito seus planos baseados nas regras anteriores, da época em que chegaram ao Canadá.

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Moradia cara e sobrecarga da rede de saúde associadas à migração

A motivação do governo canadense para restringir os vistos de estudantes e os convites para residência permanente passam pela mudança no contexto social e econômico do país após a pandemia.

Se antes os estudantes e trabalhadores internacionais, em sua maioria jovens e com anos de trabalho pela frente, supriam o déficit de canadenses para os postos de trabalho, hoje os problemas econômicos ocasionados pela vinda de um contingente grande pesam mais: inflação; dificuldade de moradia, cada vez mais caras; e sobrecarga do serviço público de saúde.

“Na pandemia, quem imigrou para o Canadá teve acesso a uma variedade grande de opções de emprego. Muita vaga. Isso foi divulgando, divulgando e chegou a mais gente. Muitos dos recém-chegados compartilharam em suas redes sociais, entre 2020 e 2022, a facilidade e a velocidade com que conseguiram novos trabalhos no país, gerando maior confiança em novos interessados”, conta Borges, que além de morar no país há oito anos, trabalhou em uma empresa de imigração.

O resultado da presença de três milhões de estrangeiros em um país de 41,4 milhões de habitantes foi a disputa, nos principais destinos de estrangeiros, por moradias, que ficaram cada vez mais caras no pós-covid.

O Canadá sempre teve um problema de construção civil, um dos setores com déficit de mão-de-obra, diz o cientista social Rodrigo Sega, que tem pesquisas na área da migração para o Canadá. “Os aluguéis são altíssimos, e o fato de faltar gente para construção implica em não ter casas para morar”, o que aumenta ainda mais os preços, explica.

Borges, que ainda mora no país, acrescenta nesse cenário a sobrecarga dos serviços de saúde público e a disputa por empregos entre canadenses e estrangeiros em algumas cidades. Na visão dele, esses fatores também fizeram com que a população canadense pressionasse o governo.

“Tem vários hospitais que, em feriado ou épocas críticas, fechavam o serviço por determinado período, ou havia seis horas de espera para uma fila de emergência, seis meses ou um ano para uma fila de atendimento especialista”, conta.

O Canadá passou a priorizar a entrada de imigrantes que atuam nas áreas de escassez no país: agricultura, comércio, transporte, saúde, ciência, tecnologia, engenharia e matemática. Demais áreas começam a sofrer barreiras para entrada. Foto: Nathalia Molina/Estadão

Conforme o governo, as instituições de ensino canadenses aumentaram significativamente suas admissões para impulsionar receitas, fazendo com que “mais estudantes tenham chegado ao Canadá sem suporte adequado de que precisam para ter sucesso” e “colocando pressão sobre os sistemas de moradia, habitação e outros serviços”.

Nos últimos anos, a insatisfação dos canadenses com o cenário econômico - especialmente a inflação alta e o preço das moradias - e migratório enfraqueceu o então primeiro-ministro Trudeau, ao passo que deu forças ao partido conservador, principal oposição.

Com as fortes críticas ao governo e as pesquisas de intenção de votos para as eleições federais, que ocorrem em outubro deste ano, indicando vantagem significativa para o candidato da oposição Pierre Poilievre, o premiê admitiu ter errado ao permitir mais imigrantes do que o país suporta e implementou restrições no processo migratório. Mesmo assim, a crise política não recuou e Trudeau renunciou ao cargo na segunda-feira, 6.

“Estamos agindo porque nos tempos tumultuados em que emergimos da pandemia, entre atender às necessidades de mão de obra e manter o crescimento populacional, não conseguimos o equilíbrio certo”, afirmou Trudeau.

O Partido Conservador tem como uma de suas bandeiras uma imigração “mais sustentável” e defende a redução não só do número de imigrantes como da população canadense como um todo. Poilievre já afirmou que um futuro governo conservador buscaria vincular a taxa de crescimento populacional do país a um nível abaixo do número de novas casas construídas, além de considerar fatores como taxa de empregos e capacidade do sistema de saúde.

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