Desde que o mundo é mundo, padrões sempre ditaram regras e com a beleza, que está diretamente atrelada a autoestima, não é diferente. Entenda como essa ditadura impacta a construção da autoconfiança na adolescência em tempos de redes sociais
"Eu não sei se eu quero ser aquele filtro. Eu queria me sentir seguro com a minha imagem". A frase do João Pedro abre o primeiro vídeo de uma sequência que fala sobre a construção da autoestima na juventude, produzida pelo Fundação José Luiz Egydio Setúbal. A série, Crises na Adolescência, tem por objetivo discutir algumas das tantas questões da fase e a autoestima é uma delas. E você sabe por quê?
Porque a autoestima é um aspecto fundamental da saúde mental de uma pessoa. Ela se refere à avaliação que alguém faz de si mesmo e da sua capacidade de lidar com os desafios da vida. Traduzindo o conceito para o cotidiano, até para o aspecto mais mundano da palavra, autoestima tem a ver com nossa capacidade de se olhar no espelho e se sentir bonita ou bonito.
Se achar o máximo, se achar bom o suficiente para abrir a porta de casa, pisar no mundo, encarrar os milhões de outros olhares e não se abalar. Mas quem consegue? Porque desde que o mundo é mundo, somos bombardeados por padrões estéticos a serem seguidos e é inquestionável a capacidade que eles têm de abalar a autoconfiança de um indivíduo.
Os tempos passam, os padrões estéticos se atualizam, mas parece que vivemos um eterno não se aceitar que acaba por estabelecer uma relação conflituosa com a imagem que a gente observa na frente do espelho. Quem consegue se olhar sem achar defeitos? Sem enxergar, primeiro, o que gostaria de mudar para depois se elogiar?
Agora tente voltar a sua adolescência e lembrar dessa relação. É nesta fase que meninos e meninas começam uma relação mais consciente com a própria imagem refletida no espelho. E é durante este exercício diário de se olhar, se perceber e se conhecer, que muito da autoestima vai sendo construída e fortalecida.
Ana Beatriz, outra jovem da série, fala que quando criança gostava muito de se olhar no espelho, mas que a relação mudou quando entrou na adolescência. "Diziam que eu tava muito magra, ou diziam que eu tava gordinha e eu acabei desenvolvendo um transtorno alimentar porque eu sempre achava que meu corpo não era bom", conta.
Claro que a autoestima não é totalmente construída ou pautada apenas pelos padrões de beleza. Existe um guarda-chuva de fatores que trabalham a favor ou contra este olhar positivo de si mesmo, mas é inegável - e incontestável - que o peso de "ser bonito" é grande. Faz sentido?
Mas não é fácil se olhar e se achar bonita, aceitando um nariz supostamente "torto" ou "de batata", uma pele "cheia" de acne ou espinhas, um corpo mais "redondinho" ou gordo, cabelos encaracolados "demais" ou crespos. Tudo entre aspas porque tudo aqui é relativo - ou subjetivo. Fato é que a lista pode ser interminável e em tempos de redes sociais, em que a exposição é maior e mais constante do que 20 ou 30 anos atrás, a relação com a autoestima pode complicar - e muito.
"Eu sou mais do que só um corpo", me diz Giovanna, outra adolescente que participou da série sobre autoestima. "Eu nunca apareceria assim na internet, sem filtros. É uma coisa para se pensar, não sei por que, mas não tenho coragem", completa.
Em abril deste ano, 2023, a marca de higiene pessoal Dove lançou um filme chamado O Custo da Beleza. Nele conta-se a história de uma garota americana que vivia muito bem, obrigada, até seus 14 anos quando ganhou de aniversário um celular. Como quase todo adolescente, a menina criou conta nas redes sociais e começou a trocar seu tempo pela tela. E de forma assustadora, mas totalmente real, essa menina começa a desenvolver questões relacionadas a saúde mental.
Ela deixa de sair com as amigas, passa a ficar muito tempo jogada na cama do quarto, constantemente se olha no espelho e se acha feia, passa a fazer dieta, não come mais quase nada porque se acha gorda, até o dia em que ela vai parar no hospital porque desenvolveu um transtorno alimentar: anorexia.
A história real da Dove não é uma história isolada, de uma menina que é exceção. É a história de muitas - muitas - meninas e meninos ao longo da adolescência. E não tem como falarmos de autoestima sem falarmos do impacto das redes sociais na construção e segurança dessa imagem, desse olhar-se no espelho. Certo?
No Brasil, a pesquisa Dove Pela Autoestima, realizada pela empresa em dezembro de 2020, revelou que 35% das 503 meninas entrevistadas já se sentiram "menos bonitas" ao verem fotos de influenciadores e celebridades nas redes sociais. A pesquisa também mostra que 84% das jovens brasileiras com 13 anos já aplicaram filtro ou usaram aplicativo para mudar a imagem em fotos.
Na França, tramita um projeto de lei que buscam regularizar o uso e multar influenciadores ou celebridades que fizerem uso sem informar na foto ou no vídeo. Na Noruega e em Israel, já existem leis que obrigam fotos e vídeos serem rotulados quando tiverem filtros aplicados. E por quê? Por que precisamos de lei de proteção ao uso de filtro?
O grande problema dos filtros é que eles projetam padrões inatingíveis. Se os padrões já são inalcançáveis, imagine eles com a possibilidade dos retoques dos filtros? É como se a gente elevasse tudo a uma potência máxima, o que torna o processo de aceitação da própria imagem algo muito mais doloroso e difícil.
"Eu nunca postei uma foto assim, natural", diz João Pedro. "Eu não sei se eu quero ser aquele filtro. Mas eu uso só pra esconder um pouco do que tá me incomodando no momento. Às vezes me sinto até culpado de colocar um filtro no meu rosto. Eu não queria fazer isso. Eu queria mostrar a minha acne Eu queria me sentir seguro com a minha imagem", revela.
Eu vou repetir essa última frase do João: "eu queria me sentir seguro com a minha imagem". "Às vezes eu me sinto culpado de colocar um filtro no meu rosto". O problema é que as redes sociais passam a existir como uma vitrine para corpos "perfeitos", peles impecáveis e uma vida aparentemente glamourosa, o que faz com que a gente passe a se sentir inadequado.
O resultado de tudo isso é uma distorção da realidade. O que seria algo saudável e natural no processo de adolescer, passa a ser penoso e cruel. É importante lembrar que a luta contra a ditadura da beleza envolve a promoção da diversidade e da inclusão, e a valorização da autoestima e do amor-próprio acima de padrões estéticos impostos pela sociedade.
Conversar com os adolescentes e os jovens sobre como eles se sentem ao se depararem com o universo infinito de imagens e comentários ainda é a melhor saída para enfrentar o problema. Aprender a usar e se relacionar dentro dos ambientes virtuais é fundamental e quando a gente tem consciência do mal que elas podem nos causar, já demos um passo para estabelecer outro tipo de relação com as redes sociais.
A autoestima é um aspecto fundamental para a saúde mental do ser humano e assim como a gente cuida do corpo precisamos cuidar da cabeça e das coisas que ficam cutucando as bordas do nosso cérebro. A equação não é simples, mas é possível. E bonito é ser quem a gente é.
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