O acesso à saúde é um direito garantido por lei. Oferecido pelo sistema público ou particular, o serviço deveria atender todas as pessoas de forma humana, respeitosa e integral. Porém, essa não é a realidade de muitos integrantes da comunidade LGBTI+. Nesta semana em que se comemora o Dia do Orgulho LGBT, mais do que celebrar as vitórias, é preciso lembrar que muitos direitos básicos ainda precisam ser conquistados.
Homens e mulheres homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais com quem o E+ conversou sentem que os médicos não estão preparados para atendê-los. E, às vezes, isso é manifestado pelos próprios profissionais.
"O ginecologista fez perguntas tradicionais sobre relações sexuais, número de parceiros. Contei que sou lésbica e tinha mais de uma parceira. Ele falou: 'não sei se vou conseguir continuar o atendimento com você, porque eu não sei tratar, não tenho o costume de atender pessoas com homossexualismo'", relata Sol Guiné, de 23 anos, sobre sua consulta com um médico da rede pública em 2016.
O uso do termo inadequado — homossexualidade é o correto — é mais um detalhe para o tipo de atendimento que foi oferecido. Isso porque o sufixo -ismo está relacionado, entre outras coisas, a doenças, mas a Organização Mundial da Saúde (OMS), desde 1990, deixou de classificar a homossexualidade como patologia e a retirou da Classificação Internacional de Doenças.
Para a comunidade LGBTI+, a heteronormatividade e o estereótipo de que todos têm alguma infecção sexualmente transmissível (IST) é outro problema no acesso à saúde. Adriano Rodrigues, presidente do Movimento de Bissexuais (MovBi), e Vinícius Fahd Barchin, estudante de enfermagem, relatam que, em muitas consultas, o médico pede um exame sorológico para detectar HIV sem ao menos perguntar sobre as práticas sexuais deles.
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Além desse atendimento que reduz a pessoa a uma doença, Barchin, de 23 anos, afirma que nunca se sentiu confortável para falar sobre temas que envolvem sexualidade e estão diretamente relacionados à saúde. E mesmo quando a busca por um profissional envolveu saúde mental, ele se sentiu ofendido.
"Eu tinha 18 anos, já era assumidamente gay e estava passando por uma crise de depressão. Procurei atenção psicológica em uma Unidade Básica de Saúde e, durante a entrevista, citei, de forma bem natural, que eu me atraía por homens. Já a psicóloga me respondeu com: 'você acha que possui tendências homossexuais?'. Parece simples, mas aquilo me fez sentir anormal e estranho, piorando minha crise e me dando medo de voltar para o atendimento e falar sobre minha orientação sexual", relata o jovem.
Para travestis e transexuais, a principal barreira é fazer valer o uso no nome social e ser tratado conforme o gênero com o qual se identifica. "Alguns profissionais até desconsideram o cartão do SUS e levam em conta o documento original [sem o nome social]. O que é contraditório, porque o serviço de saúde foi o primeiro a utilizar o nome social", diz Keila Simpson, presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
Bruna Benevides, secretária de comunicação da ABGLT, associação nacional em prol dos direitos da população LGBTI+, também aponta a formação deficiente dos profissionais de saúde como uma dificuldade. "[Eles] não enxergam nossos corpos como possíveis. Não existe especialidade para tratar pessoas trans, somos humanos, as questões podem ser tratadas por qualquer médico, mas muitos têm dificuldade em tocar nossos corpos, nos examinar"”, diz. As consequências disso, segundo Keila, é a busca por tratamento de forma clandestina, sem segurança e colocando ainda mais em risco a saúde dessa população.
Políticas são positivas, mas não bastam
Em 2011, o Ministério da Saúde lançou a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. O documento apresenta diretrizes e objetivos para que esse público seja melhor atendido na rede pública de saúde. Há ainda a cartilha Homens Gays e Bissexuais: Direitos, Saúde e Participação Social e algumas campanhas foram criadas com o objetivo de promover um atendimento "livre de qualquer discriminação, restrição ou negação em virtude da orientação sexual e identidade de gênero".
As medidas são mais do que necessárias, tanto porque a comunidade LGBTI+ não se sente contemplada com as propostas que já existiam quanto pelo histórico social desse grupo. "A população LGBTI é excluída e marginalizada historicamente em diversas comunidades e estamos passando por uma onda de limitações de direitos dessa população", diz Ana Paula Andreotti Amorim, médica de família e integrante do Grupo de Trabalho de Gênero, Sexualidade, Diversidade e Direitos da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC).
Ela lembra que o direito à saúde não se restringe apenas a questões de doenças. "A OMS diz que saúde significa bem-estar integral: ter direito à moradia, a trabalho, lazer, alimentação de qualidade, transitar pelos espaços. Essa ausência de direitos é que faz a pessoa adoecer. Quando se pensa nesta população, a primeira coisa que vem à cabeça é IST, mas o maior adoecimento dessa população está relacionado à saúde mental e exclusão social", completa a médica.
Embora sejam positivos, os materiais do governo são inespecíficos quanto a colocar as ações em prática. Cabe aos Estados e municípios implementar medidas, mas nem sempre isso ocorre. "Por mais que a gente dialogue com as secretarias de saúde, com o ministério e o conselho de saúde, eles não param e pensam na gente", afirma o presidente do MovBi.
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O sentimento é compartilhado por Keila, da Antra. "Para nós, é uma política muito cara. Ajudamos a escrever e defendemos como importante, mas é preciso ainda fazer muitos esforços para que a política como um todo seja desenvolvida dentro do que foi programada para a população LGBT", diz a porta-voz, com ênfase em cada letra da sigla. "A gente tem, hoje, um passo significativo que é o processo transexualizador no SUS, mas, de fato, como política integral, ainda deixa muito a desejar."
O E+ questionou o Ministério da Saúde sobre como a política nacional tem sido aplicada, se a pasta promove ou apoia ações que orientam os médicos para atender o público LGBT, se há projetos para uma cartilha voltada a mulheres lésbicas e bissexuais e quais esforços têm sido realizados para que a política contemple cada grupo da sigla do movimento. Em nota, o órgão não se ateve às perguntas e respondeu, de modo geral, sem citar a população LGBT, que "busca ampliar e qualificar o atendimento a toda população com equidade".
"A nova estrutura do Ministério da Saúde, publicada em junho, promove maior integração entre as áreas da pasta. A reformulação busca implementar ações mais efetivas, eficientes e contemporâneas e está sendo realizada de forma a priorizar ações de assistência à saúde por meio das melhores evidências científicas, sempre visando tornar mais eficaz o gasto público", diz a nota.
O órgão afirma também que um dos objetivos das ações é trabalhar com as doenças mais comuns nas populações com maior vulnerabilidade e que o acesso à atenção básica está sendo priorizado. O ministério destaca que, com "a possibilidade de ter postos de saúde abertos até mais tarde, será possível melhorar o acesso dos diferentes públicos ao Sistema Único de Saúde e dar uma resposta local às necessidades de cada população".
Os médicos estão preparados?
Não é só no sistema público de saúde que a comunidade LGBTI sente que os profissionais não estão capacitados para atendê-la. Em uma segunda tentativa de consultar um ginecologista, dessa vez pelo convênio e pensando que seria diferente, Sol teve mais uma experiência negativa. Após dizer que é lésbica, que queria entender mais sobre prevenção de ISTs e tratar um cisto no útero, o médico fez um exame de toque no consultório mesmo.
"Quando ele colocou o dedo [dentro da vagina], falei que incomodava. Ele disse: 'você já deveria estar acostumada com um dedo dentro de você'. Falei que queria cancelar a consulta e que não é porque sou lésbica que preciso estar acostumada a isso. Ele pediu desculpas, mas o primeiro ato é o que vale", conta a jovem. "Foram duas vivências traumáticas, só recebi machismo e preconceito."
Para evitar esse tipo de abordagem, muitas pessoas preferem ocultar quem são. Segundo o Dossiê Saúde das Mulheres Lésbicas - Promoção da Equidade e da Integralidade (2006), publicado pela Rede Feminista de Saúde e citado na política nacional, cerca de 40% das mulheres que buscam o serviço de saúde não revelam sua orientação sexual. Entre as que revelam, 28% relatam maior rapidez do atendimento do médico e 17% afirmam que eles deixaram de solicitar exames considerados por elas como necessários.
O diretor de comunicação do Conselho Federal de Medicina, Hermann von Tiesenhausen, afirma que "qualquer tipo de expressão de preconceito contra o paciente ou seu familiar é vedado ao médico no exercício de sua profissão. Isso está previsto no Código de Ética Médica, que orienta a adoção de uma postura isenta, acolhedora e respeitosa com todos os indivíduos".
Ele destaca, por exemplo, o artigo 23 em que é vedado ao médico "tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto". Aquele que se sentir mal atendido, ofendido ou desrespeitado durante uma consulta, pode denunciar o caso ao conselho regional de medicina, órgão ao qual compete julgar a prática dos profissionais.
Os fatos, porém, não podem ser generalizados. Durante a apuração desta reportagem, o E+ ouviu pessoas da comunidade LGBT que não enfrentaram dificuldades no acesso à saúde. Outro indício positivo, mas que ainda carece de mais atenção, foi saber que, de alguma forma, ginecologistas e urologistas, por exemplo, estão debatendo essas questões para a formação dos especialistas.
Cesar Fernandes, presidente da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), conta que, desde 2018, está em vigor uma nova matriz de competências que direciona o que deve fazer parte da formação do médico. Um dos aspectos diz respeito a tratar sobre a vida sexual das pacientes. "Nos dias atuais, é uma preocupação formar esse médico para que ofereça bom atendimento, para se desprover de preconceito ou que não transfira isso. A gente não pode instruir a personalidade da pessoa, mas pode dizer para se desprover de preconceito no atendimento a suas pacientes", diz.
Segundo Gilberto Laurino Almeida, presidente da Comissão de Seleção e Título de Especialista da Sociedade Brasileira de Urologia, a temática LGBT é vista com mais naturalidade dentro dessa especialidade. "A urologia é muito ampla. [O médico] trata do aparelho urinário masculino e feminino e o genital masculino. Não tem foco específico para isso [público LGBT], temos uma visão mais abrangente, de tratar a doença não importando se é homem, mulher, jovem, criança, adulto ou idoso", afirma o especialista. "A gente lida muito com essa população, faz parte da nossa formação médica, do nosso dia a dia." No entanto, ele afirma que não há orientações específicas para atender esse grupo social.
Iniciativas para melhorar o cenário
A SBMFC, por meio do Grupo de Trabalho de Gênero, Sexualidade, Diversidade e Direitos, listou dez ações importantes que devem fazer parte do trabalho de médicos no atendimento à população. Entre elas, estão não assumir que sabe ou consegue descobrir a orientação sexual da pessoa, considerar outras formas de transar (mesmo para casais formados por homem e mulher cisgêneros) e aprender a prescrever hormônios para travestis, mulheres e homens trans e pessoas não binárias que desejam transformações corporais. O material pode ser consultado neste link.
Ainda no quesito de preparo dos médicos, o Coletivo Guarda-Chuva é uma iniciativa estudantil idealizada por alunos da área da saúde que não se sentiam preparados para atender a comunidade LGBTI. "A gente não via isso na faculdade e não tinha vivência nos estágios e treinamentos. E também foi uma forma de nos proteger, criar uma rede de contato", explica Igor Trindade, de 23 anos, um dos fundadores da organização ao lado de Vinícius Barchin.
Dentro do Centro Universitário São Camilo, o grupo promove ações a fim de que "as pessoas se coloquem no lugar de um LGBT". Recentemente, o coletivo organizou um evento grande sobre saúde LGBT que teve de ser desassociado do nome da instituição de ensino. Trindade conta que há projetos para atender esse público fora da universidade. "Nossa resistência é grande dentro da faculdade, a gente está se mobilizando"”, afirma.
No Rio de Janeiro, Bruna Benevides, que também integra o Grupo Diversidade Niterói, ajudou a implementar um ambulatório dedicado ao atendimento de pessoas trans em uma policlínica da cidade. "Apresentamos a proposta para a secretária de saúde, de implementação do ambulatório dentro da clínica de especialidades, porque precisávamos que a população fizesse a hormonioterapia, mas também pudesse ter acesso a outras áreas", relata.
Em novembro do ano passado, o ambulatório iniciou suas atividades, o que para Bruna foi uma grande conquista. "Hoje, é o primeiro ambulatório municipal do Estado do Rio [para a população trans]. Quando conseguimos implementar, começamos a transformar toda a rede porque as pessoas que antes não procuravam, hoje têm um lugar de referência."
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