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Comportamento Adolescente e Educação

Criança não namora, nem de brincadeira. Deu para entender?

Dizer a uma criança pequena que ela está namorando, só porque resolveu brincar de casinha com outra do sexo oposto, pode até parecer uma frase inofensiva. Mas a insinuação que adultos fazem esconde raízes culturais que podem trazer prejuízos à infância

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Foto do author Carolina  Delboni
Atualização:

Essa semana tem Dia dos Namorados e, com a data, várias campanhas e ações são realizadas em torno das relações amorosas. Em meio a atmosfera romântica, surge também uma questão enraizada na cultura brasileira: a graça que adultos veem em um menino e uma menina brincando, por exemplo, de casinha ou papai e mamãe. Tem sempre um tio, avó ou pai e mãe mesmo que logo olha a cena e diz que as crianças estão namorando. Alguns até incentivam. Mas criança não namora.

E o que significa falar para uma criança pequena, de 6 anos, que ela está namorando com outra? Será que ela entende a conotação dada pelo adulto? Expressões como "ah, tá namorando" ou "mas ela é só amiguinha, mesmo?" são corriqueiras em interações familiares e sociais. Aparentemente inofensiva, a prática tende a esconder raízes machistas e culturais. Eu sei, talvez você ache que essa relação é exagerada e totalmente "descabida", mas segue aqui comigo que eu vou te explicar.

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Na visão do médico Fernando Lamano, vice-presidente do Núcleo de Saúde Mental da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP), quando se fala sobre namoro de criança, é preciso entender qual é a perspectiva dessa abordagem. "As crianças, comumente, podem falar e brincar de namorar. Crianças bem pequenas, inclusive, a partir mais ou menos de quatro anos. Geralmente, estão reproduzindo algo do seu convívio, recriando alguma situação do seu ambiente, assim como fazem com outras brincadeiras, como brincar de médico. E isso, em geral, não tem uma conotação sexual. É importante distinguir sob a ótica da criança e sob a ótica do adulto," explica.

Historicamente, meninas são incentivadas a se enxergarem em papeis românticos desde cedo, enquanto os meninos são ensinados a exibir comportamentos assertivos e até possessivos, reforçando um estereótipo de gênero e, consequentemente, promovendo uma visão desigual entre meninos e meninas.

Para Amanda Sadalla, diretora-executiva na ONG Serenas e especialista em educação na prevenção de violências contra meninas e mulheres, as meninas não são livres para sonhar, não só pelas violências que sofrem, mas pelas expectativas sociais que limitam suas possibilidades de ser hoje e no futuro.

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Frases como "ah, tá namorando" ou "é seu namoradinho?", escondem raízes culturais que reforçam a erotização e adultização precoce de crianças. (Foto ilustrativa).  Foto: lyosha_nazarenko - stock.adobe.com

"Frases como 'cadê o namoradinho' e 'com quem será que vai casar' cantadas em aniversários são bases de uma grande desigualdade de oportunidades para as meninas. Desde cedo, elas aprendem que precisam estar acompanhadas de um menino e, futuramente, de um homem. Elas sentem que devem ser desejadas pelos meninos e, quando isso não acontece, começam a questionar o que há de errado com seus corpos, jeito de se vestir, falar e brincar," analisa.

Segundo Amanda, há um desconforto e até constrangimento por parte das meninas, já que o namoro e casamento são elementos da vida adulta, não da infância. "Precisamos ensinar às crianças que elas vão casar se quiserem, quando forem adultas e com quem quiserem", pondera.

Pais e responsáveis precisam mudar a narrativa Quando se fala em melhores medidas para evitar a sexualização precoce de meninas, Amanda é categórica. "Crianças não namoram, e não, nem de brincadeira! A erotização e sexualização precoce das crianças, inclusive, gera riscos gravíssimos quando o assunto é violência sexual. Uma menina que ouve a infância toda que deve dar um beijo no tio, mesmo quando ela não quer, ou aceitar o abraço do amiguinho, por uma questão de educação, aprende que deve aceitar o toque do outro, mesmo que isso a cause incômodo e desconforto," ressalta a diretora-executiva do Serenas.

Para ela, caso essa menina sofra um abuso sexual, que começa com um toque com conotação sexual por um membro da família, ou, imagine que esse tio disse que quer "brincar de ser o namorado dela", ela não vai ter recursos para identificar que aquilo não está certo, e muito menos ferramentas para comunicar o desconforto e pedir ajuda.

Da mesma maneira, o médico da SPSP comenta que, quando o assunto ou algo do tipo vem de um adulto em relação à criança namorar, isso, sim, pode acender um alerta. "Neste caso, há um risco de erotização e de adultização da criança. E isso obviamente está colocado em uma perspectiva de projeção dos adultos. E, pode estar ocorrendo um tipo de estímulo, num ambiente familiar ou de uma comunidade que a criança vive," fala.

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O médico explica que essa situação pode aparecer de forma mais sutil, por exemplo, quando as crianças são expostas a conteúdos não adequados para a idade, como filmes, séries, inclusive pelas mídias sociais. "Quando isso aparece sob a ótica do adulto, a gente está colocando numa criança que, às vezes, não tem essa perspectiva, uma coisa que ela não consegue entender. E se a gente pensar no próprio namoro em si, quando ele começa a acontecer no sentido de uma relação mesmo (uma pessoa com outra), isso, em geral, vai acontecer mais ou menos na adolescência, e o próprio namoro passa por etapas de maturação," reflete o especialista.

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Os impactos na saúde mental das crianças Para Amanda, mestre em políticas públicas pela Universidade de Oxford, as consequências para a saúde mental, autoestima e autoimagem são perversas. Isso inclui insegurança, distúrbios alimentares na adolescência, depressão, ansiedade, automutilação, entre outros sintomas de uma autoestima esmagada por expectativas sociais.

"Não é coincidência que vemos meninas de 10 anos passando horas se arrumando, vestindo roupas de mulheres adultas, divulgando vídeos hipersexualizados nas redes sociais, buscando ser desejadas e aceitas, em um processo perigoso de adultização da infância," diz.

No caso das meninas negras, Amanda diz que os comentários sobre a cor da pele, o cabelo e outras características, além de sexistas, são racistas e afetam profundamente a autoimagem. "Padrões sexistas, racistas, capacitistas, ainda na infância, são atrelados a fatores de exclusão do mundo afetivo, impedindo que sejam 'desejadas' pelos meninos," acrescenta.

Sinais de alerta É responsabilidade dos adultos, tanto familiares quanto da escola, trazer referências saudáveis, seguras e protegidas. Muitos romantizam situações em que as crianças expressam uma sexualidade precoce, por exemplo, quando um menino passa a dar beijos no rosto da colega e a professora, ou a própria mãe, diz achar "uma gracinha". As crianças precisam saber quando um adulto toca nelas de forma inadequada e, para isso, precisam ter as ferramentas para tal.

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Para o doutor Fernando Lamano da SPSP, é necessário ficar atento quando a brincadeira ocorre entre indivíduos de diferentes faixas etárias. "Quando duas crianças de 4, 5 anos estão falando que namoram, isso tem uma perspectiva. Quando um adolescente e uma criança estão brincando de namorar, isso já tem outra perspectiva e, principalmente, se for um adulto e uma criança. Outro sinal de alerta é quando a criança traz esse tema de forma muito excessiva e frequente.

Já Amanda lembra que, em um país onde a cada hora são reportados 8 casos de estupro, sendo a maioria deles contra meninas com menos de 13 anos, e majoritariamente os crimes são cometidos por pessoas conhecidas, precisamos urgentemente ensinar as meninas e as crianças em geral sobre seus direitos e temas como conforto x desconforto, consentimento, respeito, autoconhecimento sobre seus corpos e sobre como comunicar sentimentos, desconfortos e desejos. "Precisamos ter em mente que as crianças reproduzem os comportamentos dos adultos," aponta.

Segundo as orientações da UNESCO, para um currículo em educação integral em sexualidade, na infância a escola deve proporcionar às crianças um ambiente seguro para aprender sobre o corpo, reprodução humana, relacionamentos (entre amigos, famílias), segurança e prevenção ao abuso sexual, além do desenvolvimento de habilidades socioemocionais importantes.

As famílias devem investir em diálogos abertos com uma escuta muito atenta. 'Muitos pais ficam tão assustados com comentários dos filhos que acabam os penalizando por fazerem perguntas. Deixar com que as crianças perguntem é fundamental, é aí que vem o espaço para o diálogo. Quando a criança aparece dizendo algo que soa estranho, com cunho sexual ou romântico, por exemplo, é importante tentar entender o que ela quis dizer com isso, entender se há alguma situação de risco e, com ela, explicar o que são elementos do mundo adulto e o que são elementos do mundo infantil. Do contrário, quando a criança faz uma pergunta e os pais respondem "isso não é assunto de criança", ou até mesmo brigam com ela por perguntar, elas aprendem que ter dúvidas e que temas como sexualidade, partes íntimas e outros correlacionados são coisas ruins que não devem ser faladas," enfatiza Sadalla.

Criança não namora, nem de brincadeira. Deu para entender agora o por quê?

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