Novo ensino médio que as universidades precisam ainda deve ser construído

Especialistas analisam os impactos da atual reforma da educação brasileira e veem desafios e possíveis caminhos para contorná-los, incluindo a ampliação do investimento no professor

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Por Sofia Lungui

O debate sobre o Novo Ensino Médio tem dividido opiniões de especialistas, alunos e professores. A proposta está em revisão, sendo que recentemente o governo federal decidiu suspender o cronograma de implementação das mudanças. Atualmente, mais de 7 milhões de estudantes cursam o ensino médio, muitos já neste novo modelo, que começou a ser incorporado às escolas em 2022. Essa etapa tem impacto direto no ensino superior, e pesquisadores acreditam que a reforma do ensino médio precisa levar isso em consideração, de modo a preparar melhor os alunos para esse momento.

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A atual proposta do ensino médio foi efetivada pela Lei 13.415, de 2017, no governo de Michel Temer, com o objetivo de implementar o ensino integral e tornar o formato mais atrativo, evitando a evasão escolar. Outro objetivo é garantir uma formação mais orientada para a vida profissional, alinhada ao projeto de vida de cada aluno, aproximando o estudante da carreira que deseja seguir.

No entanto, especialistas acreditam que faltam elementos importantes para se chegar a um modelo ideal, que forneça as ferramentas necessárias para que o aluno tenha condições de ingressar no ensino superior, permanecer e ser bem-sucedido. Para Daniel Cara, pesquisador e dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, os itinerários formativos previstos na proposta acabam afastando o estudante da formação básica, ou seja, do conteúdo fundamental.

Humboldt, em São Paulo (SP), começou a ofertar disciplinas eletivas para os estudantes do ensino médio ainda em 2019 Foto: Equipe de audiovisual do Colégio Humboldt

“Caso o modelo seja mantido, os alunos vão chegar ao ensino superior com uma formação científica mais frágil, fazendo com que tenham mais dificuldade nas disciplinas da graduação. Vamos ter de compensar a falta de aprendizado desses novos alunos e garantir os recursos necessários para que sigam adiante. Com isso, a longo prazo, sobra menos tempo para aprofundar o conteúdo científico e formar profissionais de ponta”, explica o professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).

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Daniel defende a revogação da reforma e a formulação de um modelo que faça melhor articulação entre a educação regular e aquela voltada para a formação profissional, sem a necessidade de itinerários. Segundo o pesquisador, os itinerários formativos desorganizaram as atribuições dos docentes, e sua implementação formal em todas as escolas seria impossível. “Acreditamos que o ideal seria ter aprofundamentos do conteúdo curricular por meio de disciplinas optativas, pautadas por áreas, mas somente no último ano do ensino médio. Nos dois primeiros anos seria mantida a formação geral básica, com todos os componentes curriculares necessários”, argumenta.

Visão das faculdades

Para Lúcia Teixeira, presidente do Semesp, entidade que representa mantenedoras de ensino superior de todo o Brasil, a proposta dos itinerários formativos tem méritos e o trabalho já desenvolvido pelas escolas não pode ser desperdiçado, mas o formato deve ser aperfeiçoado. “Não há uniformidade na implementação, cada instituição está atendendo a exigências com aquilo que pode oferecer de melhor. Precisamos contornar isso investindo na valorização dos docentes, em capacitação pedagógica e infraestrutura, de modo a aproveitar todo o desempenho dos alunos”, afirma.

Doutora em Psicologia da Educação pela PUC-SP, Lúcia acredita que um dos grandes problemas é que o Novo Ensino Médio pode agravar as desigualdades na educação, e já está mostrando a discrepância socioeconômica entre a rede privada e a pública. Uma pesquisa da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) constatou que 70,2% dos estudantes de universidades federais pertencem a famílias de baixa renda.

Com a falta de educação de qualidade nas escolas públicas, essa realidade pode mudar, segundo a professora. “As escolas públicas já tinham muitas lacunas antes. Agora, isso está sendo aprofundado. Essa falta de planejamento acabou fragilizando o modelo. Para que o estudante esteja pronto para a universidade, temos de garantir que tenha segurança para transitar entre diversas linguagens e aprender de forma integral”, destaca.

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Ela também se preocupa com a falta de professores capacitados, que deve acarretar em impactos negativos também para o ensino superior. Um estudo do Instituto Semesp aponta para um déficit de cerca de 235 mil docentes em 2040, caso seja mantido o atual ritmo de formação de professores.

A visão dos estudantes

Procurada pela reportagem do Estadão, a Andifes preferiu não se manifestar. A entidade informou que será realizada ainda no mês de maio uma reunião do conselho da associação para deliberar sobre o posicionamento perante a reforma do ensino médio. A presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Bruna Chaves Brelaz, argumenta que o futuro profissional deve ter os mecanismos necessários para lidar com diferentes temas e disciplinas no ensino superior. A entidade defende a elaboração de uma nova proposta. “O currículo está sendo muito compartimentalizado, o que acaba pormenorizando algumas disciplinas, como Sociologia e Filosofia. Temos de pensar em uma estrutura mais adequada”, afirma.

Escolas pioneiras e os resultados do Novo Ensino Médio na prática

Diversas escolas já se adaptaram à proposta do Novo Ensino Médio e estão desenvolvendo iniciativas voltadas especialmente para capacitar os alunos para o ensino superior e para a vida profissional. Uma delas é a Humboldt, em São Paulo (SP), no bairro de Interlagos, zona sul. O colégio começou a ofertar disciplinas eletivas para os estudantes do ensino médio ainda em 2019. Agora, algumas dessas matérias são EAD.

No Colégio Franciscano Pio XII, que também fica na capital paulista, no Morumbi, os itinerários formativos foram organizados em três partes Foto: Viviane Paiva Direito

Essas aulas fazem parte dos itinerários formativos. Para além das disciplinas da formação geral básica, o aluno pode construir um currículo a cada semestre de acordo com seus interesses. São duas opções: o itinerário Sociedade&Cultura, que envolve as áreas de Ciências Humanas, Artes e Música, e o projeto MINT, voltado para as áreas de ciências investigativas e de pesquisa por meio de Matemática, Informática, Ciências da Natureza e Tecnologia. Caso tenha interesse, o estudante pode cursar disciplinas de ambos os itinerários.

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No Colégio Franciscano Pio XII, que também fica na capital paulista, no Morumbi, os itinerários formativos foram organizados em três partes: Itinerário Integrado, mais focado nos campos tradicionais do conhecimento; Itinerários Temáticos, que incluem temáticas mais específicas; e Projeto de Vida. Este último surgiu justamente com o intuito de abrir espaço para reflexão sobre tomada de decisões e futuro, abrangendo dimensões pessoais e coletivas, como dúvidas em relação à universidade.

Um exemplo prático é a iniciativa Produção e Consumo, associada a um dos itinerários. Trata-se de atividade que propõe que os alunos desenvolvam e executem ideias de startups por conta. Um dos grupos está preparando uma plataforma de checagem de notícias, por exemplo, que terá orientações sobre os riscos das fake news e como se prevenir. “Dessa forma, convidamos o estudante a compreender como suas escolhas se refletem na sociedade. Queremos que os alunos se entendam como indivíduos que colaboram com a sociedade, independentemente de suas decisões”, explica Viviane Paiva Direito, coordenadora pedagógica do ensino médio do Franciscano Pio XII.

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