O ato de contar uma história para pequerruchos é, antes de tudo, a vontade de interagir, de alcançar envolvimento com alguém tão (no meu caso) distante em idade. Como instante de vivência artística, os pequenos contos são pequenos prazeres, mas, também, pequenos alertas. A narrativa lúdica quer conversar sobre a vida. O lobo mau é uma sinalização de que há maldade no mundo. Ananse, a aranha contadora de histórias criada pela sociedade akan do oeste africano, é sábia em desenvolver enredos para a percepção do humano. E não há canto ou época que não tenha criado expressões genuínas para tanto.
Quando ocorre a passagem da oralidade para a escrevedura, adaptações surgem mescladas pelo talento dedicado ao ofício. Mas esse cantinho fabuloso colorindo a imaginação é ajeitado pela coletividade local e pode se expandir até onde faça sentido.
Vale, então, reparar que uma trama, aparentemente ingênua para primeiras leituras, é uma fonte de elementos contundentes a respeito dos modelos de humanidade por trás dos personagens, da construção do ambiente, a nuança do estilo sob abordagens, nunca neutras. Basta cruzar, por exemplo, a perspectiva do imaginário para as origens continentais. Embora eu possa carregar muitas no meu DNA, para além do biológico, o cultural conduz as associações coladas a elas, historicamente, nada equânimes em qualificações ou desqualificações.
Grosso modo, a deriva continental asiática, euro, afro, ameríndia, a muito gelada ou a oceânica, em mim, não tem o mesmo valor. A africana ou a eventual europeia estão hierarquicamente arranjadas na composição que imagino de mim. Portanto, o caso de gerações e acervos para a gurizada, quando cruzado com as dinâmicas do racismo brasileiro, espelha atrasos e avanços para tornar menos alienantes as representações culturais aí embutidas. Elas vão seguir de mãos dadas com a gurizada.
Afinal, quem publiciza uma obra não o faz no vazio. Do âmbito geracional vale notar o obreiro que escreve nessa modalidade, ilustra, elabora projetos gráficos, traduz, edita, planeja livrarias, produz artigos opinativos, pesquisa a produção, milita pelo livro e a leitura, propõe curadorias e outras ações por toda a cadeia em torno dos impressos ou dos atuais formatos virtuais. Todavia, sem nunca perder de vista que o racismo editorial é útil à manutenção de desigualdades como lado opaco dos espelhos.
Eu, autora do Histórias da Preta (1998, Cia das Letrinhas) sou testemunha dessa dinâmica já, na “longa duração”. Digo que sempre arrisquei estar na mesa de negociação e não fora dela. De um lado, levando a demanda crítica coletiva por representatividade e, de outro, os parâmetros editoriais que começavam a percebê-la.
Como embate entre argumentos públicos, a Preta é a representação de um feminino que ocupa o centro da capa. Organizada em curtas historietas, a inspiração é a pergunta norteadora: qual é a diferença entre ser uma menina negra e todas as demais que não são negras? Na jornada da Preta em busca de respostas a ficção conduz novos e intermináveis questionamentos recolhidos, ludicamente, do nosso cotidiano.
Vinte e cinco anos depois, o livro ganha mais uma edição, significando que as questões ali contidas ainda cabem na sociedade brasileira. A publicação anterior à Lei 10639 é um dos elos vindos da presença negra ampliada dentro e nos bastidores da área infanto-juvenil. E, não é acaso eu estar lançando, conjuntamente, Cara de Espelho (2023, Salamandra). A parceria com a jovem ilustradora baiana Ani Ganzala é uma aliança mítica entre o ancestral e o afrofuturismo.
O conto é sobre o nascimento de uma criança cuja pele de tão lisa e luminosa brilhava como se recém lustrada. Reluzia igual a um espelho. E caso alguém arregalasse as vistas procurando ver o rosto vindo ao mundo, encontrava nele refletido, apenas a própria imagem. Com singeleza a narrativa poderia sintetizar as ideias deste artigo. Há um tanto de opacidade no setor editorial em busca de transparência cristalina. Acervos, para infantes e juvenis leitores, ofertam uma imagem. E ela é a cara espelhada de quem arruma o conjunto. E que a densidade humana negra, brincante, prevaleça.
* Heloisa Pires Lima é doutora em Antropologia Social. Desde 1995, ela atua no circuito editorial como escritora, editora e pesquisadora da área. É conselheira da Casa Sueli Carneiro onde está na curadoria do Rodas Literárias. Recentemente, ministrou cursos relacionados à área editorial no A Casa Tombada onde é professora convidada para a pós-graduação O livro para a Infância. Jurada do prêmio Jabuti 2022.
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