Se tiver burocracia politizada, agência reguladora de faculdades não dá um passo, diz especialista

Para Cláudio de Moura Castro, ex-presidente da Capes, não adianta criar estrutura sem definir bons critérios de avaliação; MEC planeja novo órgão para o ensino superior privado

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Foto do author Marcio Dolzan
Foto: Iara Morselli/Estadão
Entrevista comCláudio de Moura CastroPesquisador em Educação e doutor em Economia pela Universidade Vanderbilt (EUA). Presidiu a CAPES entre 1979 e 1982.

A intenção do governo federal de criar uma agência reguladora para as instituições de ensino superior privadas é vista com ressalvas por Cláudio de Moura Castro, especialista em educação e ex-presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), órgão ligado ao Ministério da Educação (MEC).

Para ele, o Brasil já possui mecanismos avançados para avaliação. “O desafio é saber se dá pra criar (uma agência reguladora) decente, e não pela metade”, diz em entrevista ao Estadão. “Se você não der força, não puser gente boa e tiver burocracia politizada, não dá um passo à frente”, destaca ele.

O governo federal desenvolve uma proposta de um órgão regulador. Os argumentos são de que o MEC não tem estrutura suficiente para avaliar as faculdades particulares e há problemas de qualidade no ensino superior privado. Um instituto com essa função havia sido sugerido em projeto de lei enviado ao Congresso pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT) em 2012, mas o texto não avançou.

Em entrevista ao Broadcast/Estadão, o ministro da Educação Camilo Santana (PT) disse que as atividades de avaliação trazem custos à máquina pública e afirmou que uma das maneiras de viabilizar a nova estrutura é cobrar taxas das faculdades.

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“Nada mais justo do que cobrar das instituições, que são privadas, e cujo objetivo é ter lucro”, defendeu o titular do MEC. Associações que representam as instituições particulares de ensino, por sua vez, se opõem ao plano.

Confira os principais pontos da entrevista com Cláudio de Moura Castro.

O ministro da Educação quer criar uma agência reguladora para o ensino superior privado no Brasil. É uma medida necessária?

O grande mérito das agências reguladoras é que elas são independentes, ou deveriam ser independentes. No Estados Unidos, tem a FDA para as drogas (Food and Drug Administration), a FAA para a aviação (Federal Aviation Administration), que são agências com independência muito dura. No Brasil, algumas são melhores do que outras. Essa das drogas (Anvisa) se revelou bem robusta na época da covid-19. Na época da Dilma (Rousseff), a Anac fraquejou um pouco.

Elas são importantes, mas desde que tenham gente com prestígio, com cabeça no lugar. Ou seja, o ponto de partida é bom. Mas se você não der força, não puser gente boa e tiver uma burocracia politizada, não dá um passo à frente. O desafio é saber se dá pra criar e ser decente, e não pela metade. Se não serve só para criar despesas, criar a máquina, burocracia, contratar secretários, essa coisa toda.

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O governo federal desenvolve uma proposta de um órgão regulador. Os argumentos são de que o MEC não tem estrutura suficiente para avaliar as faculdades particulares  Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Por exemplo: a Capes nunca ninguém conseguiu botar a mão nela. Funciona, e não é uma agência reguladora. Ou seja, a agência reguladora não é uma condição nem necessária, nem suficiente. Não quer dizer que não seja uma boa ideia.

Como seria o formato?

Deve ser algo parecido com os outros. Tem de ser um órgão independente, com gente tecnicamente equipada, e evitar politização. Que avalie o que tem de avaliar. Isso é apenas um lado da questão. O outro lado é como você avalia. Pode ter a melhor agência do mundo e avaliar errado.

Qual é o critério que você vai usar? Se você avalia a universidade pela louça, pelo mobiliário, pelo banheiro, pode fazer isso com perfeição, mas não está medindo certo. Se você julga uma universidade pelo seu programa de extensão, não vai a lugar algum. Vai julgar pela extensão?

Harvard, MIT, Princeton e Stanford (universidades americanas de prestígio) não têm programa de extensão. É o critério errado a qualidade do programa de extensão. Ele é um apêndice, pode ser uma coisa bonitinha, pode ter papel importante, mas não é a essência. A essência é se produz algo competente e, no caso das universidades de pesquisa, se produz pesquisa relevante.

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O senhor vê problema de regulação no ensino superior privado hoje?

É razoavelmente regulado. Existem visitas, critérios, o Enade (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes). Você pode fazer críticas pontuais, dizer que o Enade não mede exatamente o que deveria medir, ou que nesse ano a prova não foi boa, ou qualquer coisa assim.

Mas essencialmente há um mecanismo de controle, que mede o que os alunos aprenderam, e mede o que a universidade oferece do ponto de vista das suas facilidades físicas, do perfil dos professores, dos seus problemas, etc.

Um erro que existe é valorizar demais essa segunda parte. O que verdadeiramente interessa é o perfil dos alunos que saem daí. Outra falha é que a gente não inclui o que acontece com o aluno depois que se forma, o que é crítico. Não é bem ter que fazer exatamente o que está no curso, mas tem de se dar bem, de crescer, de ser uma pessoa com uma série de condições.

Nesse sentido há uma distorção: a avaliação privilegia o aspecto material, de currículo, de perfil de professores, e não prestigia o que o aluno aprende. Algumas pesquisas que fiz mostraram que, no ensino privado, a presença de mestres e doutores não melhora em nada a qualidade do ensino.

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Por quê? Porque são pesquisadores, e não os profissionais que você precisa para dar aulas, que são profissionais que ensinam a sua profissão. Há um conjunto de critérios e de princípios que pode ser certo ou errado. Se transfere isso tudo para uma agência reguladora, vai fazer com mais eficiência o mesmo erro de antes.

Há algum exemplo de agência desse tipo no exterior que valha a pena copiar?

Não. Nos Estados Unidos, como país federativo, os Estados são furiosamente independentes. Não há nenhum tipo de controle nacional. O que existe são boards regionais; por exemplo, tem o board da Nova Inglaterra, tem o board lá da Califórnia, o board do sul. Mas são voluntários, a regulação é voluntária. Os Estados Unidos são um caso extremo, você não tem um sistema nacional e não pode ter, porque os Estados não aceitam.

A Inglaterra tem um sistema de avaliação, de regulação, que é sólido e mais ou menos recente. A Alemanha da mesma forma. Os países escandinavos são muito pequenos, e os negócios são muito complicados. A França, curiosamente, depende muito mais dos jornais, do Le Monde, para essas avaliações. Na verdade, o Brasil é um dos países mais avançados em termos de regulação.

O ministro sugeriu também que seja cobrada taxa das próprias universidades particulares para fazer essa fiscalização. Como avalia isso?

Isso é irrelevante. Já era cobrada antes a visita, porque era a universidade quem financiava a visita, e isso era uma fonte direta de corrupção. Depois disso, entrou na lei, o MEC que coleta o custo da visita e repassa para o consultor. Isso (a cobrança as universidades) não é o que tem de importante.

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O governo também fala que quer rever as regras do ensino à distância. Acha que tem de mudar muito nessa questão?

Tem de haver um controle mais próximo. Obviamente, controlando o que é pra ser controlado. E não é só o ensino à distância que tem de ser mais controlado. Tem de melhorar o controle de tudo. O que começando a acontecer nos cursos à distância é que a competição, com esse grande número de cursos, está levando a uma queda de preço.

E essa queda de preço impossibilita um ensino com um pouco mais de atenção, de cuidado. No fundo, não é que esses entes privados estejam passando a perna. Estão concorrendo predatoriamente entre eles. Não é uma sacanagem do capitalista contra o aluno. Além disso, estamos num momento de inflexão. Tivemos 30, 40 anos de crescimento acelerado, uma economia crescendo muito rápido. Hoje a economia está crescendo devagar.

O número de graduados no ensino superior aumentou muito. E o número de graduados de nível médio não aumentou. Hoje você tem uma luta feroz para conquistar aluno. Onde tem os cursos melhores, o Insper, a ESPM, a FGV em São Paulo e no Rio, a concorrência é para oferecer um curso melhor e mais atraente, substancioso. Mas nas outras, a concorrência é pelo preço, o aluno é atraído pelo preço baixo.

Mas, por esse preço baixo, não dá pra fazer um negócio muito bom, o ensino fica meio prejudicado. E a verdade é a seguinte: entre fazer a distância ou o presencial, ele vai preferir a distância, porque não gasta três, quatro horas de condução.

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Existem cursos que possam ser 100% EaD? Algumas entidades educacionais, por exemplo, são contra licenciaturas integralmente à distância…

Há certas áreas que não podem ser 100% EaD. Toda área que tem laboratório com 100% é problemático. Pode ser uma solução minimamente aceitável para quem mora em áreas muito isoladas. Mas não tem razão para ter curso 100% à distância em cidades com certa densidade. O magistério, por exemplo, é um absurdo. A pessoa vinha, a professora dava uma aula, ela assistia e estava pronto.

O que você tem aí não é uma distinção entre ensino presencial e a distância, é de todo ensino. Esses cursos baratinhos são à noite. Aí você diz, “ah, o aluno tinha de fazer um estágio”. Todos os alunos trabalham durante o dia, e não tem escola fundamental à noite. Então, o modelo tem impossibilidade prática de ser implementado.

Quer dizer, há uma oportunidade de educação para o povo, mas essa oportunidade está condenada a que os alunos passem quatro anos sem entrar numa sala de aula (para o estágio), porque eles estudam à noite, e as escolas são de dia.

Esse não é um problema só do ensino à distância, mas também do ensino. No fundo, o presencial é tão ruim ou quase tão ruim quanto (o EAD). Não vamos usar os cursos a distância como caça às bruxas. Vamos lidar igualmente com os dois.

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O MEC também quer oferecer um novo modelo para o Fies, com variações por faixa de renda. Isso é uma boa proposta?

Tudo que adiciona um pouco de flexibilidade, em geral, é bom. O aluno não é pobre ou rico, o aluno é mais pobre ou mais rico. O exemplo de regulação americana é totalmente inapropriado para o Brasil, mas nesse particular o exemplo americano é bom. As universidades americanas negociam balcão de tudo. “Por que você paga?”, “O que você consegue de empréstimo?”, “Onde você trabalha?”.

Se você é um aluno brilhante e se candidata a uma universidade de ponta, eles não te oferecem nada porque todo mundo lá é brilhante. Mas se você se candidata a uma universidade quase boa, ou boa, eles te dizem “fazemos abatimento aqui”, “reduzimos ali”, “arrumamos emprego na universidade”. Lá, o que tem é o máximo de flexibilidade, e cada universidade oferece a cada aluno determinado pacote.

Dados do Fies mostram que, no passado, o programa não conseguiu ampliar o número de matrículas no setor. Quais os desafios para ampliar o acesso à educação superior no Brasil?

Em nenhum lugar do mundo o ensino superior é um direito. O que se pode fazer, se faz. Se o povo não quer, não pode, não consegue, não adianta. A educação básica é o direito. O que se pode fazer, o desafio, é ampliar o acesso à educação superior. Mas o grande limitador é o ensino médio, é a pequena expansão do ensino médio no Brasil.

O ponto de estrangulamento não é a matrícula, não é vaga, não é nada disso. O ponto de estrangulamento é uma proporção muito pequena de alunos saindo do ensino médio. O desafio de expandir o ensino superior não está no ensino superior, está no ensino médio.

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O foco do governo deveria estar mais no ensino médio, então?

Com certeza. Esse é o ensino que está travado.

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