Mandioca, macaxeira, aipim e castelinha são nomes diferentes da mesma planta. Semáforo, sinaleiro e farol também significam a mesma coisa. O que muda é só o hábito cultural de cada região. A mesma coisa acontece com a Língua Brasileira de Sinais (Libras). Embora ela seja a comunicação oficial da comunidade surda no Brasil, existem sinais que variam em relação à região, idade e até o gênero de quem se comunica. A cor verde, por exemplo, possui sinais diferentes no Rio de Janeiro, Paraná e São Paulo. São os regionalismos na língua de sinais.
Essas variações são um dos temas da disciplina “Linguística na Língua de Sinais”, oferecida pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) ao longo do segundo semestre. “Muitas pessoas pensam que a língua de sinais é universal, o que não é verdade”, explica Angélica Rodrigues, professora e chefe do Departamento de Linguística, Literatura e Letras Clássicas da Unesp. “Mesmo dentro de um mesmo país, ela sofre variação em relação à localização geográfica, faixa etária e até o gênero dos usuários”, completa a especialista, também vice-coordenadora do Programa de Pós-graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp em Araraquara.
Os surdos podem criar sinais diferentes para identificar lugares, objetos e conceitos. Em São Paulo, o sinal de “cerveja” é feito com um giro do punho como uma meia-volta. Em Minas, a bebida é citada quando os dedos indicador e o médio batem no lado do rosto. Também ocorrem mudanças históricas. Um sinal pode sofrer alterações decorrentes dos costumes da geração que o utiliza.
Rimar Segala, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), enviou um vídeo ao Estadão com exemplos de variações. Uma delas é a contagem dos números, de um a dez, que também muda de Estado para Estado. Não existe certo ou errado. Todos os sinais são aceitos. “As pessoas podem achar que a variação é isolada ou negativa, mas não é assim. A variação evidencia a vitalidade da língua”, explica a professora.
O curso da Unesp foi concebido como bimodal, ou seja, possui apresentações em Português e em Libras. Nas aulas online, cada professor apresenta o conteúdo, mas em duas línguas diferentes. Neste semestre, o curso foi o mais concorrido entre todos do programa de pós da universidade. A turma foi formada por 145 alunos, de várias partes do País, com 65% surdos.
Uma das alunas foi a professora universitária Sueli Ramalho. Ela é surda, com perda auditiva bilateral neurológica profunda. Ela conhece as variações da língua de sinais desde criança: sua mãe é carioca e seu pai, que já morreu, era paulista. “Eles continuaram com os sinais de origem e o entendimento se manteve”, diz a professora de pós-graduação da Uninove. “Todas essas diferenças mostram a riqueza da língua. Ela é viva e deve ser explorada, explicada e ganhar cada vez mais visibilidade”, completa a educadora de 55 anos.
Especialistas afirmam que a variação mostra como a língua de sinais está distante da mera reprodução icônica das coisas. Ela não é mímica, mas é o resultado da interação entre os surdos. É uma forma da fala, ainda que não seja oral. A língua de sinais possui morfologia, sintaxe e regras gramaticais próprias, como um idioma independente. Por isso, alguns alunos do curso contatados pelo Estadão preferiram não conceder entrevista em Português e pediram ajuda de um intérprete de sinais. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o País possui cerca de 9,7 milhões de surdos ou pessoas com algum grau de deficiência auditiva.
“A Libras é a língua materna para os surdos. O português, ou outra língua, passa a ser a sua segunda língua. A Libras contribui para a inserção em qualquer espaço social”, diz a intérprete Roseli Marcia Benati.
A professora de Libras é mãe da jogadora de futebol Stefany Krebs, a primeira surda da história do futebol feminino do Palmeiras. Contratada em janeiro, ela disputou o Campeonato Brasileiro feminino deste ano e provocou uma mudança sutil entre as colegas: muitas estão aprendendo a língua de sinais. Nos treinos e nos jogos, parte dos gritos virou sinais e gestos.
O desafio da máscara
Independentemente do sinal que utilizem para se comunicar, os surdos vivem desafios adicionais na pandemia. A máscara, item obrigatório de prevenção, dificulta a leitura labial, usada como suporte para a comunicação. Surdos estão especialmente acostumados a usar expressões faciais e corporais para entender o que é comunicado. Os lábios também ajudam na pronúncia de palavras básicas, como “pão”, “água” e “dois”. Com essa limitação, a comunicação fica mais difícil. É importante lembrar que nem toda pessoa surda utiliza a língua de sinais.
Nesse caso, uma solução é o uso de máscaras transparentes. Diferentemente do modelo clássico, ela permite ver a leitura labial. Josiane Poleski, colaboradora da Confederação Brasileira de Desportos de Surdos (CBDS), aponta outras saídas. “Primeiramente, peço para a pessoa tirar a máscara. Se ela aceitar, ótimo. Caso contrário, peço para ela escrever”, diz.
A professora Sueli, que também utiliza a leitura labial como suporte para a comunicação, confessa que também está recorrendo ao papel e caneta. “Quando as pessoas vão responder, elas querem pegar a minha caneta. Aí, eu não quero deixar, com receio de contaminação. É uma guerra de comunicação”, brinca a especialista.
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