A suspensão das aulas presenciais nos dois primeiros anos de pandemia afetou especialmente as crianças que tinham 5 anos em 2021. Para esse grupo, hoje com 7 anos, a covid-19 atrapalhou a fase da pré-escola, importante momento para o aprendizado cognitivo, incluindo a iniciação ao letramento, mas também para a introdução ao convívio social e o desenvolvimento de habilidades socioemocionais, como autonomia, comunicação e empatia.
Essa foi a conclusão do estudo “Os Impactos da Pandemia e Evidências de Recomposição das Aprendizagens na Pré-escola”, realizado em Sobral (CE), entre 2019 e 2022, com o objetivo de medir os efeitos da pandemia sobre o desenvolvimento das crianças e identificar as retomadas do ritmo de aprendizado durante o pós-pandemia.
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Após acompanhar a aprendizagem de 1.364 crianças matriculadas na rede pública municipal de Sobral, que é uma referência em educação no País, o estudo concluiu que os alunos que finalizaram a pré-escola em 2021 perderam, em média, um ano de seu desenvolvimento, em comparação aos que cumpriram essa etapa antes da pandemia. Isso porque essas crianças tiveram apenas seis meses de ensino presencial: com o início da pandemia, em 2020, as aulas foram suspensas e o retorno físico à escola se deu apenas em meados de 2021.
Em termos de percentual de aprendizagem, as crianças que fizeram o último ano da pré-escola em 2020 aprenderam o equivalente a 39% em linguagem e 48% em matemática do que o absorvido pelas crianças que frequentaram esta etapa em 2019.
Já os alunos que concluíram a etapa pré-escolar em 2022 e que, portanto, vivenciaram seis meses de atividade remota durante a pré-escola, apresentaram um ritmo mais acelerado no aprendizado, comparado com todos os grupos avaliados no estudo – o que sugere uma recuperação parcial da aprendizagem.
Caminhos para recuperar
Para Tiago Bartholo, pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Oportunidades Educacionais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um dos responsáveis pelo estudo, a melhoria da aprendizagem no ano passado se deve a políticas de recomposição implementadas na rede de Sobral.
“Temos evidências preliminares de que essa recuperação parcial se deve a cinco fatores: o investimento em programas de parentalidade, que dão ferramentas para as famílias apoiarem o processo educativo dos filhos; a ampliação do ensino integral; um novo currículo alinhado às orientações da Base Nacional Comum Curricular (BNCC); o investimento na formação de professores; e, por fim, a ampliação dos centros de educação infantil (CEIs), que oferecem uma infraestrutura adequada à primeira infância”, diz.
Para Beatriz Abuchaim, gerente de Conhecimento Aplicado da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, as escolas precisam respeitar o tempo de cada criança – no caso delas, as dificuldades para lidar com os impactos psicológicos da pandemia são ainda maiores do que para os adultos –, e ter como foco não só os avanços cognitivos, mas também as habilidades socioemocionais.
“É na primeira infância que a gente constrói as bases para tudo o que vai vir depois, em termos de relações, de personalidade. Na interação com os colegas, com outros adultos e com a professora, a criança vai aprendendo essas habilidades socioemocionais, aprende a lidar com seus sentimentos. Todas essas também são tarefas da escola”, afirma.
Por isso, se a criança hoje 7 anos chegou ao ensino fundamental com déficit no desenvolvimento socioemocional, é preciso repensar a estratégia docente. “Da parte do professor, é preciso um olhar acolhedor e individual, focado no diagnóstico de cada aluno, estimulando trocas e evitando atividades mecânicas, repetitivas, que, infelizmente, ainda são algo comum no ensino fundamental”, diz Beatriz.
Uma estratégia pedagógica que não é simples. Por isso, um dos desafios está na capacitação dos professores. Os cursos de formação continuada voltados aos alfabetizadores precisam levar em conta a criança por completo, em todas as suas facetas.
“As disciplinas ainda são muito teóricas, não ajudam a formar professores desse ponto de vista pedagógico. Eles precisam estar preparados para implementar a Base Nacional Comum Curricular, que dá realce a uma formação da criança de maneira integral”, afirma a especialista.
Pior para os mais pobres
Apesar de grandes avanços na inclusão de estudantes ao longo das últimas décadas, a pré-escola foi a etapa com a maior redução de cobertura durante a pandemia, o que exige uma prioridade do poder público na tarefa de reduzir a evasão escolar e de recompor aprendizados. “É preciso dar sequência aos programas de busca ativa escolar, pois a recuperação, até o momento, é parcial. A frequência ainda não voltou aos níveis de 2019. Hoje, temos menos crianças na pré-escola do que antes da pandemia”, observa o pesquisador Tiago Bartholo.
Fase crucial no desenvolvimento escolar dos alunos, a transição da educação infantil para o ensino fundamental foi marcada por desigualdades durante a pandemia, que afetaram especialmente os grupos socioeconômicos mais vulneráveis e os alunos pretos e pardos. Como resultado, famílias têm de arcar com aulas de reforço, em busca de complementar o trabalho em sala de aula.
Moradora de Itaquera, na zona leste de São Paulo, Dayane Silva Feitosa, de 27 anos, percebeu que a filha Maria, de 6 anos, tinha dificuldades de concentração e adaptação à rotina escolar ao entrar na pré-escola durante a pandemia. Até hoje, a garota é acompanhada por uma professora particular, que dá aulas de reforço.
“Como ela viveu quase três anos de pandemia, isso se reflete ainda hoje, no 1º ano do ensino fundamental. A Maria sempre foi muito inteligente, mas, com tudo o que aconteceu nessa transição de casa para a escola, acabou se tornando uma criança ansiosa e com dificuldade de prestar atenção”, relata.
Maria é uma das milhares de crianças na mesma situação, que merecem atenção. Como destaca Bartholo, recompor as aprendizagens na pré-escola pode cumprir um papel central na agenda contra as desigualdades do pós-pandemia. “A educação infantil tem um papel importante na promoção de uma maior equidade. É um processo longo, estamos falando de uma rede de proteção social que vai muito além das secretarias de educação. A articulação precisa ser bem feita”, observa.
Tiago lembra a necessidade de que o Ministério da Educação (MEC) articule Estados e municípios em torno de um plano de recomposição e combate às desigualdades no aprendizado que leve em conta as particularidades de cada local.
“Há necessidade de uma maior coordenação da pasta, não apenas na disponibilização de mais recursos, mas, principalmente, com apoio técnico para reduzir gargalos na implementação e para cuidar dos desafios de desigualdade, principalmente nos municípios menores”.
Sobral, um pequeno município do interior do Ceará, conseguiu. Todos os municípios devem ter os recursos garantidos para que cumpram o compromisso de conseguir também.
Sinais de alerta às famílias:
- a) Déficit no aprendizado em linguagem e matemática
- b) Dificuldade de concentração
- c) Apatia e falta de interesse em socializar com os amigos da turma
- d) Comportamento agressivo
- e) Recusa em ir à escola
O que a escola deve fazer
- Promover maior integração entre famílias e escola.
- Implementar processos de acompanhamento individual das crianças, de modo a garantir um planejamento coletivo e individual, respeitando diferentes ritmos e dificuldades do grupo.
- Orientar as famílias sobre brincadeiras que enriqueçam o ambiente de aprendizagem em casa e criação de rotinas que não envolvam o uso de tela.
- Elaborar estratégias com foco no planejamento com intencionalidade pedagógica, respeitando as concepções presentes na BNCC.
Um dos autores do estudo “Os Impactos da Pandemia e Evidências de Recomposição das Aprendizagens na Pré-escola”, Tiago Bartholo participou da série de eventos Reconstrução da Educação, promovida pelo Estadão. Ao longo de duas semanas, especialistas debateram caminhos para melhorar a qualidade das escolas públicas brasilerias.
- 15/5 – Educação no Brasil hoje e recomposição da aprendizagem (veja como foi);
- 16/5 – Ensino integral e professores (veja como foi);
- 18/5 – Educação infantil e alfabetização (veja como foi);
- 23/5 – Ensino médio; (veja como foi);
- 25/5 – Ensino fundamental 2 e tecnologia (veja como foi);
- 29/5 – Fórum Reconstrução da Educação. (veja como foi)
Reconstrução da Educação foi uma realização do Estadão, em parceria com a Fundação Itaú, Fundação Lemann, Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Fundação Vivo Telefônica, Instituto Natura e Instituto Península. E tem o apoio do Consed, da Undime e do Todos Pela Educação.