MICROCREDENCIAIS, UNIVERSIDADES E EMPREGABILIDADE - MISSÃO COMPLEMENTAR OU SUBSTITUTIVA? COMO PENSAM OS ESPECIALISTAS INTERNACIONAIS.
Roberto Lobo 10 de outubro de 2024 Há poucos dias escrevi o artigo "ENSINO SUPERIOR, UNIVERSIDADES E EMPREGABILIDADE - AS MISSÕES DA EDUCAÇÃO SUPERIOR" e entendo que este novo artigo complementa o primeiro. O tema empregabilidade e o ensino superior também foi tema de outro artigo, de Simon Marginson "Empregabilidade: uma crise existencial do ensino superior" de outubro de 2023, publicado pela Global, parte do qual traduzi livremente. O foco do estudo é a empregabilidade e a equidade. Não necessariamente a qualidade da educação superior em seu amplo espectro. Seguem alguns trechos elucidativos e que devem gerar nos formadores de políticas para a educação, pelo menos, uma ampla reflexão: Recentemente, Dirk Van Damme, ex-chefe do Centro de Pesquisa e Inovação Educacional da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), questionou a expansão do ensino superior internacionalmente. "Há sinais prementes de que altos níveis de conclusão universitária não têm apenas efeitos positivos nas sociedades e economias", afirmou Van Damme, observando "subemprego de graduados, superqualificação, incompatibilidades e efeitos de substituição". Mais promissor, disse ele, é "o interesse em rápida expansão em programas curtos e certificações não tradicionais, como microcredenciais". O colega de Van Damme na OCDE, Andreas Schleicher, diretor da OCDE para educação e habilidades, concorda. As microcredenciais "dão aos empregadores melhores sinais do que as pessoas sabem e podem fazer", argumentou ele em Londres em março de 2023, comparando-as novamente, e favoravelmente, com as universidades. Para as universidades, a vida é "realmente muito confortável", disse ele. "Você agrupa conteúdo, entrega, credenciamento - você pode obter um bom retorno pelo monopólio." Mudar para microcredenciais significaria que o status do provedor não importa mais. Parece que as microcredenciais são o novo caminho para a equidade. É difícil acreditar que combinar diplomas para a classe média com microcredenciais para as massas criará equidade social, mas há evidências crescentes de que os formuladores de políticas com inclinação econômica estão perdendo a paciência com o ensino superior como o conhecemos. Na Austrália, o governo nacional pede "graduados prontos para o trabalho" e financiou o desenvolvimento de programas que levam a microcredenciais. Em cada caso, o diagnóstico do problema e a solução são os mesmos. O ensino superior deve ser principal (ou exclusivamente) e diretamente vocacional. A ideia de "graduados prontos para o trabalho" resume isso. Mas o ensino superior não é adequado para esse propósito específico. A preparação para o trabalho é uma de suas missões, mas nunca foi a missão principal. Menos ainda é a única missão. O ensino superior não é principalmente a formação de graduados "empregáveis". É a formação cultural de pessoas por meio da imersão no conhecimento baseado em disciplinas. Os alunos são formados - ou melhor, se formam - por meio de aprendizado profundo em vários campos acadêmicos e profissionais. É o conhecimento, não a empregabilidade, que unifica o ensino superior."
Missões intrínsecas e extrínsecas O ensino superior tem múltiplas missões, como Clark Kerr argumentou ao rotular as universidades como "multiversidades". Existem dois tipos de missões: missões intrínsecas e missões extrínsecas. As missões intrínsecas - o núcleo clássico do ensino superior - são a educação dos alunos e a transmissão, criação e disseminação de conhecimento. Essas missões moldam a organização interna do setor. O ensino, a aprendizagem e a pesquisa são baseadas em disciplinas epistêmicas, programas de estudo e departamentos, ou escolas. Para Marginson, qualquer educação digna desse nome deve sempre contribuir para processos de subjetivação que permitam que os formados se tornem mais autônomos e independentes em seu pensar e agir. Desta forma, o ensino superior prepara os alunos para toda a vida, incluindo o trabalho. O ensino superior também tem missões extrínsecas, que realiza em parceria com outros setores sociais, incluindo governo, empregadores, profissões liberais e comunidades locais. No entanto, a política econômica geralmente se concentra apenas na preparação extrínseca para o trabalho, como se as outras missões não existissem. As microcredenciais reduzem o ensino superior à qualificação e dividem-no em fragmentos."
Educação e Trabalho Quando o foco é a empregabilidade e a educação segue como um reboque, o que esperar do ensino superior? Se a política econômica se propusesse a projetar o ensino superior desde o início focado apenas em graduados empregáveis, ela não usaria a formação cultural, o conhecimento acadêmico e o nexo ensino-pesquisa como blocos de construção. Mas as sociedades querem mais do ensino superior. Estudos constatam repetidamente que a maioria dos alunos tem múltiplos objetivos no ensino superior. Eles querem desenvolvimento pessoal, imersão em conhecimento disciplinar e empregos de pós-graduação: não é um ou outro.
O ensino superior e o trabalho são mais bem entendidos como fracamente acoplados. A relação entre ensino superior e trabalho não é um fluxo linear. Pressionar a educação e o trabalho em um único processo - seja tratando-os como essencialmente iguais, ou subordinando um ao outro - é violar o trabalho ou o ensino superior. Não há prêmios para adivinhar qual é mais vulnerável.
Uma crise existencial emergente Como as relações de trabalho impactam a educação superior e que soluções são mais adotadas?
Abriu-se um abismo entre a função educacional intrínseca e as expectativas vocacionais da política e da mídia. Não seria necessário posicionar a educação intrínseca como sendo conflitante com a contribuição extrínseca.
Mas os formuladores de políticas na Austrália e no Reino Unido, bem como em alguns outros países, estão fazendo tentativas firmes de instalar a missão extrínseca de preparação para o trabalho, não ao lado, mas no lugar da missão educacional intrínseca. A empregabilidade está se incorporando ao ensino superior de massa com considerável autoridade moral. Todo mundo quer um emprego e o trabalho é visto como um direito humano. No entanto, o ensino superior não é muito eficaz na preparação direta para o trabalho e não pode criar empregos - e o mantra da empregabilidade bloqueia a visão de sua missão educacional central, que é a autoformação do aluno por meio da imersão no conhecimento." Em artigo recente, Malcolm Tight, "Empregabilidade: um papel central do ensino superior", o professor e escritor inglês, autor de vários livros sobre tema como "Academic Freedom and Responsability", também abordou o tema da empregabilidade. "Este estudo sobre empregabilidade no ensino superior colocou em discussão o atual no contexto de debates de longo prazo sobre os propósitos e valores do ensino superior. A crescente ênfase nas iniciativas de empregabilidade enfatiza os propósitos vocacionais do ensino superior, vendo-o como pouco mais do que uma preparação final para uma vida inteira de trabalho produtivo. Embora seja ingênuo argumentar, em contraste, que o papel principal do ensino superior é o desenvolvimento do pensador individual dentro de uma perspectiva disciplinar, uma abordagem mais equilibrada é certamente possível e desejável. É verdade que a maioria dos programas de ensino superior está preparando os estudantes para funções vocacionais ou profissionais específicas ou genéricas. No entanto, esses programas, e a experiência do ensino superior como um todo, também visam fazer muito mais, e esse objetivo não deve ser perdido pelo foco contemporâneo na empregabilidade dos graduados. Este argumento recebe maior peso pelas evidências de pesquisa que mostram que: - Não existe um consenso sobre quais as competências de empregabilidade mais importantes; - Não há evidências convincentes de que as iniciativas de empregabilidade realmente funcionem, além do que o ensino superior já faz; e - Muitos empregadores continuam satisfeitos com a qualidade dos graduados que empregam ou não estão dispostos a se envolver com o ensino superior em iniciativas de empregabilidade." Talvez seja hora de revisar o sistema de ensino superior e suas interseções com o mundo do trabalho. Sem desvalorizar a importância da universidade de pesquisa, que precisa ser sempre mantida e apoiada, é preciso encontrar outros caminhos que atendam às "demandas explícitas" mais baratas e mais objetivas para o mundo do trabalho. Novamente, defendo que não pode haver um modelo único para o que se chama de Universidade no Brasil, assim como uma maior pluralidade de missões e até mesmo de estruturas institucionais, que não seja, necessariamente universidades, pois a rigor, constitucionalmente, nossas universidades seguem o modelo (cada vez mais restritivo diante da realidade) de universidades de pesquisa, o que não é atendido, na prática, o que se desejava da universidade pela grande maioria dessas instituições brasileiras. Seria mais coerente ampliar a oferta do ensino superior, incentivando formações paralelas e incorporando novas tecnologias na EaD, o potencial da Inteligência artificial para ajudar no aprendizado, reforçando e fortalecendo os dois caminhos, e não a escolha de um em detrimento do outro: a formação universitária tradicional formando pesquisadores e profissionais com boa base científica e cultural e a formação imediata, mais curta e objetiva, para o trabalho pelas microcompetências, estimulando, paralelamente, o ensino técnico no nível médio e incorporando-o na trajetória formativa de estudantes que tenham esta vocação.
*Roberto Lobo é PhD em física pela Purdue University, foi reitor da USP e é presidente do Instituto Lobo
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