Ensino Superior, Universidades e Empregabilidade - As Missões da Educação Superior
Roberto Lobo* 29 de outubro de 2024
No início da década de 90, recebi como reitor da USP um grupo de empresários do setor químico que se queixaram de que a universidade não preparava estudantes para ocuparem imediatamente suas funções nas empresas porque não tinham o conhecimento prático e específico para aquele setor industrial. Naquela época, minha resposta veio pronta: "Não é função da universidade preparar estudantes especificamente para determinado setor industrial, ou para qualquer setor, em geral,
A universidade deve dar as bases do conhecimento que permita ao egresso em pouco tempo dominar os conceitos e as práticas de qualquer setor dentro da área que escolheu enquanto estudante. Cabe à empresa colocá-lo em contato com sua realidade, uma vez que o novo profissional, com a boa formação que traz da universidade, será capaz de adaptar-se rapidamente aos processos e seus problemas e passar a contribuir criativamente para a finalidade e o sucesso da empresa." Assim pensávamos nós, na época. A universidade, em particular as universidades de pesquisa, como é classificada a USP, deveria ser um centro de pesquisa e desenvolvimento permanente do conhecimento.
Mesmo as áreas mais profissionais deveriam se beneficiar do desenvolvimento da pesquisa básica realizada na universidade e fora dela. Se a universidade formasse profissionais em áreas aplicadas, estes deveriam carregar consigo uma formação superior, não só nas tecnologias, mas também, nas ciências que embasavam a profissão escolhida.
O propósito do ensino superior passava inicialmente pelo contexto inglês do cardeal Newman, que acreditava que a universidade deveria ser um lugar onde se ensinasse os conhecimentos universais e de sua difusão, um espaço residencial comum, uma escola de polimento dos jovens cavalheiros, altamente elitista. Depois, passando pela universidade de Humbolt na Alemanha, o ponto principal era a pesquisa, e sua ênfase (ou seja, o ensino baseado na pesquisa), até chegarmos à universidade americana, definida por Clark Kerr, como uma "multiversidade" servindo com seus conhecimentos para toda uma gama de demandas e comunidades, formando estudantes com boa cultura geral, mas atentos também às necessidades mais imediatas da sociedade. A USP corresponde mais a esta última definição.
Com o prodigioso desenvolvimento tecnológico após a segunda guerra mundial, a necessidade de aumentar o número de profissionais de nível superior ampliouse brutalmente. 2 Ainda assim, de modo geral, havia limitações de vagas nas universidades e a demanda reprimida para egressos que terminavam o ensino médio e aspiravam um grau universitário era um motivo de insatisfação e repressão social. Somente uns poucos privilegiados ingressavam nas boas universidades e grande parte desses era oriunda de famílias bem situadas socialmente, onde havia um ambiente mais culto e as condições financeiras adequadas para mantêlos nas melhores instituições. Nestas instituições os estudantes não só recebiam uma formação superior, mas, adicionalmente, formavam uma rede de contatos qualificados que os auxiliaria no futuro de sua profissão.
No século XX, e acentuando-se no século XXI, fortaleceu-se no mundo um sentimento de revolta contra a injustiça social e a falta de oportunidades aos menos favorecidos: fosse por questões financeiras ou outras questões, como raça, sexo etc. No Brasil não foi diferente. No final do século XX, o IBGE contava 4,4% da população brasileira com educação superior - era muito claro que em relação à sua população o Brasil apresentava um número de matrículas no terceiro grau muito aquém das suas prováveis necessidades e desejos. Havia um número reduzido de vagas ofertadas, principalmente nas universidades públicas e nas confessionais, consideradas de melhor qualidade, criando uma multidão de pessoas aprovadas nos exames de ingresso, mas que não conseguiam vaga no ensino superior por não se classificarem dentro da reduzida oferta para os novos ingressantes.
Essa situação foi reconhecida e a adoção de medidas que flexibilizavam a abertura para novas instituições e vagas marcou um período de crescimento e diversificação do ensino superior, com aumento significativo no número das instituições privadas, associado à expansão do ensino a distância, que asseguraram um grande salto na oferta de matrículas. Em 2010, a porcentagem da população com diploma universitário era de 7,9%, subindo para 21% em 2022. Apesar de se constatar que grande parte das instituições particulares não tinha a mesma qualidade das públicas de então, principalmente na área de pesquisa e na titulação dos professores, o atendimento à demanda pelo ensino superior compensava a eventual queda, na média, da qualidade de formação dos novos profissionais.
Medidas de avaliação, como o SINAES e os diferentes exames para egressos, foram introduzidas para tentar aferir e assegurar a qualidade do ensino ofertado. Com o passar do tempo, as medidas restritivas e as avaliações de qualidade dos cursos foram sendo flexibilizadas com a justificativa de que o Brasil necessitava de mais profissionais de nível superior. Citava-se, frequentemente, o exemplo da Coreia do Sul, onde o rápido desenvolvimento foi impulsionado pelo aumento de profissionais de nível superior qualificados. Paralelamente a esse movimento, um crescente sentimento de culpa se instalou na sociedade brasileira, tendo em vista a grande desigualdade de renda, preconceitos raciais (e de várias outras ordens) presentes em nosso meio, que 3 passaram a ser denunciados, curiosamente, pelos segmentos mais bem situados social e financeiramente.
Como resposta, surgiram movimentos reivindicando maior inclusão social, mas na falta de um projeto estruturado de desenvolvimento, esses mesmos grupos defenderam a inclusão "por decreto", a partir de medidas top-down (de cima para baixo), como a política de cotas e também com o estado financiando o setor mais carente via FIES e PROUNI, mas ainda sem um projeto paralelo de superação dos déficits educacionais e culturais da população de baixa renda, sem valorizar a dedicação, a disciplina e a persistência para alcançar os objetivos desejados e necessários para reduzir as mazelas sociais. Abriram-se as portas das universidades e de outras instituições de ensino superior já existentes.
Novas IES públicas foram criadas sem o correspondente investimento necessário para manter ao menos a qualidade de então, qualidade que já estava longe da almejada. Faltavam docentes qualificados para atender às novas turmas. Em várias faculdades e universidades privadas, para atrair novos estudantes, mesmo aqueles despreparados para os estudos superiores, foram oferecidos cursos a preços irrisórios que não poderiam jamais corresponder a uma boa prática educacional. Alta evasão, maus resultados nos exames do ENADE, profissionais malformados são as consequências imediatas desta realidade. A partir do século XXI, expandem-se enormemente os cursos na modalidade EaD, nem todos comprometidos com uma boa qualidade de ensino. Cursos a menos de R$ 100,00 mensais prometem um diploma (às vezes dois pelo preço de um) para a reduzida (em relação aos ingressantes) parcela dos estudantes persistentes que concluem seus cursos medíocres - porque a maioria já se evadiu no meio do curso, talvez por descobrir que o esforço exigido para obter o título superior, ou o sacrifício de trabalhar e estudar simultaneamente não vale o diploma obtido ao final (em outras palavras: o ROI- return over investment, não compensava o esforço).
Qual é então o atual o perfil dos ingressantes no ensino superior? No relatório "Education at a Glance" da OCDE, de 2024, são apresentados dados que ilustram - e assustam. A porcentagem de estudantes de 15 anos que atingem o mínimo de proficiência em matemática é de somente 11% para o Brasil, enquanto é de 53% na OCDE, 47% nos EUA e 71% na Coréia do Sul. Já começamos a corrida muito atrás! Problemas com a formação no ensino médio, principalmente em matemática, e dificuldade no ingresso em faculdades e cursos mais competitivos, induziram a uma grande demanda concentrada nos cursos de Educação, Saúde e Bem-Estar (menos Medicina) que contam com quase 40% de todas as matrículas universitárias no Brasil. Na OCDE, este percentual é de 18%.
Enquanto isso, em Engenharia temos 11,3%, comparados com 15,6% na OCDE. Pior que isso, as Ciências Naturais correspondem a 1,4% e na OCDE 5,7%, uma marcante diferença. No Brasil, Artes e Humanidades recebem 2,3% das matrículas, enquanto na OCDE, são 12,2%. 4 Ao que parece, os estudantes buscam cursos que julgam serem menos exigentes e de maior empregabilidade. As disciplinas que integravam as atividades nas universidades tradicionais da Europa, no Brasil não têm boa procura. Preferimos educação e profissões técnicas, mas pouco tecnológicas ou científicas. Isto se deve, provavelmente, à falta de base em matemática e ciências exatas, e a busca de áreas que supostamente asseguram maior empregabilidade.
O risco que se corre é que, em nome da inclusão, se recebam alunos pouco qualificados, sem o mínimo domínio dos conteúdos básicos, além de não se oferecer a estes estudantes os indispensáveis programas intensivos de capacitação paralelos aos cursos regulares, com o objetivo de alçar os novos estudantes menos preparados ao nível mínimo indispensável para acompanhar os cursos superiores - queremos inclui-los desde que não representem uma carga grande de trabalho adicional. Defendemos a inclusão, mas não estamos dispostos a nos desdobrar para viabilizá-la com qualidade.
Confirmando esta situação, o Estadão Conteúdo de 2021 publica: "Dados da última avaliação nacional realizada antes da pandemia mostram que 95% dos estudantes terminam a escola pública no País sem o conhecimento esperado de Matemática. O resultado do Sistema de Avaliação do Ensino Básico (Saeb) é ainda mais grave porque muitos desses alunos passaram, em seguida, por um ano de escolas fechadas e ensino remoto insuficiente. Só 5% deles conseguiam, por exemplo, no 3.º ano do ensino médio, resolver problemas usando probabilidade ou com o Teorema de Pitágoras. Em português, uma quantidade bem menor, 69%, não chega ao nível considerado adequado. Eles não conseguem identificar a ironia em um texto e inferir o tema de uma reportagem."
Com turmas heterogêneas, cheias de estudantes despreparados, muito provavelmente, a tática acaba sendo baixar o nível de exigência "para não criar problemas", como reprovações em massa que criariam um clima de revolta e desmascarariam a tese da inclusão a qualquer preço. Nada parecido com as políticas educacionais dos países asiáticos e nórdicos que têm obtido os melhores resultados mundiais na educação de seus cidadãos.
Matéria publicada por Juliana Corsin em O Globo, em junho de 2024, "Falta 'Match': Formação Superior Cresce em Dissonância com a Demanda das Empresas." chama a atenção para esse problema: "Estudo do início do ano da solução de análise de dados Geofusion, da empresa Córtex, do qual O GLOBO teve acesso a detalhes inéditos, mostra que só um em cada dez recém-formados nos cursos mais populares do país consegue uma vaga formal equivalente ao seu nível de capacitação. É um retrato do desencontro entre a expansão do ensino superior no Brasil e a necessidade de mão de obra especializada das empresas. Na linguagem dos aplicativos de namoro, falta match."
A consequência é que uma grande parcela dos futuros bacharéis é mal preparada para assumir as responsabilidades técnicas e conceituais necessárias 5 ao bom desempenho que se esperaria destes novos profissionais de nível superior. Quando procuram o mercado de trabalho sofrem com as recusas, ou com a oferta de salários incompatíveis com as expectativas. E quando pensamos na formação superior mais curta, que deveria focar exatamente na empregabilidade, é onde vemos mais oportunidades para cursos em EaD e de alguma forma de formação em "gestão", ou seja, uma formação que não faz grande diferença no currículo do agora profissional que vai buscar seu emprego mais bem pago em razão de seu recente diploma. Segundo o Bureau of Labor Statistics dos EUA, em 2024, 12% dos egressos do ensino superior naquele país estavam desempregados e, dentre os empregados, 40% trabalhavam em empregos que não exigiam um diploma universitário.
Segundo a revista Insider Viger Education, 52% dos graduados atuavam em empregos que não exigiam diploma superior e lá permanecem por muitos anos. Não basta formar, é preciso dar emprego compatível com essa formação para não desperdiçar recursos e vocações. No Brasil há cerca de 18 milhões de profissionais de nível superior e somente 14,5 milhões de empregos para esses profissionais. Como consequência, somente 7% dos profissionais de Enfermagem são contratados como enfermeiros e 72% o são como Técnicos de Enfermagem; 3% dos Administradores como Administrador e 36% como Auxiliar de Escritório, que aliás, prepondera como emprego de recém-formados em nossas IES ("Pesquisa Aponta Lacunas entre o Ensino Superior e o Mercado de Trabalho", Eduarda Lavocat, 30/6/2024, Cortex). Altera-se, então, o foco da crítica.
Voltamos aos empresários das indústrias químicas: "as universidades não estão preparando os profissionais formados com as ferramentas necessárias para enfrentaram de imediato as exigências do setor produtivo, mais tecnológico e sofisticado". O problema agora é que não só não formamos profissionais "prontos para o mercado", mas formamos profissionais com sérias deficiências de conteúdo e prática. Diante desta realidade, fortaleceu-se a ideologia da "empregabilidade" - educar para o trabalho. Pesquisa recente realizada pela CNI com empresários indicou que a principal queixa das indústrias em relação à formação de engenheiros era o pouco domínio dos soft skills (habilidades comportamentais, emocionais e sociais), competências como liderança, trabalho em equipe, organização do tempo etc.
Sem críticas a deficiências na formação técnica. Há uma frase conhecida que diz: "engenheiros são contratados pela competência nas hard skills e demitidos pela incompetência nas soft skills". O problema é que não se ensina soft skills como as disciplinas tradicionais (é possível ensinar teoricamente liderança, trabalho em equipe? Ou estas são muito mais desenvolvidas a partir de experiências vividas e treinadas?). Nossas universidades não estão preparadas para enfrentar esse desafio. Deveriam estar? Como a formação superior é um jogo de soma zero, se tirarmos tempo dos currículos relativo a conhecimento técnico/científico para introduzirmos competências que favoreçam a empregabilidade, menos tempo teremos para o desenvolvimento mais aprofundado daquele conteúdo. 6 São vários modelos de formação para diferentes objetivos.
O risco é que, por modismo, se abandone o que até certo ponto vem se consolidando, por algo que não tem contribuído de forma realmente positiva para a nossa sociedade. É preciso separar claramente as diferentes missões do ensino superior tendo em vista as atuais necessidades sociais e consolidando os diferentes perfis institucionais com qualidade e objetividade necessárias para abrir novas frentes sem prejudicar o que de bom já existe.
No meu próximo artigo eu falarei sobre "MICROCREDENCIAIS, UNIVERSIDADES E EMPREGABILIDADE - MISSÃO COMPLEMENTAR OU SUBSTITUTIVA? COMO PENSAM OS ESPECIALISTAS INTERNACIONAIS." complementando as ideias que tratei aqui.
*Roberto Lobo é PhD em física pela Purdue University, foi reitor da USP e é presidente do Instituto Lobo
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