Vídeos aos quais o Estadão teve acesso mostram calouros da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) ajoelhados engolindo uísque despejado diretamente na boca deles por estudantes veteranos. As cenas ocorreram durante trote na sexta-feira, 21, na primeira festa da recepção de calouros da tradicional instituição no Largo São Francisco, região central de São Paulo.
“Ele só aguenta isso?”, pergunta um dos veteranos ao derramar a bebida. “Chegou atrasado, tem punição. Ajoelha”, completa, para outros calouros. “Ajoelhou, tem que mamar.”
Alguns estudantes novatos sorriem, falam palavrões e chegam a pedir a bebida alcóolica. A mesma garrafa vai sendo despejada de boca em boca, numa espécie de fila, várias vezes. “Dá mais, dá mais”, é possível ouvir um dos alunos gritando no vídeo, enquanto o colega dá a bebida. Todos os veteranos fazem parte do time de rúgbi da São Francisco.
A direção da faculdade de Direito afirma que não tem conhecimento dos vídeos e que vai investigar o caso (veja mais informações abaixo).
Os estudantes participavam de uma festa conhecida como Porão da Matrícula, organizada pelo Centro Acadêmico XI de Agosto. O evento acontece em um espaço dentro da faculdade conhecido como “porão” e também se expande para a área externa, próxima à Rua Riachuelo, no centro da capital.
O Estadão identificou e procurou os alunos veteranos que deram bebida aos calouros, mas eles não responderam à reportagem. O espaço continua aberto.
Alunos ouvidos pela reportagem afirmam que o “shot de entrada”, como é conhecida a prática de dar bebida na boca dos calouros, é comum em muitas festas na instituição e feita com o consentimento dos participantes.
Na noite de domingo, 23, o Centro Acadêmico XI de Agosto publicou uma nota denunciando “casos de agressão e medidas contra a cultura da violência do rúgbi masculino”.
A nota não menciona o ocorrido nos vídeos, mas diz que, durante a mesma festa para os calouros da sexta-feira, “um integrante do time de rugby XI estava enforcando um estudante, também membro do time”. O texto informa que os membros do centro acadêmico tiveram de intervir e pediram que os agressores deixassem a festa. “No entanto, a resposta dos integrantes foi agressiva, em um comportamento claramente alterado.”
O centro acadêmico diz na nota que o grupo costuma ter “comportamentos de violência de gênero, homofobia e embates físicos” e ainda “agressões físicas contra calouros”. Durante a peruada de 2024, festa tradicional da faculdade que ocorre em outubro, completa o texto, um dos membros do time foi agredido e precisou ser hospitalizado.
Depois do ocorrido na sexta-feira, o centro acadêmico anunciou que integrantes do rúgbi não mais poderão participar de festas organizadas pela agremiação estudantil. E pediu que os repasses ao time feitos pela Atlética da faculdade, gestora das modalidades esportivas, sejam cortados.
O aluno do 2º ano apontado como vítima, no entanto, afirmou ao Estadão que não foi agredido. “No fim da festa, eu estava com meus amigos, eles estavam me rodeando e, acho que, porque supostamente tem muita acusação de violência com relação ao rúgbi, eles acharam estranho e pensaram que estavam me agredindo”, afirmou o estudante, que faz parte do time de rúgbi e pediu para seu nome não ser divulgado.
Segundo ele, depois disso houve uma forte discussão entre os grupos do rúgbi e do centro acadêmico, com acusações de um lado e de outro. “Acho que por isso eles acabaram publicando essa nota, de forma irresponsável, que causa prejuízos tremendos para o nosso time.” Ele conta ainda que o grupo tem o costume de fazer “briguinhas” e “rinhas”, mas tudo de forma “voluntária”.
O perfil no Instagram do Rugby XI Direito USP também publicou uma nota dizendo que “repudia veementemente as falsas acusações feitas pelo centro acadêmico” e elas não “passam de uma tentativa covarde de manchar a reputação de um dos times mais tradicionais e vitoriosos da faculdade”. Segundo o texto, os integrantes do time prestavam auxílio a um colega que havia ingerido bebida alcóolica quando houve a intervenção do centro acadêmico.
Sobre os vídeos, depois que a reportagem foi publicada, o perfil respondeu ao Estadão afirmando “reprovamos o comportamento exposto”. “O rugby é somente um time. As ações equivocadas desses indivíduos, desde que fora do âmbito esportivo, não competem ao time”.
O centro acadêmico foi procurado pelo Estadão para comentar os vídeos gravados na festa e a negativa do aluno supostamente agredido, mas não respondeu à reportagem.
O trote violento é proibido na USP desde 1999. Segundo portaria da instituição, “não será tolerado qualquer tipo de manifestação estudantil que cause, a quem quer que seja, agressão física, moral ou outras formas de constrangimento, dentro ou fora do âmbito da Universidade”. A punição, após processo administrativo, é de suspensão e expulsão de alunos envolvidos.
11 segundos de bebida, em referência ao 11 de agosto
Segundo estudantes, o procedimento de derramar a bebida dentro da boca dos calouros é comum em muitas festas da faculdade há anos e considerado um “rito de iniciação”. “Ninguém é forçado a beber”, disse à reportagem um dos alunos veteranos que aparecem no vídeo bebendo uísque.
Uma das práticas é a de derramar a bebida alcóolica por 11 segundos na boca do estudante, numa referência ao 11 de agosto, data em que foram criadas, em 1827, as primeiras faculdades de Direito do Brasil, entre elas a do Largo São Francisco. Em um dos vídeos, um dos estudantes diz “o veterano vai ensinar pra vocês” e a bebida é colocada na boca dele durante uma contagem que vai até 11.
Nas imagens, os veteranos exaltam o time de rúgbi com frequência. “É o rúgbi, é o rúgbi”, gritam, em meio a palavrões. O Estadão apurou que as atividades nas festas são vistas também como oportunidades para divulgar o grupo e encontrar novos atletas para o time.
Segundo o diretor da faculdade, Celso Campilongo, a instituição vai investigar o caso do suposto enforcamento, denunciado pelo centro acadêmico, e outras eventuais violências que podem ter ocorrido durante a festa. “As imagens da faculdade não registraram nada, vamos apurar se houve violência, uma apuração confidencial, sem cometer injustiças, com presunção de inocência, e ver se há elementos para instaurar uma sindicância”, afirmou.
Nesta semana, a recepção dos calouros teve ainda palestras com os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, professor de Direito Eleitoral da faculdade, e Flávio Dino.
Outros casos de trote violento
O trote passou a ser proibido na USP em 1999 depois da morte do estudante de Medicina Edison Tsung Chi Hsueh. Ele foi encontrado morto na piscina da Atlética da Medicina depois de uma festa com muito álcool.
O calouro foi jogado na piscina de profundidade de 5 metros pelos veteranos, mesmo após ter afirmado que não sabia nadar. No mesmo ano, uma lei estadual também proibiu os trotes violentos nas universidades de São Paulo,
No ano passado, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), sancionou outro projeto de lei que proíbe trotes violentos em instituições de educação técnica e superior do Estado, vedando atividades que “envolvam coação, agressão, humilhação, discriminação por racismo, capacitismo, misoginia ou qualquer outra forma de constrangimento que atente contra a integridade física, moral ou psicológica dos alunos”.
Em janeiro de 2024, a Faculdade de Engenharia e Ciências da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Guaratinguetá, interior de São Paulo, expulsou quatro alunos que teriam aplicado um trote violento contra uma universitária de 21 anos. A estudante chegou a entrar em coma e ficou internada em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Outros quatro estudantes foram suspensos por 120 dias e um nono investigado recebeu suspensão de 45 dias.
Em 2023, cenas de nudez durante uma competição esportiva realizada em São Carlos, interior de São Paulo viralizaram nas redes sociais. Os vídeos mostram estudantes expondo partes íntimas e realizando atos obscenos durante um jogo de vôlei feminino e uma corrida com shorts abaixados. A repercussão provocou a expulsão de quinze alunos de Medicina da Universidade Santo Amaro (Unisa). Depois, a Justiça Federal determinou que a Unisa reintegrasse os alunos expulsos.
Em 2019, imagens mostraram calouras de Medicina da Universidade de Franca (Unifran), no interior de São Paulo, ajoelhadas em frente a um estudante do curso fazendo juramento de que nunca vão recusar “tentativa de coito” de um veterano.