Após um ano ouvindo que as dores que sentia durante as relações sexuais eram normais, a fisioterapeuta Claudia Milan finalmente teve acesso a um diagnóstico: vaginismo, que é uma contração involuntária dos músculos do assoalho pélvico durante a penetração vaginal. A partir de então, Claudia pode ter acesso ao tratamento com uma fisioterapeuta pélvica e a uma vida sexual prazerosa. Mesmo assim, durante a busca por ajuda, ela ouviu todo tipo de minimização de seu problema e até comentários machistas: “Escutava que toda mulher passava por isso, que precisava tomar um vinho e relaxar quando na verdade você tem uma um problema que está sendo negligenciado”.
A história da fisioterapeuta se reproduz nas dores de diversas mulheres que buscam ajuda médica. A produtora Omara Soares, 24, enfrentou uma saga de sete anos de cólicas incapacitantes, tonturas, desmaios e enjoos durante o período menstrual até receber o diagnóstico de endometriose: “era como sentir a dor do parto todo mês”. Omara conta que as crises começaram aos 15 anos e ela precisava ir ao hospital tomar remédios intravenosos para cessar as cólicas. Em incontáveis consultas e exames ao longo de sete anos, nada era encontrado. Até que ela começou a pesquisar e encontrou relatos de mulheres com endometriose que tinham sintomas semelhantes ao seu e levantou a questão com os ginecologistas. Mesmo assim, ainda demorou para que o diagnóstico fosse concluído.
Carlos Alberto Petta, médico especialista em reprodução assistida e ex-presidente Sociedade Brasileira de Endometriose, atribui a dificuldade de diagnóstico dessas mulheres a dois fatores principais: a falta escuta dos médicos em relação às queixas das pacientes e a crença em mitos, como dizer que “mulher nasceu para sofrer”: “Ninguém acha normal um homem ter dor”, comparou.
Uma pesquisa da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, analisou a disparidade de gênero na analgesia de pacientes com dor abdominal aguda na emergência e mostrou que mesmo homens e mulheres relatando níveis similares de dor, mulheres foram menos propensas a receber qualquer analgésico e as que receberam esperaram mais tempo para isso.
Esse cenário fica ainda mais crítico quando analisamos um recorte racial. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) divulgou, em 2017, um levantamento que mostrou que as mulheres pretas tinham menores chances de receber anestesia para a realização de episiotomia - um corte cirúrgico efetuado no períneo - durante o parto.
Dentre os mitos, ainda tem aquele de que “mulheres são mais resistentes à dor porque sentem a dor do parto”, ou por terem uma relação maior com a dor devido às cólicas menstruais. Mas não é isso que as pesquisas têm mostrado. Lucas Vasconcelos, fisioterapeuta, doutor em ciências da saúde e pesquisador em neurociência da dor, contou que estudos recentes mostram que as mulheres são mais sensíveis à dor do que os homens, pois há diferenças nas questões biológicas no mecanismo de percepção da dor entre os sexos e até questões hormonais. De acordo com Vasconcelos, estudos feitos com ratos machos revelaram que o processo da dor se dá nas células da microglia. Já nas fêmeas, isso ocorre nas células-T. Além disso, há a influência dos hormônios. Em testes feitos em ratos machos com estímulo de dor muscular, essa dor se concentrava apenas no músculo estimulado e durava apenas uma semana. Nos ratos fêmeas, essa dor se tornava generalizada e chegava a durar quatro semanas. Mas, quando os ratos machos tinham seus testículos removidos, eles passavam a responder aos estímulos como o sexo oposto, já que havia queda na testosterona, que tem um papel de proteção muscular.
Essas percepções errôneas sobre a dor das mulheres não prejudica só na hora do diagnóstico, mas no momento de controlar o sintoma também. Uma pesquisa publicada em 2005 por Mona Lisa Chanda e Jeffrey S. Mogil, coordenador do laboratório MogiLAB, da Universidade de MCGill, no Canadá, revelou que 80% dos estudos relacionados a medicamentos e analgesia só utilizavam ratos machos. Isso é um problema porque se o medicamento tem maior efeito nos machos, o foco é atingir as células da microglia, e vai ter efeito apenas nos homens: “Você descobre um mecanismo no seu estudo que só utilizou machos, desenvolve um medicamento que funciona só nos machos e vai para clínica e não funciona no mecanismo das mulheres”, explicou Lucas.
A justificativa para o uso quase exclusivo de ratos machos seria que o ciclo menstrual das fêmeas adicionaria mais variáveis e ficaria mais difícil de ser feito. Mas, segundo o fisioterapeuta, os machos também têm outras questões que implicam nessa variabilidade, como a disputa hierárquica entre os animais que vivem juntos, o que acaba igualando os sexos.
Questão psicológica
As mulheres são as que mais sofrem com dores crônicas. Ainda assim, uma pesquisa divulgada em 2016 pela Sociedade Americana de Psicologia, mostrou que mulheres com dor crônica são mais propensas a serem diagnosticadas erroneamente e a receberem remédios psiquiátricos, pois a dor é vista apenas como psicológica e não física. De acordo com o National Institute of Arthritis and Musculoskeletal and Skin Diseases, dos Estados Unidos, 80% das pessoas com fibromialgia são mulheres. E, também por ser uma doença de difícil diagnóstico, isso pode ajudar a explicar porque ela foi tratada como uma dor psicológica por tanto tempo.
A socialização feminina é mais um fator: como as mulheres são mais incentivadas a demonstrar seus sentimentos e sintomas do que os homens, uma mulher que manifesta dor pode ser vista como exagerada, já que o padrão de expressividade considerado é o masculino.
É preciso estar atenta
Para Petta, o conhecimento sobre o corpo é fundamental para reduzir o tempo de diagnóstico de endometriose e tantas outras doenças que acometem as mulheres durante anos em busca de tratamento. E é isso que Claudia Milan buscou fazer após o diagnóstico de vaginismo: além de ter se especializado em fisioterapia pélvica, ela usa as redes sociais, onde se intitula “vaginal influencer” e produz conteúdo sobre saúde íntima.
O ginecologista pontuou que a dor é sempre um sinal de alerta e é importante insistir no diagnóstico especialmente quando:
- A dor é incapacitante, atrapalhando as atividades diárias
- É preciso tomar remédios intravenosos para controlá-la
- A dose do remédio que era usado para sanar a dor não é mais suficiente
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