Vivemos num tempo em que para toda tristeza parece existir um remédio, uma pílula que liquida todo e qualquer sintoma ruim da vida. Mas será mesmo? Como consequência trágica de maquiar as emoções, cresce o número de adolescentes e jovens confusos com o que sentem.
"É normal ou é transtorno?", eis a questão do século. Para cada tristeza ou angústia que o adolescente apresenta, a solução parece estar em uma pílula. Talvez pela falta de habilidade em lidar com as emoções, ou dificuldade em discernir entre uma tristeza temporária e uma condição patológica, muitos pais têm recorrido aos consultórios médicos em busca de soluções rápidas para aliviar os conflitos internos de seus filhos.
A medicalização dos sentimentos, das emoções, tem sido um dos grandes desafios da vida moderna. Quando a gente coloca rótulos de transtornos mentais em fatores biológicos ou situacionais que nem sempre precisam de ajuda profissional, perdemos a chance de deixar que os filhos entendam suas próprias subjetividades para lidarem com seus problemas de um jeito mais tranquilo e natural.
Já falei aqui e vou repetir sobre a questão da superproteção dos pais, também conhecida como overparenting, que é justamente a interferência excessiva dos pais em assuntos que os filhos poderiam resolver por si próprios, ou seja, um conjunto de atitudes que atrapalha na habilidade das crianças e jovens de terem uma infância e adolescência saudáveis.
Resultado disso é que muitos adolescentes ficam confusos e podem até apelar para coisas bem ruins porque não sabem lidar com as emoções que são mais "chatas". Neste contexto, a autonomia desempenha um papel fundamental na criação de crianças e adolescentes. À medida que eles desenvolvem habilidades como andar e falar, é essencial oferecer a mesmo independência só que no campo emocional - mesmo que seja difícil.
Mas para que isso aconteça de maneira saudável e positiva é preciso, também, saber dar suporte emocional - o que está longe de medicalizar todo e qualquer sentimento. Adolescentes e jovens precisam revisitar os sentimentos. O que eles significam, o que eles provocam e como podemos lidar com as sensações que são despertadas.
Nós, adultos, agachamos para explicar a uma criança pequena que aquela fúria que ela está sentindo se chama "raiva", mas não nos disponibilizamos a fazer o mesmo para um adolescente. Quem disse que ele não precisa revisitar esses lugares internos? Rever os sentimentos e as emoções de uma outra perspectiva? É preciso cuidar com carinho e afeto dos machucados dos adolescentes e temos os deixados à deriva.
A banalização dos medicamentos Uma reportagem publicada no The New York Times revelou a história de uma adolescente que recebeu a prescrição de, nada menos, que 10 medicamentos para tratar uma suposta depressão. A jovem, que estava enfrentando uma sobrecarga nos estudos e mal conseguia sair da cama em 2017, viu a ansiedade rapidamente se transformar em desespero, o que a levou a buscar ajuda de um psiquiatra para aliviar o sofrimento.
Conforme diz a matéria, a partir deste ponto, começou ali uma sucessão de prescrições medicamentosas. Somente em 2021, foram receitados sete medicamentos diferentes para ela. A lista incluía até medicamento destinado a convulsões e enxaquecas, embora ela não sofresse desses problemas.
Além disso, um dos remédios tinha a capacidade de estabilizar o humor, outro foi indicado para minimizar os efeitos colaterais dos demais. Apesar de algumas melhoras pontuais, a adolescente continuava a oscilar entre momentos de alívio e profunda tristeza. No início de 2023, a jovem morreu.
Um estudo publicado em 2020 na revista científica Pediatrics trouxe à tona uma descoberta preocupante: mais de 40,7% dos pacientes entre 2 e 24 anos que receberam prescrições para tratar o Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) também receberam antidepressivos, resultando em mais de 50 tipos distintos de medicamentos psicotrópicos usados em conjunto.
Segundo o Conselho Federal de Farmácia, o Brasil viu um aumento notável de cerca de 58% nas vendas desses medicamentos entre 2017 e 2021. No Reino Unido, o censo demográfico mais recente de 2021 revela que 14,7% dos jovens de 18 anos fazem uso de algum antidepressivo. Já nos Estados Unidos, de acordo com dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), esse índice é de 13%.
Parece que há bastante tempo existe uma tentativa por parte das indústrias e laboratórios farmacêuticos de transformar o ser humano em uma fonte constante e plena de felicidade. E sim, nós já vimos esse filme. Quer um exemplo?
O documentário da Netflix, Painkiller ou "Império da Dor" (em português), aborda exatamente a questão da dependência de medicamentos que combatem a dor e promovem o bem-estar a um custo bem alto, diga-se de passagem. Em seis episódios bem produzidos, a minissérie retrata a epidemia de opioides que assolou os Estados Unidos, no final dos anos 90. Um parênteses para esclarecer: os opioides são analgésicos potentes usados para tratar dores mais fortes.
Por meio da narrativa do CEO de determinada indústria farmacêutica, um médico americano bilionário, acompanhamos a criação do medicamento, que promete aliviar qualquer tipo de dor, independentemente da gravidade dela. E mais: ele não só 'tira a dor', como é associado ao prazer e à felicidade - e é aqui que mora o maior perigo.
O documentário revela que os executivos da farmacêutica já estavam envolvidos nesse mercado há décadas. E o objetivo era o de construir uma base de clientes cativos que se assemelhavam aos dependentes químicos. A estratégia foi muito bem-sucedida. Graças a uma campanha de marketing massiva e a cooptação de médicos, o remédio, cujas propriedades são base da heroína, tornou-se extremamente popular no país. Se você não viu, recomendo.
Um dos livros mais importantes sobre essa indústria foi escrito pela médica Marcia Angell, intitulado "A Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos", a obra analisa como os laboratórios deixaram de cumprir sua missão original de descobrir e fabricar medicamentos úteis, e tornando-se gigantes do marketing.
Angell, que também é professora no Departamento de Medicina Social da Universidade Harvard, já vem há algum tempo alertando por meio de seus artigos científicos sobre a prescrição excessiva de drogas antipsicóticas, especialmente para crianças e adolescentes. Psiquiatras brasileiros alertam para uma epidemia de diagnósticos de transtornos versus a banalização das mesmas.
Para entender a gravidade da situação, em 2020, mais de 2,7 milhões de adolescentes americanos com 12 anos ou mais experimentaram o Transtorno por Uso de Opioides (OUD), dos quais 2,3 milhões receberam opioides por prescrição médica. No entanto, o aumento das mortes por overdose relacionadas a opiáceos na última década atingiu um total de mais de 80 mil óbitos em 2021, de acordo com dados do CDC e do National Institute on Drug Abuse (NIDA).
No período de janeiro de 2022 a janeiro de 2023, foram registradas 109,6 mil mortes, o que equivale a uma média de 300 óbitos por dia. E ainda de acordo com o NIDA, os sintomas de abstinência incluem dores musculares e ósseas, insônia, diarreia e vômitos e desejos intensos. Esses sintomas podem ser extremamente desconfortáveis e são a razão pela qual muitas pessoas acham tão difícil parar de usar opióides.
No Canadá, os opióides prescritos agora ultrapassaram os cigarros como a terceira substância mais consumida entre adolescentes de Ontário, representando cerca de 14% do consumo total, ficando atrás somente do álcool e de outras drogas. Mas os estudantes mais jovens, especialmente do 7.º e 8.º ano, utilizaram essas substâncias de forma indevida, ou seja, em quantidades maiores, de acordo com informações do Centro de Adição e Saúde Mental (CAMH), da Universidade de Toronto.
Marshall Rosenberg, psicólogo, educador e autor do livro "Comunicação Não-Violenta", destaca que restringir a autonomia das crianças pode resultar em conflitos relacionados à superproteção. Ele propõe que os pais ensinem seus filhos a resolver problemas e desconfortos com tranquilidade, liberdade e, ao mesmo tempo, de forma consciente e saudável.
É preciso ter coragem de permitir que os filhos vivenciem emoções como tristeza, a perda, a frustração, pois a diversidade emocional é uma parte fundamental na jornada de qualquer pessoa. E é ela quem vai garantir o desenvolvimento de habilidades e capacidades para que este ser seja capaz de superar momentos não tão bons na vida.
Dar a eles a possibilidade de enfrentar esses desafios de maneira mais independente é o que irá fortalecê-los para encontrar recursos internos que os ajudem a lidar com as adversidades sem se perderem no meio do caminho.
Cada vez mais, a gente, sociedade, precisa compreender e integrar essas experiências no crescimento pessoal dos filhos, porque nem sempre a cura está no remédio, mas sim na liberdade de discutir esses assuntos com serenidade, lembrando sempre que a vida não segue uma trajetória linear. E é aí que mora o "tal" do bem-estar, do que chamamos de saúde mental.
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