O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) enfrenta sua pior crise desde o roubo do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), em 2009. Esta semana, 37 servidores pediram para deixar seus cargos às vésperas da maior prova do País e com denúncias de assédio moral e ingerência do presidente do órgão. Os efeitos da crise no Inep, porém, se estendem muito além do Enem. Para distribuir merenda, livros didáticos, pagar salário de professores ou saber a qualidade da educação em cada cidade, o Brasil precisa dos dados tabulados no instituto.
Apesar da visibilidade dada às provas, um dos mais importantes trabalhos do Inep é o Censo da Educação Básica, feito todos os anos, e essencial para calcular as verbas repassadas ao ensino público. Como ele indica o número de estudantes em cada escola, é o que alimenta o Fundeb, o fundo de financiamento da educação. O mecanismo distribui por todo o Brasil o dinheiro arrecadado em impostos, de acordo com um valor mínimo por aluno. As verbas podem ser usadas para salário de professores, manutenção da escola, compra de materiais ou equipamentos, entre outras possibilidades.
Uma das atuais preocupações dos servidores é o censo de 2022. Ele terá de ser reformulado, com um novo sistema informatizado, para se adequar ao novo formato do Fundeb, aprovado em 2020. Nada foi feito ainda. O Inep ainda precisava apresentar até julho um estudo com os novos cálculos do Fundeb, que determinariam quanto seria enviado de dinheiro para cada etapa de ensino. Educadores pleiteavam que a creche e o ensino integral, por exemplo, passassem a receber mais verbas, como uma forma de incentivo para que municípios e Estados abrissem mais vagas.
Mas o estudo não ficou pronto e precisarão ser usados os valores antigos. Os servidores acusam a responsável pela área, Michelle Cristina Silva Melo, de não ter capacitação técnica. Ela foi indicada pelo presidente Danilo Dupas e veio da Agência Espacial Brasileira. Procurado, o Inep não se manifestou.
"É impossível fazer política educacional no Brasil sem o Inep", diz a ex-presidente do órgão Maria Inês Fini. Ela lembra as especificidades dos sistemas de informática, que rodam muitos dados ao mesmo tempo. "Na semana anterior ao Enem, nós sempre fazíamos simulações para ver se estava ajustado", conta. Seu maior temor agora são ataques hackers, algo que servidores contam que é rotineiro no Inep e exige monitoramento 24 horas.
O coordenador geral da área de tecnologia, Francisco Edilson de Carvalho Silva, e seu substituto, Adelino Nunes de Lima, estão na lista dos que pediram para deixar o órgão nesta semana. "Tudo no Inep, censos, avaliações, depende da TI (tecnologia da informação), uma área que já vinha sendo esvaziada", diz um servidor que pediu para seu nome não ser publicado. O Censo da Educação Superior já está sete meses atrasado, por causa da demanda excessiva da área de tecnologia, que não tem funcionários suficientes.
Atrasos no Saeb
Os efeitos da crise no Inep também já chegaram ao Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). As provas de Português e Matemática começariam a ser aplicada no País na segunda-feira aos alunos do 5º e 9º anos do fundamental e do 3º ano do médio. Foi por meio dela que o País soube há algum tempo que alunos de 14 anos não compreendiam o que liam, por exemplo.
Segundo secretários estaduais de Educação, as provas do Saeb ainda não chegaram a vários Estados, como São Paulo e Espírito Santo. Em outros, foram enviadas pelo Inep apenas exames para algumas cidades. Na Paraíba, o interior recebeu, mas a capital João Pessoa, ainda não.
A data limite para que as escolas organizem seus alunos para fazer as provas, em meio à pandemia e volta presencial tumultuada, é 10 de dezembro. O resultado do Saeb faz parte do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), o indicador que mede a qualidade do ensino no País e ajuda em políticas para uma melhora. "À luz do que está acontecendo, a gente presume que há um problema generalizado de gestão que compromete ações fundamentais", diz o presidente do Conselho de Secretários de Educação (Consed), Vitor de Angelo.
Maria Inês também alerta para a saída de servidores do setor de logística, que foi sendo aprimorado ano a ano depois do roubo do Enem, durante o manuseio da prova na gráfica, dias antes da aplicação. "Eu ficava com o presidente da República do meu lado, acontece de tudo durante a prova. Já teve gente presa, estrada interditada, você precisa tomar a decisão na hora sobre cancelar a prova ou não", conta ela, que esteve no órgão no governos Fernando Henrique e Michel Temer.
Servidores acusam o presidente do Inep de tentar passar uma portaria se eximindo da responsabilidade por eventuais problemas no dia do Enem, o que ele negou em seu depoimento à Comissão de Educação da Câmara na quarta-feira. Essa é também uma das razões que levaram funcionários a pedirem exoneração: eles temem serem responsabilizados por erros causados por um presidente inábil e sem conhecimento técnico.
Movimentações
O Inep tem hoje 164 servidores ocupando cargos. Desses, 22% pediram exoneração desde sexta-feira. Saíram os coordenadores de quase todas as equipes. Um dos diretores mais antigos e considerado um líder das equipes pela sua experiência em avaliação é o estatístico Carlos Eduardo Moreno Sampaio, que é servidor do Inep desde 1985 e o atual diretor de Estatísticas Educacionais. Apesar de descontente com a atual administração, ele não pediu exoneração. O Estadão apurou que há um movimento interno e de especialistas de fora do Inep para que Dupas deixe o cargo e Moreno o substitua, ao menos interinamente.
O ministro da Educação, Milton Ribeiro está em Paris desde segunda-feira, quando a crise se agravou. A única declaração dada até agora foi pelo Twitter, dizendo que os servidores só sairiam dos cargos quando a exoneração fosse assinada. A demora, segundo o diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Floriano de Azevedo Marques, pode caracterizar desvio de finalidade e até ato de improbidade administrativa.
Ribeiro é um dos poucos no MEC que ainda defendem a permanência de Dupas no cargo, com quem trabalhou na Universidade Mackenzie. O presidente do Inep se formou em Ciências Econômicas, em 2005, e ocupou cargos administrativos em faculdades privadas.
Para a presidente executiva do Todos pela Educação, Priscila Cruz, o risco da crise atual é a de abalar a credibilidade do instituto, construída ao longo de décadas. "O Brasil é um dos grandes exemplos de avaliação educacional no mundo, que tem tradição reconhecida até pela OCDE", afirma. Segundo ela, se essa "degradação" não cessar, o País pode passar a contestar os dados educacionais vindos do Inep e, consequentemente, as políticas públicas derivadas deles.
Desde o início do governo de Jair Bolsonaro, o órgão sofre baixas de servidores que alegam interferência política e desvalorização da técnica. Sete ex-ministros da Educação, em abril, divulgaram carta dizendo que o Inep estava "em risco". Em seu depoimento na Câmara, os deputados questionaram Dupas sobre a intenção de usar professores indicados por ele para fazer as questões do Enem e sobre a entrada de um policial federal na sala segura do exame sem o conhecimento dos funcionários. Dupas, que lia suas respostas em um celular, disse que nenhuma acusação procedia.
Criado para estudos pedagógicos, viveu altos e baixos
O Inep foi criado nos anos 30 para fazer estudos pedagógicos e, na década de 50, com o professor Anísio Teixeira, passou a fazer pesquisas educacionais e se tornou um órgão autônomo. Na década de 80, perdeu importância e foi quase extinto por Fernando Collor. O órgão foi reerguido no governo Fernando Henrique Cardoso para se tornar um respeitado instituto de pesquisas e avaliações.
Em 1995, a hoje presidente do Conselho Nacional de Educação, Maria Helena Guimarães de Castro, assumiu o Inep, reorganizou o Censo, o Saeb e criou novas avaliações, como o Enem, em 1998. O ex-ministro Fernando Haddad resolveu transformar a prova em 2009 em um grande vestibular. Mas o Estadão revelou o grande escândalo da história do exame: ele havia sido roubado na gráfica. Haddad então cancelou a prova e os funcionários do Inep se uniram para montar novo Enem em 40 dias. Depois disso, o Inep cresceu em funcionários, aprimorou expertise, logística e segurança. Hoje, muitos defendem a autonomia do órgão para não ficar atrelado aos sucessivos governos.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.