O abandono do esporte e o baixo nível da prática de atividade física têm contribuído para o aumento do sedentarismo na infância
Segundo a OMS, Organização Mundial da Saúde, 78% das crianças e 84% dos adolescentes brasileiros não fazem o mínimo de atividade física recomendada por dia. Uma hora é a orientação do órgão, mas desde que a pandemia se instalou na vida, a movimentação se restringe ao pacato deslocamento entre um cômodo e outro da casa. A consequência já aponta ao sedentarismo, uma vez que o nível de exercício está baixíssimo e algumas crianças não querem mais voltar ao esporte que faziam.
Crianças trocaram a movimentação do dia a dia pelo sentar-se à frente da tela quase todo tempo. Divididos entre aulas remotas e eletrônicos, sobrou pouco tempo - e espaço - para outros fazeres. "As consequências de todo este cenário são visíveis no corpo das crianças", alerta Fernanda Martins, neuropsicopedagoga. "Externamente algumas ganharam peso e internamente, acentuaram o apego emocional com os pais, desenvolveram medo sobre tudo que envolve a doença e ganharam um cérebro programado para ficar em casa".
Natasha Martins conta que a filha de 10 anos, era super ativa e já participava de competições de ginástica rítmica. "Um ano parada e desgostou de tudo. Não acho que seja preguiça, apenas não quer mais e amava. Perdeu o brilho e a vontade de algo que ela simplesmente amava". Natasha fala que a menina é perfeccionista e tem perfil psicológico de atleta. Nas férias, tinha medo de perder flexibilidade e onde quer que estivessem, a menina estava se exercitando. "Agora ela tem medo de não chegar perto do que era. É como se houvesse uma atleta antes da pandemia e uma sedentária depois. A treinadora liga, manda mensagem, ela simplesmente chora. Não sabe explicar o que sente", desabafa.
"Meu filho era atleta de alto rendimento", também conta Gabriela Márquez. "Treinava três vezes por semana e tinha competições constantes pelo clube. Com a pandemia parou tudo e agora estão voltando aos poucos, mas não sei o que aconteceu que ele não quer ir mais. Diz que está chato. Fico achando que, na cabeça dele, os treinos perderam propósito uma vez que as competições estão fora de cogitação. Tenho insistido e ele sempre volta feliz, mas é uma briga", confessa.
Para Raphael Luiz Moura, técnico de judô formação do Esporte Clube Pinheiros, reforça que, mesmo em atividades remotas, o contato fez-se e faz-se necessário. "Justamente para que fosse mantida a chama acesa dentro dos atletas e também a sensação de pertencimento ao grupo. Com a falta de treinos é inevitável a perda de flexibilidade e outras habilidades, porem aspectos reversíveis a curto prazo quando se trata de crianças em fase de formação".
Lembrando que não precisa ter medo de errar. "O feedback positivo para os pequenos ganhos e evoluções nessa fase são importantes para o fator psicológico. É preciso sinalizar que estamos em um processo novo e que nós professores estamos neste processo junto com eles e passaremos por tudo isso juntos", enfatiza o técnico.
Para Fernanda Martins, as crianças estão mais resistentes as atividades físicas ou esportes, mas ela acha que é questão de pouco tempo para que percam os medos e os receios todos. "Agora, que podem retomar práticas que tinham anteriormente ao isolamento, elas demonstram resistência, o que é compreensível uma vez que o cérebro compreendeu a realidade do isolamento. É comum também demonstrarem que preferem ficar em casa com a mãe ou assistir televisão e jogar jogos eletrônicos. Por isso, paulatinamente, precisamos retomar os hábitos saudáveis que ficaram adormecidos por um período instável e irregular da rotina. Só assim, o corpo e o cérebro delas poderão corresponder mais ativamente".
Bruna Barbosa está no mesmo impasse com o filho que jogava futebol. "Ele chegou falando que não quer mais fazer futebol e sempre amou! Se deixasse jogava o dia todo, mas com a pandemia parou com a escolinha e com as aulas extras da escola, e agora não quer mais jogar, é pura preguiça e eu não estou sabendo como agir". Hellen Berger também não sabe o que fazer. "Minha mais nova, de 10 anos, fazia ginástica olímpica e não pode mais fazer, pois moro fora do Brasil em um local de muita transmissão e estamos isolados desde março de 2020. Antes ela treinava em casa e pulava sem parar, agora só quer ficar no computador e celular".
A angústia e a preocupação dessas mães são mais do que legítimas. Estudos mostram que o sedentarismo é um dos caminhos ao sobrepeso e a obesidade infantil. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Brasil, uma em cada três crianças entre cinco e nove anos está acima do peso. De acordo com o Ministério da Saúde, nessa faixa etária, 12,9% são obesos. Já as notificações do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional de 2019, revelam que 16,33% dos brasileiros entre cinco e dez anos estão com sobrepeso, 9,38% são obesos e 5,22% apresentam obesidade grave. Entre os adolescentes, 18% têm sobrepeso, 9,53% são obesos e e 3,98% apresentam obesidade grave.
Claro que nem toda criança terá como consequência a obesidade, mas a perda de saúde tanto física quanto mental já é notável. Cumprir os pedidos da OMS dentro de casa, em isolamento social é realmente uma tarefa difícil. Não apenas aos pais, mas às crianças e aos adolescentes também que perderam ânimo e vitalidade. E algumas dessas causas são químicas. Dentro de casa, com baixa movimentação, o corpo pouco absorve e produz duas vitaminas que são vitais: D e B. Visitar um endocrinologista pode ser importante em alguns casos.
O professor de Educação Física, Eduardo Massuda Fanis, da Escola Vera Cruz, reforça a importância da atividade física. "Ela é essencial para a produção e ativação hormonal em nosso corpo. Isso nos traz bem estar e disposição para lidar com os nossos desafios diários. Mas, não é só isso, o jogo e a brincadeira proporcionam uma ludicidade e um contato com as regras que são muito importantes para o desenvolvimento humano com inúmeros benefícios para a saúde física, mental e construção moral dos envolvidos e envolvidas", explica.
Outro ponto favorável ao esporte e a atividade física é "o aumento nas relações e nos compromissos sociais", lembra Eduardo. "Essas possibilidades não se encerram na infância, pois quanto maior o número de linguagens corporais desenvolvidas por uma pessoa, maiores as chances de um desenvolvimento saudável e social no futuro".
Ana Paula Maciel, sócia do Pausa Para Prosa, mãe de duas meninas jovens e um de 9 anos, relata a exaustão de convencimentos diários para que o filho retome a vida dentro das possibilidades da pandemia. Depois de passarem quase um ano morando na casa de campo, toda e qualquer saída na capital tem sido uma luta. "Não achei que fosse ser outro 'auê' ir para o futebol, mas foi. 'Não quero fazer nenhuma aula extra, só quero jogar futebol com meus amigos, sem professor, depois da aula e no final de semana', ele fala a todo momento", conta.
"Não quero fazer nenhuma aula". "Fazer lição é chato". "Não quero...". Quando o bombardeio de "nãos" começou, Ana Paula conta que ficou bem irritada. "Minha vontade era dar um grito, dizer que não tinha negociação e blá, blá, blá. Mas não dá pra educar com grito nem com blá, blá, blá, já diria a Rosely Sayao. Sentei-me com ele num banco embaixo de uma árvore (apesar de parecer poético, não foi. Tive que exercitar muito a paciência e a serenidade). Pedi para ele me explicar por que não queria fazer nada e em pouco tempo, ficou claro que ele estava inseguro. Depois de tanto tempo na zona de conforto, chegar num lugar novo podia parecer - e ser- um desafio e tanto".
"O medo está presente em todos nós e o esporte é um meio muito importante para auxiliar na lida com o sentimento", fala Raphael, técnico de judô. "A todo momento o esporte ensina a como se relacionar com o medo, a não desistir e a ter perseverança. Crianças e adolescentes precisam sentir as sensações que davam prazer no esporte de volta com todos os protocolos de segurança. Além de rever os amigos. Essa sensação de volta 'ao normal' é como uma luz no fim do túnel. E após a quebra desta barreira, o dia a dia irá deixá-los mais seguros".
O medo e a insegurança do filho da Ana Paula são também de muitos outros. Depois de meses, quase um ano, protegidos dentro de casa, crianças precisam, de novo, reaprender a viver fora do ninho. É uma readaptação a tudo, inclusive a escola e as atividades físicas. As crianças têm total consciência de que a vida mudou, de que nada mais será como antes da pandemia, mas também não sabem como será daqui pra frente e isso dá medo.
Raquel Poubel conta que o filho de 5 anos está assim. "Vive dizendo que está muito cansado. Muitas vezes tenho que levar a força pra brincar na rua, andar de patinete ou bicicleta, porque ele simplesmente não quer". O mesmo se queixa Débora Borges. "Meu filho tem 9 anos e era super ativo. Fazia futebol duas vezes por semana, amava ir à piscina do prédio e hoje inventa desculpas para não ir à escola. Durante as tardes só quer saber de jogar no computador ou assistir TV".
Vale aqui acender a luzinha vermelha para o tempo de tela das crianças e dos adolescentes. Sabe-se que é uma luta diária e consultar as recomendações da SBP, Sociedade Brasileira de Pediatria, pode gerar mais frustração e sentimento de impotência para muitos pais. As razões são inúmeras pra que eles passem mais tempo à frente das telas, o que é preciso é dar limites. Criança precisa de limites e contorno.
"Vivemos momentos de preocupação e de cuidados necessários e isso se reflete no enfrentamento de situações que antes eram motivadas e felizes por parte das crianças", alerta Eduardo, professor de Educação Física. "Paciência com essa nova realidade somada a um zelo com o número de horas em frente as telas e principalmente com os jogos virtuais tende a trazer bons resultados. Outra sugestão é a atividade física realizada com membros da família, pois além do encorajamento e prática através do exemplo, ela traz um momento em grupo que pode dar maior leveza as cobranças, com ações substituindo as falas repetidas".
Não existe resposta única e nem solução mágica. Existe o que cada um consegue fazer e que está dentro do alcance familiar. Importante é entender que do lado de lá existe uma criança ou um adolescente também com dificuldades de viver todos os obstáculos impostos pela longa e extensa pandemia.
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