O Jugaad e as Universidades Brasileiras: Mobilização pela Inovação Social!
Roberto Lobo 30 de outubro de 2023
No dia 6 de outubro passado fui homenageado pelo Instituto de Física de São Carlos, no qual iniciei minha carreira acadêmica na Universidade de São Paulo. Além da carinhosa homenagem, encontrei vários colegas e ex-alunos, além de novos professores e dirigentes do campus de São Carlos.
Almoçamos com vários colegas antes de visitarmos alguns centros que tive a oportunidade de criar durante minha gestão, como o Centro de Divulgação Científica e Cultural (CDCC) e o Observatório Astronômico, situado em uma das principais avenidas da cidade e me lembrei da discussão que tivemos sobre a localização do observatório na época de sua implantação.
Alguns queriam colocá-lo em lugar elevado para observar com maior precisão os objetos celestes, pensando em possibilidades de pesquisa. Eu já defendia que deveria ter um papel de divulgação científica e por isso deveria ser na cidade, onde as crianças e os jovens pudessem visitar sem precisar de transporte, atingir o observatório com uma simples caminhada para criar entre a população e o observatório um vínculo de intimidade. Valeu minha posição e hoje o observatório está colocado na entrada do campus, acessível a todos e é muito visitado inclusive por pessoas e alunos de outras cidades.
Durante o almoço e, posteriormente, conversamos com colegas da Física, da Química e da Engenharia sobre o papel da universidade no Brasil e a importância da inovação.
Foi aí que me lembrei de um texto que me marcou muito e se referia ao jugaad, termo indiano que significa algo como "gambiarra" no Brasil e divulgado em um livro que li com muita atenção há algum tempo, "A Inovação do Improviso", de Navi Radjou, Jaideep Prabhu e Simone Ahuda.
Neste livro eles relatam experiências de inovações na Índia de baixo custo e na maioria das vezes de baixo teor tecnológico, adaptados às necessidades mais imediatas das classes mais pobres da Índia, como refrigeradores que não consomem energia elétrica, entre muitas outras inovações que não agregam valor tecnológico ou científico, mas adaptam o já conhecido para beneficiar milhares de pessoas de baixa renda.
No Brasil esta iniciativa é também chamada "inovação frugal", embora não me pareça a denominação ideal. O termo inovação social é também utilizado, quando o foco não é tanto a tecnologia, mas o impacto social de novos produtos baratos para melhorar as condições de vida das populações mais carentes.
Também chamada de inovação com restrição de recursos, de custo ou reversa, a abordagem firmou-se com esse nome a partir de uma reportagem da revista britânica The Economist sobre versões simplificadas de equipamentos médicos, ou de carros desenvolvidos na Índia para consumidores de baixa renda.
Lembrei-me, então, da recente mobilização da USP durante a pandemia do Covid-19 para a fabricação de respiradores emergenciais, chamada "Inspire".
O Inspire é um equipamento de suporte respiratório emergencial que atende os requisitos da ANVISA para oferecer uma alternativa e suprir uma demanda hospitalar causada pela pandemia.
O equipamento foi projetado e desenvolvido por pesquisadores da Escola Politécnica da USP, em colaboração com outras entidades, com vários diferenciais importantes: é um equipamento portátil de baixo custo (mais de dez vezes mais baratos que os convencionais), utiliza tecnologia brasileira possuindo autonomia de até 2 horas em caso de falta de energia elétrica e não precisa de ar comprimido para seu funcionamento, sendo, por isso, ideal para utilização em hospitais de campanha, ambulâncias e regiões remotas. Salvou e tem salvado muitas vidas.
Lembrei-me, também, da experiência do Olin College de Massachusetts, EUA, uma das mais inovadoras escolas de engenharia do mundo, que tive a oportunidade de visitar e onde conversei várias vezes com seu reitor de então, Richard Miller, onde no primeiro ano do curso, entre outras atividades, desafia os calouros a definir projetos tecnologicamente simples e de impacto social, atividade muito bem recebida pelos estudantes.
Comentei com meus colegas da USP, no dia de minha homenagem, que as universidades têm se preocupado bastante em incentivar inovações de alto teor tecnológico (que eventualmente possam se transformar em unicórnios - muito valorizados nos relatórios de agências de fomento sobre o sucesso de alguns financiamentos), muitas vezes descolados da principal missão do uso do dinheiro público - o atendimento à sociedade.
Por isso, eu acredito (assim como muito pesquisadores, inclusive de setores ligados à inovação) que as universidades poderiam criar um amplo programa de atendimento inovador e tecnológico, ainda que de baixo teor, para nossas classes de baixa renda, apoiado em uma política de financiamento muito favorável para a população mais carente, atacando pontos como abastecimento de água, transporte barato, saneamento básico, etc.
Ao voltar ao meu escritório, busquei recordar alguns artigos sobre o equivalente ao jugaad no Brasil e encontrei um excelente artigo na Revista da FAPESP: "Simplicidade norteia inovações frugais" de Carlos Fioravanti e vi, com alegria, que algumas iniciativas importantes neste sentido já ocorriam no Brasil.
Na Universidade do Sul de Santa Catarina (UniSul), por exemplo, uma despolpadora de butiá: "Elaborada com apoio do governo britânico e da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (FAPESP), a despolpadora é feita de peças recicladas - essencialmente, um tubo de inox comprado em uma loja de sucata, munido de filtros com poros de diferentes tamanhos."
A matéria cita que a versão passou por todos os testes de avaliação, com um manual de uso e manutenção, para os integrantes de uma associação comunitária de Imbituba, no litoral catarinense. O equipamento é um exemplo de inovação frugal, definida como soluções simples, eficientes e de baixo custo, que resolvem problemas locais de pequenos produtores e consumidores de baixa renda.
Muitos outros exemplos são citados no artigo, que recomendo a quem aprecia o uso da imaginação associada a tecnologias simples.
Na apresentação de seu livro, Radjou e coautores explicam:
"A inovação frugal é uma maneira de as empresas criarem produtos de qualidade com recursos limitados. Outrora a estratégia de empresas situadas em mercados pobres, empresas ocidentais estão agora procurando maneiras de atrair consumidores preocupados com custos e ambientalmente conscientes. Com um mercado global estimado em trilhões de dólares para produtos frugais e com economias de custos potencialmente enormes a serem obtidas, a inovação frugal está revolucionando os negócios e remodelando o pensamento gerencial. Os autores atacam problemas como o de conseguir customização maciça, o uso de robótica de baixo custo, produtos com design barato e protótipos de software virtual, como consumidores e outros parceiros externos podem ajudar a desenvolver produtos, como implantar práticas sustentáveis, tais como produtos que não produzem lixo e como mudar a cultura das corporações para elas absorverem essa filosofia."
Acredito que a contribuição para o país de um projeto com essa filosofia seria mais impactante que meia dúzia de unicórnios financiados com recursos públicos, quase todos voltados ao setor financeiro (no Brasil não temos unicórnios na educação, nem em infraestrutura básica, ao contrário dos EUA e da Índia, por exemplo).
Dessa forma, a universidade - em especial a pública - devolveria à sociedade projetos que não só fazem mais sentido, como parecem ser mais necessários em um país com tantas desigualdades, e que sem prejudicar o desenvolvimento de pesquisas de ponta, (que também é papel de uma universidade de pesquisa), poderiam ser incorporados na prática dos alunos, ou em projetos de extensão universitária.
As pesquisas ambiciosas que, embora também importantes, têm retorno mais individual do que coletivo no curto prazo, não tem gerado, em muitos casos, o que chamamos de inovação de fato e custam por vezes muito mais do que devolvem para a sociedade que as financiam, cuja maior parte vem da população de baixa renda.
Esta ação teria múltiplos desdobramentos:
- Atenderia ao desejo dos estudantes de contribuir para o desenvolvimento social e sustentável;
- Ofereceria aos estudantes dos anos iniciais, tanto na área tecnológica quanto social, de o contato prático com projetos reais e multidisciplinares;
- Aumentaria a integração das universidades com seu entorno;
- Criaria uma parceria entre professores e estudantes na busca de soluções criativas e de impacto social;
- Geraria novas tecnologias que poderiam ser comercializadas a baixo custo e desenvolvidas como tecnologias disruptivas, segundo o conceito de Clayton Christensen em "O Dilema da Inovação";
Que belo recado seria essa iniciativa e que belo desdobramento da missão de nossas universidades!
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