USP faz 90 anos: que universidade o Brasil precisa para o futuro?

Com história de pioneirismo, maior instituição de ensino superior do País tem a missão de aprofundar laços com a sociedade e ser propositiva em áreas como inclusão e sustentabilidade

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Foto do author Renata Cafardo
Atualização:

Difícil escapar dos superlativos quando se fala da Universidade de São Paulo (USP), que completa 90 anos nesta quinta-feira, 25. Mais conceituada instituição de ensino superior do País, fonte primordial da ciência brasileira, formadora da maior quantidade de lideranças em todas as áreas, a mais respeitada da América Latina.

Um sentido presente desde a sua fundação, quando um grupo de intelectuais paulistas, após a derrota militar na Revolução Constitucionalista de 1932, foi visionário ao insistir que só a criação de uma universidade seria capaz de transformar a sociedade. Entre eles, estava Julio de Mesquita Filho, que foi diretor do Estadão. “Vencerás pela Ciência”, diz o brasão da USP, criada em 1934.

USP nasceu da mobilização da sociedade civil que buscava desenvolvimento da educação e da ciência Foto: Tiago Queiroz/Estadão

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Mas uma vitória contínua, que não se dá por encerrada a cada realização - dos avanços na ciência aos cânones do Direito, das contribuições à modernidade até as reflexões dos maiores intelectuais sobre um país em construção. A USP faz 90 anos em busca de um centenário com mais inovação, diversidade e o compromisso com os desafios ambientais.

“Uma universidade digna do nome, como se sabe, sempre se fundamenta em sua capacidade de transformar e de se transformar”, disse o ex-prefeito de São Paulo, fundador do Itaú e um dos ilustres ex-alunos da Escola Politécnica, Olavo Setúbal, em texto sobre a universidade, de 2006.

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Setúbal, que morreu em 2008, formou-se na USP na década de 1940. Sua filha Neca, também ex-estudante da universidade, é hoje uma das grandes lideranças da educação no País.

Para ela, aos 90 anos, a USP precisa de ainda mais protagonismo na construção de um projeto de País. “Um Brasil sustentável e que forme com mais qualidade seus professores da educação básica”, afirmou ao Estadão. A precariedade da formação de docentes é considerada um dos grandes gargalos da educação brasileira.

Socióloga e professora emérita da Faculdade de Educação da USP, Maria Victoria Benevides fala da mesma necessidade. Ela acredita que a universidade tem a capacidade de construir um trabalho entre as unidades, que garanta direitos econômicos, sociais, ambientais, tecnológicos e educacionais.

“Estamos arrastando o debate sobre o desenvolvimento do Brasil há décadas, a USP precisa participar; não só governantes e Parlamento”, diz ela, hoje membro da Comissão Arns de Direitos Humanos.

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A valorização dos professores e da educação pública como um dos pilares da democracia no Brasil da década de 1930 já era objetivo claro do grupo que criou a USP. Durante o Estado Novo, o País tinha só 22% das crianças nas escolas e mais da metade da população analfabeta.

Em textos da época, Julio de Mesquita Filho reiterava “sua percepção da importância da investigação científica”, como conta o historiador Shozo Motoyama no livro 70 anos da USP, Imagens de uma História Viva. A obra relata ainda que jornalistas, intelectuais e políticos se agruparam em torno de Mesquita Filho, no que ficou conhecido como Comunhão Paulista, que defendia o combate “à corrupção e política viciada das antigas elites”.

Faziam parte também do grupo que pretendia “formar elites para recuperar a hegemonia de São Paulo” Armando de Salles Oliveira, Fernando Azevedo, Plínio Barreto, Amadeu Amaral, entre outros. Tinham sido eles os protagonistas da Revolução de 1932, que lutou contra Getulio Vargas, após o golpe de Estado em 1930, defendendo uma Assembleia Constituinte.

Mesmo com a derrota, Vargas nomeou Sales Oliveira interventor federal do Estado de São Paulo. No poder, o grupo conseguiu enfim viabilizar o decreto de fundação da USP em 25 de janeiro de 1934.

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Entre as justificativas para a criar uma universidade pública estava que “a organização e o desenvolvimento da cultura filosófica, científica, literária e artística constituem as bases em que se assentam a liberdade e a grandeza de um povo”.

A íntegra do decreto estampou a primeira página do Estadão no dia 26 de janeiro, com a manchete “A criação da Universidade de São Paulo”, e dizia que “somente por seus institutos de investigação científica, de altos estudos, de cultura livre, desinteressada, pode uma nação moderna adquirir a consciência de si mesma, de seus recursos, de seus destinos”.

A primeira e única unidade a ser criada em 1934 foi a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, com cursos de humanidades, mas também de Matemática, Biologia, Física e Química. Pela carência de professores universitários no País, docentes franceses, alemães e italianos foram recrutados e formaram de modo estruturado as primeiras gerações de pensadores e cientistas brasileiros.

Entre eles, Florestan Fernandes, Antônio Cândido, Fernando Henrique Cardoso, Maria Sylvia de Carvalho Franco. “Foram os primeiros grandes professores brasileiros, intelectuais que passaram a produzir algumas das interpretações mais originais do País, sobre seu passado e desafios. Eles colocaram a universidade em um lugar de protagonismo político e intelectual”, diz o professor de História e Fundamentos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), José Lira.

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A recém-criada universidade também anexou instituições já existentes: Faculdade de Medicina, a de Direito do Largo São Francisco, a Politécnica, o Instituto de Educação, a Escola de Agricultura (Esalq), Escola de Medicina Veterinária e Faculdade de Farmácia e Odontologia.

“A faculdade de filosofia foi uma espécie de cimento para as outras porque tinha esse elemento importante, de ser focada nas ciências básicas”, diz Lira, diretor do Centro Cultural Maria Antônia, local que abrigou nos anos 1930 a faculdade de filosofia, no centro de São Paulo. A Cidade Universitária, no Butantã, só começou a ser construída nos anos 1950.

Segundo ele, havia acordo com a secretaria da educação da época para que professoras da rede pública tivessem acesso facilitado à recém-criada instituição.

O atual reitor, Carlos Gilberto Carlotti Junior, diz que a USP quer resgatar essa vocação de preparar professores para o ensino básico e afirma que, a partir de 2024, 100% dos alunos da USP na área de formação docente poderão ter bolsa para fazer estágios na rede pública.

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Currículo engessado

“Grande parte dos cursos da USP é a mesma desde 1934. As grades são muito engessadas e já não atraem tanto os jovens, elas não evoluíram junto com eles”, diz o diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Paulo Martins. Para ele, a instituição deveria investir na transversalidade das áreas e em maior liberdade para o aluno montar seu currículo.

No fim de 2023, a USP aprovou a reformulação do programa de formação de professores, com inclusão no currículo das Licenciaturas de questões como educação midiática, cultura digital, educação inclusiva e temáticas socioambientais.

O documento resultou de um trabalho iniciado em 2022, que vem analisando os currículos da instituição, mas a modernização dos cursos ainda é considerada um dos grandes desafios da próxima década.

“As aulas são ainda clássicas, com professor falando lá na frente, só o que mudou foi que agora ele usa um ppt (apresentação de slides), mas os alunos estão vagando pela internet”, completa Marco Antonio Zago ex-reitor da USP e atual presidente da Fapesp, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

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“As carreiras de hoje não serão as de amanhã, a ênfase no diploma desapareceu, é preciso replanejar a interface com a sociedade e com os estudantes”, completa. “É difícil, tem resistência interna. Mas as cotas também eram, e fizemos.”

Zago era o reitor quando a USP finalmente aprovou em 2017 uma política de ação afirmativa, que progressivamente implementou cotas sociais e raciais. Uma lei sobre reservas de vagas nas federais já estava em prática desde 2012 - a USP também foi a última entre as universidades públicas paulistas a ter cotas.

Em 2021, pela primeira vez, 50% dos calouros da USP tinham estudado em escolas públicas e 37,5% deles eram pretos, pardos ou indígenas.

Erick Araujo, de 24 anos, foi aluno da 1ª turma de cotistas da USP, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Filho de uma diarista e morador do Itaim Paulista, ele conta que só descobriu a existência da universidade pública no ensino médio técnico, mesmo com um câmpus na região onde mora desde 2005 - a USP Leste. “Pra mim só existiam as universidades particulares que faziam propaganda na TV.”

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Morador da zona leste, Erick Araújo entrou na 1ª turma de cotistas do Direito da USP Foto: Taba Benedicto/Estadão

Ele lembra do choque de perceber que muitos dos calouros que ingressaram com ele tinham estudado nas mesmas escolas de elite da capital, já se conheciam desde crianças. “Meu avô era analfabeto”, conta o jovem.

“Entendi que nós também tivemos experiências relevantes a partir dos nossos próprios territórios e que muitos dos conhecimentos são construídos nesses espaços marginalizados. Mas, sem as ferramentas que a universidade nos dá, fica mais difícil fazer o debate sobre qual futuro queremos para o Brasil.”

O perfil do alunado vem mudando aos poucos. Em 2016, antes das cotas, eram cerca de 10% de estudantes pretos, pardos e indígenas, hoje são 23,2%. “A sociedade terá mais chances de resolver seus problemas se tiver uma elite de jovens diversos participando das soluções. E a universidade é essa alavanca para colocar o jovem na liderança”, diz Zago.

No ano passado, a USP criou cotas raciais para professores, com 20% das vagas nos próximos concursos separadas para esse grupo. Na USP, 91% dos docentes são brancos.

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Tanque de cérebros e de conhecimento

“Muitas vezes a sociedade só vê formar alunos da graduação, mas a USP vai muito além disso. É esse tanque de diferentes cérebros e conhecimentos, ideias e desenvolvimento de projetos que não ficam restritos à universidade e revertem para a sociedade”, diz a cientista e professora da USP Lygia Pereira, que foi responsável por uma das grandes realizações científicas da instituição, a primeira linhagem brasileira de células-tronco embrionárias.

Em 2008, a pesquisa do Instituto de Biociências deu ao Brasil autonomia para utilizar células pluripotentes que podem servir para tratamentos de várias doenças. Lygia lembra de como a essência de uma universidade, com experts de várias áreas, foi importante.

Ela teve ajuda, por exemplo, da Veterinária, porque precisava lidar com camundongos. “É uma massa crítica de cientistas muito única aqui no Brasil.” Hoje Lygia lidera o Projeto DNA Brasil, que sequencia genomas de milhares de brasileiros desde 2019 para identificar características que podem auxiliar a Medicina e resgatar a ancestralidade da população.

Essa massa crítica começou a se espalhar também pelo Estado nos anos 1950, quando foram criadas as unidades da USP no interior; em 1952, a Medicina de Ribeirão Preto, em 1956, o câmpus de São Carlos, voltado para as ciências exatas.

A universidade tem unidades ainda em Bauru, Lorena, Piracicaba, Pirassununga e Santos. “Já se fazia inovação nos anos 1950. Vários físicos, matemáticos, engenheiros vieram para cá e esse conhecimento desenvolveu as empresas e a indústria locais”, conta o ex-diretor do Instituto de Física de São Carlos Tito Bonagamba.

Para ele, esse é o grande desafio da universidade: transformar cada vez mais a sociedade por meio da inovação. Além de grandes empresários, 13 ex-presidentes da República, ministros antigos e atuais, a USP é famosa por ter entre seus ex-alunos 10 fundadores dos maiores unicórnios do País, como os criadores da 99 e do Nubank.

“Mas não estou falando só de tecnologia, de coisas disruptivas. Inovação é também desenvolvimento socioeconômico e bem-estar da população”, explica Bonagamba. Hoje ele coordena o Inova USP, centro que, em São Carlos, atua para viabilizar projetos que vão da construção de equipamentos que produzem absorventes higiênicos a aparelhos auditivos e apoio a pequenos empreendedores.

“A USP não pode estar só focada em tecnologia de semicondutores, mas, sim, falar com o bairro que está ao lado do câmpus e que precisa de luz elétrica”, afirma ele.

“Isso tem a cara da universidade, envolve ensino, assistência, pesquisa”, diz o professor e vice-diretor do conselho diretor do Incor, Fabio Jatene, que coordena um projeto que faz cirurgias remotas em outros Estados. Ligado à Faculdade de Medicina da USP, o Incor realizou os primeiros transplantes de coração do País; hoje seus médicos e professores ajudam a operar crianças com doenças cardíacas no Maranhão.

Cirurgiões daqui ficam numa sala de controle, enquanto acompanham imagens da câmera que está na cabeça do colega de lá. “O grande desafio é expandir isso para outros centros, especialidades, interagir e colaborar com a sociedade no sentido amplo da palavra”, diz Jatene.

Ditadura militar e crise financeira

Mas a nonagenária USP também teve seus percalços. Professores e estudantes foram perseguidos e presos arbitrariamente nos anos 1960 e um ex-reitor foi o responsável por editar o Ato Institucional número 5 (AI-5), o mais duro decreto da ditadura militar no País, que fez o regime recrudescer.

Ao completar 80 anos, viveu a sua pior crise financeira em 2014, quando chegou a 106% de seu orçamento comprometido com a folha de pagamento e fundos de reserva mais baixos da história. Foi preciso parar obras, contratações e fazer seu primeiro plano de demissão voluntária.

As contas se equilibraram no pós-pandemia, mas reflexos apareceram até 2023, quando uma greve de alunos paralisou dezenas de unidades que protestavam por causa da falta de professores.

A autonomia financeira, conquistada em 1989 com um decreto que passou a destinar 5% da arrecadação do ICMS do Estado à universidade, também se fortaleceu na crise, já que a USP conseguiu se reerguer sem intervenção do governo. Agora, aprovada a reforma tributária, o ICMS deixará de existir e começam tratativas para que o governo garanta o repasse fixo.

“A autonomia foi um grande divisor de águas, fez com que a USP se tornasse uma instituição de competência internacional. Foi possível se programar, se preparar para enfrentar os desafios”, diz o secretário de Ciência, Tecnologia e Inovação do Estado, Vahan Agopyan.

“Especialmente na pandemia, a sociedade aprendeu a ver a universidade como um local com o qual pode contar quando tem problemas, uma fonte confiável de informação nesse mundo novo”, afirma ele, que também foi reitor da instituição.

Bonagamba completa dizendo que todo o vigor da USP precisa estar direcionado a resolver os problemas da sociedade, sejam eles na agricultura, na robótica, na educação ou abrigando na Cidade Universitária a primeira estação experimental de abastecimento de hidrogênio renovável. “A sociedade nos criou, é ela que tem que ganhar com a gente.”

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