Por que 335 pedidos de cursos de Medicina estão na Justiça e o que o STF vai debater sobre isso

Abrir graduações pela via dos tribunais desorganiza fila regular e reduz qualidade da formação, dizem especialistas; parte das faculdades privadas fala em regra engessada do governo

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Foto do author Paula Ferreira
Atualização:

O Supremo Tribunal Federal (STF) retomou nesta sexta-feira, 9, o julgamento que deve impactar a abertura de novos cursos de Medicina no País. Os ministros discutem quais regras são válidas para a liberação de graduações do setor, mas a análise foi interrompida mais uma vez por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.

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Uma parte das faculdades particulares tem recorrido à Justiça em reação a duas determinações federais. A primeira, conhecida como regra do Mais Médicos, vigora desde 2013 e prevê que a oferta de novas graduações priorize regiões carentes de profissionais de saúde e com menor relação de médicos por habitante.

A segunda foi a proibição adotada em 2018, na gestão Michel Temer (MDB), de abrir vagas por cinco anos. O argumento para a moratória na época era a necessidade de controlar a expansão para garantir a qualidade.

Portaria do Ministério da Educação define regras para análise dos pedidos administrativos judicializados para abertura e aumento de vagas de curso de medicina. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Ainda assim, liminares obtidas pelas universidades autorizaram cerca de 6 mil novas vagas nesse período da moratória. O Ministério da Educação (MEC) tem hoje na mesa ao menos 335 pedidos de abertura de cursos que também foram parar na Justiça e somam 60,5 mil vagas.

De um lado, parte do ensino superior privado reclama de engessamento da abertura de vagas apenas pela via do Mais Médicos. Do outro, especialistas e entidades do setor, como o Conselho Federal de Medicina (CFM), veem riscos de precarizar a formação e criar vagas em cidades onde já existe oferta suficiente.

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“O ideal seria o ministérios criar critérios sérios, difíceis, para que só as boas faculdades pudessem funcionar. E talvez ter um sistema independente de acreditação para fugir de ingerências políticas e econômicas, que são enormes”, analisa o professor de Cirurgia da Faculdade de Medicina da USP e membro da Academia Nacional de Medicina, Raul Cutait.

Como está a discussão no Supremo?

A ação foi movida pela Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup). A entidade pede que a abertura de cursos siga a regra do Mais Médicos, de 2013.

Mas o setor de ensino superior privado está dividido. Há outras entidades, como a Associação Brasileira das Mantenedoras de Ensino Superior (Abmes), que defendem alternativas para autorizar novas graduações - e que o Mais Médicos não seja a única via.

Em agosto, o ministro Gilmar Mendes, relator do tema no STF, atendeu ao pedido da Anup, em caráter liminar. O ministro André Mendonça pediu vista e o caso voltará a ser analisado no plenário virtual do STF, de 9 a 20 de fevereiro.

Dados da pesquisa Demografia Médica no Brasil, conduzida pela Faculdade de Medicina da USP e Associação Médica Brasileira (AMB), publicada no ano passado, mostram a disparidade regional. Enquanto no Distrito Federal há 6,13 médicos para cada mil habitantes, no Maranhão há 1,17 profissionais para cada mil habitantes.

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As 41 cidades do Brasil com mais de 500 mil habitantes, onde vivem 29% da população do País, concentram 61,5% dos médicos.

A norma do Mais Médicos estabelece critérios sobre infraestrutura adequada, corpo docente e projeto pedagógico. Para Elizabeth Guedes, presidente da Anup, sem essa regra “haveria número reduzido de exigências estruturais, incluindo a disponibilidade prévia de leitos do SUS para prática médica, requisito essencial para formar novos médicos”.

A Abmes concorda que a regra dos Mais Médicos seja usada para a criação de cursos, mas defende que não seja a única via. “Projetos de excelência devem ser analisados independentemente do chamamento do Mais Médicos”, afirma Celso Niskier, presidente da entidade.

Assessor jurídico da Associação Brasileira das Mantenedoras de Faculdades (Abrafi), Daniel Cavalcante defende que o STF mantenha a análise dos pedidos de abertura que foram judicializados que já superaram a fase de documentação.

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“Seriam retrocesso e prejuízo grandes não acatar a tramitação desses processos”, afirma. “Não há falta de interesse das instituições, porque ainda assim há demanda reprimida nos locais de difícil acesso”, acrescenta.

Falta de estrutura

Dados do CFM estimam que apenas 17% das escolas médicas estão em municípios que atendem a todos os parâmetros necessários para abrir um curso de Medicina, como quantidade mínima de leitos por aluno, estrutura hospitalar e número de estudantes por equipe de saúde.

Em outubro, o MEC lançou edital para permitir novos cursos de Medicina conforme as regras do Mais Médicos. A pasta pré-selecionou 1.719 municípios aptos a receberem universidades a partir dos critérios do programa.

Dados da pesquisa Demografia Médica mostram que o Brasil ainda tem quantidade de médicos por habitante abaixo da média da OCDE. O País tem taxa de 2,7 médicos por mil habitantes, enquanto na OCDE a média é de 3,7 médicos por mil habitantes. A meta do governo federal é ampliar a formação médica em dez anos até que o país alcance o patamar dos países do bloco.

“A formação médica é complexa e exige parte prática intensa. O estudante de Medicina deve entrar em contato com pacientes, ter a vivência do pronto-socorro, porque vai lidar com a vida humana e tem de sair da universidade preparado”, afirma Jeancarlo Fernandes Cavalcante, 1º vice-presidente do CFM. “Sabemos que há faculdades de Medicina que não têm câmpus de estágio onde o aluno possa praticar o conhecimento teórico que adquiriu.”

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Ele argumenta ainda que a simples criação de vagas no interior não garante melhor distribuição dos médicos. Cavalcante diz que é preciso proporcionar boas condições de trabalho e um plano de carreira estruturado que incentive os profissionais a ficarem nas regiões mais remotas.

Nos bastidores, a expectativa do governo é de que o plenário do STF corrobore a posição principal do ministro Gilmar Mendes de que os cursos devem ser abertos por chamamento público levando em conta a lei do Mais Médicos.

Um dos maiores pontos de interesse é a modulação da decisão, que ainda encontra divergência entre os juízes da Corte. Enquanto Mendes e Luiz Fux votaram para que processos pendentes que já passaram da fase inicial de documentação continuem tramitando, Rosa Weber e Edson Fachin votaram para que esses procedimentos sejam suspensos.

O argumento utilizado por Fachin é de que a continuidade desses pedidos faria com que essas universidades não tivessem interesse em abrir cursos por meio de chamamento público, já que o processo é mais rigoroso.

O magistrado destacou ainda que a manutenção desses processos significaria abertura de 50% a mais de cursos em relação aos que já existem. Entidades médicas se alinham a essa visão.

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Avaliação

Projeções estimam que em um cenário mais conservador, no qual a expansão dos cursos estivesse restrita, o Brasil tende a ultrapassar a marca de um milhão de médicos até 2035. Em outro cenário mais permissivo, com abertura em larga escala de cursos, o País atingiria o patamar de 1,3 milhões de médicos em 2035. Especialistas defendem que é preciso melhorar os mecanismos de avaliação.

“É preciso avaliar as faculdades de Medicina. Não pode ser solto. Com isso, sendo identificados bons indicadores e critérios, conseguiremos fazer com que faculdades ruins não se perpetuem e valorizaremos as que são melhores”, diz Raul Cutait.

Para ele, houve três erros principais na proposta do Mais Médicos na educação médica. “Primeiro: os médicos não vão ficar onde estudam. Vão procurar outros lugares. Isso aconteceu em outros países. Segundo, não pode abrir faculdade de Medicina sem ter professores. Os professores têm que estar prontos para lecionar. E não é ir só lá e dar aula, é estar presente.”

O terceiro, diz. é em relação à estrutura. Muitas vezes, segundo Cutait, a instituição pública tem problemas para servir de hospital-escola, diante da restrição de exames, por exemplo.

Hoje, os cursos são avaliados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão do MEC. Procurada, a pasta afirmou que “aguarda o posicionamento final do STF”.

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Um dos indicadores construídos a partir da avaliação é o Conceito Preliminar de Curso (CPC), que dá nota de 1 a 5 para as graduações. A nota é construída a partir de outros elementos, como o desempenho dos estudantes na prova Enade, aplicado pelo governo, dados sobre o corpo docente; percepção dos alunos sobre a infraestrutura do curso; e a evolução do aluno levando em conta o Indicador de Diferença entre os Desempenhos Observado e Esperado (IDD).

Na última rodada de avaliação dos cursos de saúde, em 2019, só 1,7% dos 232 cursos avaliados alcançaram a nota máxima. A maior parte dos cursos de Medicina do país, 56%, está concentrada no conceito 4. Depois, 35,8% dos cursos receberam nota 3. Segundo o Inep, 6,5% receberam nota 2 e nenhum ficou com o conceito 1.

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