A presença minoritária das mulheres nas áreas de Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática (chamadas de STEM - Science, Technology, Engineering and Mathematics) tem sido motivo de preocupação e interesse, nesses tempos de grande mobilização pela igualdade e diversidade, sendo há muito tempo atribuída a dois fatores opostos: Hipótese 1 - as mulheres são menos competentes que os homens nos assuntos relacionados com as áreas de exatas; os homens têm pensamento abstrato mais desenvolvido, enquanto as mulheres são mais práticas. As origens desta diferença, segundo quem acredita nelas, poderiam ser genética, sociais ou ambas. Hipótese 2 - as mulheres são tão competentes quanto os homens, ou mais, mas são discriminadas desde jovens quanto à sua capacidade de serem competitivas nas áreas de ciências exatas e tecnológicas, tanto cultural quanto socialmente, por serem consideradas "áreas masculinas". Neste texto vamos analisar estas duas explicações que estão longe de revelar a realidade, muito mais complexa do que uma mobilização, às vezes raivosa, que defende uma visão numérica de igualdade para superar o que seriam diferenças puramente históricas e culturais. A astrônoma irlandesa Jocelyn Bell Burnet, PhD pela Universidade de Cambridge, palestrando no YouTube sobre o tema "Reflections on Women in Science", relata que quando criança (não faz tanto tempo assim...) na hora da aula de ciências na escola de ensino fundamental que frequentava na Austrália, as meninas eram retiradas para uma prática de prendas domésticas enquanto os meninos seguiam para suas lições de ciências! Ela, que é um exemplo de mulher que tem talento e gosto pela ciência, se revoltava, com razão, com essa prática que se baseia em pré-julgamentos e preconceito. Muitos estão convencidos de que, para se dar bem nas áreas científicas e tecnológicas, a mulher precisa ser masculinizada. A má vontade e rudeza de alguns professores com as mulheres que frequentam seus cursos são exemplos tristes desse preconceito. Em oposição a esta visão, que é aparentemente majoritária ainda hoje, clama-se que se não fosse por esses preconceitos, as mulheres estariam competindo em número e qualificação com os homens em todos os aspectos e em todas as áreas que ainda hoje em sua maioria são "masculinas". Aqui cabe uma reflexão: seria de fato desejável que a sociedade tivesse em todas as áreas e profissões igual número de homens e mulheres (igualdade aritmética), ou seria melhor que homens e mulheres tivessem iguais oportunidades de explorar seus talentos e suas vocações (igualdade de oportunidade e de escolha)? Há bastante diferença entre sexos, por exemplo, em função das áreas cobertas pelas profissões de nível superior. No último ENADE que comportou a Engenharia, cerca de 2/3 (69%) dos estudantes que participaram da prova pertenciam ao sexo masculino e 1/3 ao feminino (31%). Nas notas há uma supremacia mínima dos homens (2% superior). Nada dramático, praticamente um empate técnico, do qual não se pode extrair nenhuma superioridade masculina! Não é nas notas que se deve investigar a diferença entre os sexos, mas nas proporções entre os formandos. Essas proporções não são uma peculiaridade do Brasil. Se compararmos o percentual de mulheres nos cursos de graduação nas diferentes especialidades de Engenharia no Brasil e nos Estados Unidos, por exemplo, percebe-se que há claramente especialidades que são mais procuradas pelas mulheres. No Brasil, as áreas de Alimentos (76%), Química (57%), Ambiental (57%) e Florestal (52%) e nos EUA as áreas de Meio Ambiente (50%), Biomédica (44%), Biologia & Agricultura (37%) e Química (36%). Em outras modalidades, as semelhanças se mantêm: na Engenharia Elétrica (15% no Brasil e 14% nos EUA) e Mecânica (11% no Brasil e 15% nos EUA), onde, ao contrário, a presença de mulheres é bem pequena. O mesmo ocorre no mundo todo. A OCDE, que engloba países com a maior igualdade entre os sexos, em sua publicação "Education at a Glance" (2019) apresenta uma tabela com a participação de novos ingressantes no ensino superior nos países a ela associados e a participação de mulheres nas diferentes áreas de conhecimento. Nota-se ao se analisar a tabela que, claramente, na média da OCDE, as escolhas femininas recaem sobre áreas muito específicas, como Saúde e Bem Estar (77%) e é bem menor nas áreas de STEM (30%). Seria o preconceito que move estas escolhas, ou talentos e vocações? No Brasil, dados do IBGE vão no mesmo sentido ao indicar as porcentagens de estudantes mulheres matriculadas nas grandes áreas do ensino superior brasileiro: Bem Estar (88%), Saúde (sem Medicina, 77%), Ciências Sociais e Comportamentais (70%), Educação (65%), Computação e TI (13%) e STEM (21%). Tudo muito parecido com o que ocorre na OCDE! São características universais que naturalmente devem ter uma origem comum. Em um recente artigo publicado na Psychological Science dos psicólogos Gijsbert Stoet, da Leeds Beckett University, e David Geary, da University of Missouri, ao analisar os resultados dos testes em 67 países e regiões, verificaram que algumas hipóteses são desmentidas pelas estatísticas baseadas em dados concretos e suas correlações. Segundo os autores: "- amplos estudos realizados com estudantes do ensino médio demonstram que as mulheres têm, em média, melhor desempenho em ciências e matemática do que os homens. No entanto, o melhor desempenho das moças é em redação, leitura e ciências sociais. Portanto, não é falta de talento ou estudo que as afastam, eventualmente, das disciplinas chamadas duras. As moças certamente seriam capazes de estudar ciências e matemática de nível universitário se estivessem matriculadas nestas disciplinas"... "Quando se trata de seus pontos fortes, em quase todos os países estudados - exceto Romênia e Líbano - a melhor matéria dos rapazes era ciência, e das moças, leitura - ou seja, mesmo que uma estudante média fosse tão boa quanto um estudante médio em ciências, ela provavelmente seria ainda melhor em leitura. Em todos os países, 24% das moças tinham ciência como sua melhor matéria, 25% das moças eram fortes em matemática, e 51% eram excelentes em leitura. Para os rapazes, as porcentagens foram de 38 para ciências, 42 para matemática e 20 para leitura."... Dizem ainda os autores: - nos países onde há igualdade real entre os sexos, as mulheres demonstram menos desejo de buscar a formação nas áreas de STEM do que nas áreas mais relacionadas à linguagem, saúde e ciências humanas. O crescimento da presença de mulheres nas áreas de STEM acompanha o aumento do índice de desigualdade entre sexos. Quando se atinge atinge a igualdade, a procura destas áreas pelas mulheres, paradoxalmente (ou não), diminui." Segundo eles, esse dado pode ter a ver com o fato de que as mulheres em países com maior desigualdade de gênero estão simplesmente buscando o caminho mais claro possível para a afirmação profissional e a liberdade financeira e, normalmente, esse caminho leva às profissões STEM. E quanto mais igualdade de gênero o país apresenta, conforme medido pelo Índice Global de Diferença de Gênero do Fórum Econômico Mundial, maior é essa disparidade entre rapazes e moças quando a ciência é sua melhor matéria. Isto é, mais rapazes preferem ciências, que é sua melhor competência, mas as moças embora com melhor resultado em ciências que os rapazes, ainda preferem outras áreas, mais ligadas à linguagem e à sociedade. "Países com maior igualdade de gênero tendem a ser estados de bem-estar social", escrevem os autores. Enquanto isso, países com menos igualdade de gênero também tendem a ter menos apoio social para pessoas que, por exemplo, se encontram desempregadas. Assim, sugerem os autores, as moças nesses países podem estar mais inclinadas a escolher profissões que oferecem um futuro financeiro mais certo do que, digamos, pintar ou escrever. Quando analisada a classificação de "satisfação geral com a vida" de cada país - uma medida de oportunidades e dificuldades econômicas - os autores descobriram que países com igualdade de gênero tinham mais satisfação com a vida. O ranking de satisfação com a vida explicou 35% da variação entre igualdade de gênero e participação das mulheres em STEM e confirmam pesquisas anteriores que mostram que os gêneros são realmente mais segregados por campo de estudo em locais mais desenvolvidos economicamente, ao contrário do que se escuta normalmente. Nos países nórdicos (Suécia, Noruega e Finlândia) que apresentam IGDG (Índice Global de Diferença de Gênero do Fórum Econômico Mundial) bastante alto (0.83) a presença de mulheres em STEM é de cerca de 20%, enquanto nos países com IGDG mais baixo (0.65) como Turquia, Tunísia e Emirados Árabes a presença de mulheres em STEM é bem maior (37%). Talvez, como sugere Jordan Peterson, professor de psicologia da Universidade de Toronto, e sem demérito para ninguém, "há diferenças reais, sem hierarquização, entre homens e mulheres. Os homens se preocupam mais com as coisas e as mulheres com as pessoas. Quando se atinge a igualdade entre sexos, outras características que antes não se percebia claramente, aparecem". Em 2018, Olga Khazan, da revista The Atlantic, publicou um artigo em que comenta o estudo de Stoet e Geary e explora um estranho paradoxo com o título: "Em países que emponderam as mulheres, elas são menos propensas a escolher profissões de matemática e ciências". Segundo a autora, o que explica a tendência de nações que tradicionalmente têm menos igualdade de gênero a terem mais mulheres na ciência e tecnologia do que suas contra-partes progressistas de gênero? Para Khazan, "A pesquisa mostra que não é que a igualdade de gênero desencoraje as mulheres a buscar ciência. Pode ser que, sentindo-se financeiramente seguras e em pé de igualdade com os homens, algumas mulheres sempre escolherão seguir suas paixões, em vez do que os economistas trabalhistas recomendam. E essas paixões nem sempre estão dentro da ciência. Ao contrário, é que isso permite que elas não o façam se não estiverem interessadas." É preciso usar mais ciência (e menos discurso) para entender porque as mulheres em não optam majoritariamente pelas áreas de STEM.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.