De norte a sul, públicas e privadas, escolas brasileiras ainda enfrentam questões primarias no combate ao racismo, mas, junto de entidades do terceiro setor reforçam a importância da luta e buscam avanços com formações e manuais
Pautar o antirracismo na educação, no chão da escola, com crianças e adolescentes, é apenas um dos cadeados a serem abertos para libertar-nos desta prisão chamada "racismo à brasileira". Ao colocar uma lupa na realidade educacional do nosso país encontramos desafios: escolas e redes de ensino em compassos diferentes no enfrentamento ao preconceito étnico-racial.
É importante salientar que, para todas as instituições de ensino básico pública ou privada, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) dão o norte sobre o curso da aprendizagem no país. Apesar dos avanços, os esforços precisam de ainda mais força, tendo em vista o atraso educacional em que povos negros, quilombolas e indígenas ainda vivem e como a branquitude ainda contribui para isso.
Washington Goes, técnico de programas do Cenpec e especialista em Cultura, Educação e Relações Étnico-Raciais, tem pensado essas questões a partir de duas perspectivas. A primeira é a do currículo institucional, a segunda é o que se chama de currículo oculto - o que não é visível a primeiro plano.
"As discriminações, o racismo e o preconceito ocorrem no cotidiano da escola. O currículo formal é importante, mas precisamos discutir as relações", fala. As leis 10.639, de 2003, que estabeleceu as diretrizes para o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira, e a 11.645, 2008, que obrigou a educação da História e Cultura indígena e Afro-brasileira, abriram o caminho para minimizar o início do ciclo: "Do silêncio do lar ao silêncio escolar", como retrata Eliane Cavalleiro em seu livro de 2012, onde expõe situações racistas vivenciadas por crianças do ensino infantil.
"A legislação contribuiu para romper o silêncio escolar. De alguma forma, provocou as pessoas defensoras de uma sociedade sem racismo e igualitária que falassem e que as pessoas que não entendiam se manifestassem", considera Goes, mestre em educação pela PUC-SP.
Clelia Rosa, consultora pedagógica de relações etnico-raciais, insiste que é dever das pessoas negras e brancas, independente do nível socioeconômico ou território, ter um letramento racial para entender como o Brasil funciona historicamente e os pilares que mantêm os padrões hierárquicos de pé. "Em termos de conteúdo, todos os estudantes precisam aprender a história do Brasil a partir da população negra, o processo de escravização, de libertação, o que desencadeou para os dias atuais", reforça.
Sobre as desigualdades socioeconômicas e educacionais, Clelia complementa: "na rede pública, a gente encontra inúmeras famílias e alunos numa situação de ultra vulnerabilidade, sustentados muitas vezes por um único adulto. Os alunos da escola privada não estão pensando se vão almoçar ou não, se tem roupa de frio ou não. Eles têm outras condições para se concentrar e absorver o conhecimento e isto exerce uma diferença brutal", pontua.
Sob a consultoria de Clelia, em julho de 2021, o Instituto Alana deu pontapé inicial na jornada formativa chamada "No Chão da Escola" para discutir a educação antirracista. Dez meses depois, em maio de 2022, nasceu o material de apoio "Recriar a escola sob perspectiva das relações étnico-raciais". O objetivo do extenso documento é fornecer subsídios para formação de educadores a partir das reflexões e experiências da educação básica partilhadas entre diferentes níveis de ensino e regiões do país.
"O resultado da fala dessas pessoas, junto da curadoria com tantos outros referenciais, nós podemos dizer que não existe escassez de material para falar de relações raciais. Há uma grande produção de conteúdos. A necessidade é de as pessoas saberem utilizarem, se dedicarem a estudar, a aprender sobre. Não se trata da falta de ferramentas, mas do uso", diz a consultora.
Mas já parou para pensar qual cenário está posto numa escola de elite em São Paulo? Ainda: como se dá este enfrentamento no estado do Rio Grande do Sul, onde dos 800 mil estudantes que compõem a rede pública estadual 68% são brancos, e na Bahia, estado com próximo de 90% dos 834 mil alunos se autodeclaram negros?
O Brasil é um país de muitos brasis e as formas de enfrentamento às realidades são diversas. É preciso contemplar condições socio-econômicas e culturais. É preciso acolher o que cada um traz consigo para daí construir um projeto de mudança.
Rede Privada Quando Chico Buarque de Hollanda foi aluno do tradicional Colégio Santa Cruz, entre os anos 1950 e 1960, ele não teve contato com nenhum estudante negro ou indígena. Para mudar o cenário, a escola da elite paulista é exemplo do movimento de outras instituições educacionais de alto padrão na capital paulista. Desde o ano passado, uma força-tarefa, integrada por direção, mães e pais, grupo de estudos de educadores, parceiros e alunos, adota estratégias para enfrentar a discriminação no ambiente educacional.
No caso do Santa Cruz, um programa de ações denominado Santa Plural surgiu com o propósito de combater o racismo a partir de alguns eixos: a educação e sensibilização da comunidade; ações formativas; a revisão de currículos e acervo e a ampliação de acesso e permanência de negros e indígenas na escola; tanto entre os educadores, já em 2021, como entre alunas e alunos a partir de 2022, com início na Educação Infantil.
Neste ano, conforme Fernanda Petta, diretora de recursos humanos, 44% das vagas do Colégio foram preenchidas por profissionais negros e indígenas. Em relação aos estudantes, foram preenchidas 10 vagas para alunos negros bolsistas, sendo 8 integrais e 2 parciais, definidas por uma comissão do Colégio Santa Cruz após entrevistas e avaliação de comprovantes de renda em 2022. Além do ingresso de 1 aluno negro pagante.
Esses alunos e alunas se somam aos 30 estudantes negros dos cursos regulares e aos 344 dos cursos noturnos. Fábio Aidar, diretor-geral do Colégio Santa Cruz, diz que trabalhar o tema em uma escola de elite que sempre teve seu público branco trouxe surpresas, mas que a ideia foi abraçada pela comunidade escolar.
"Perceber que a escola está se tornando mais diversa é um ganho para todos nós. É um ganho também para as crianças brancas por estarem mais próximas da realidade brasileira que tem metade da população negra", fala. E este é justamente um dos desafios para os próximos anos da escola: atingir um percentual de alunos negros equivalente ao dos brasileiros. "Além disso, trazer mais profissionais negros para nossa instituição".
Com olhar atento à população negra, aos povos indígenas e aos problemas enfrentados por eles, educadores da Camino School, escola de educação básica trilíngue, localizada na zona Oeste de São Paulo, tomaram a iniciativa de elaborar um Manual com orientações práticas e pedagógicas para auxiliar no enfrentamento do racismo estrutural.
Com 97 páginas e veiculação gratuita (on-line), o Manual foi organizado elaborado pela Comissão de professoras e professores de referência em Relações Raciais da escola, e tem como proposta mostrar como são desenvolvidas as aprendizagens para enfrentar tais adversidades.
O ponto de partida foi a reflexão, com profundidade, sobre como a sociedade ainda sofre com o racismo e a escola está inserida nesse contexto social. Munidos de sentimentos como desconforto e inconformidade, o grupo de educadores desenhou um plano de ação com ações, avaliações e também com a proposta de monitorar as mudanças que a instituição propõe.
"A diferença do manual está na proposta de desenvolvimento de ações específicas para as instituições de ensino. A gestão precisa implementar as orientações, os professores necessitam trabalhar em sala de aula o tema de forma positiva. Para além disso, os estudantes e familiares precisam estar atentos para identificar situações de racismo estrutural e seus derivados", diz Leticia Lyle, cofundadora da Camino Education e diretora da Camino School.
Rede Pública Com uma rede estadual de aproximadamente 800 mil alunos, a Bahia tem 1800 pontos de educação, entre escolas e anexos, espalhados por todo o território. Manoel Calazans, superintendente de políticas para a educação básica no estado, ressalta a formação continuada e o Documento Curricular Referencial da Bahia (Dcrb), que aponta de maneira multidisciplinar como tratar questões étnico-raciais.
"Precisamos ter condições para termos dicionários em iorubá nas escolas, livros paradidáticos e romances que tratam da questão e de autores negros. Nós temos feito aquisição desses materiais e também apelamos às unidades escolares a aquisição também", diz o porta-voz sobre o trabalho de cooperação educacional. Em 2021, segundo ele, foram disponibilizados cerca de R$ 250 milhões às escolas estaduais.
"Nós estamos com um movimento na rede de construção de novas escolas e nestas unidades há intervenções artísticas e arquitetônicas nos espaços internos, com exposição de autores, pensadores e personalidades negras. Nós levamos ícones da música popular, cientistas negros", reforça Manoel.
Para o representante da Seduc BA, é preciso haver um maior intercâmbio entre as unidades escolares para que possam compartilhar boas práticas. A impressão de Manoel é de que as discussões sobre educação antirracista evoluíram bastante, mas é preciso dar maior visibilidade aos trabalhos feitos.
Num oposto geográfico, a Secretaria da Educação do Rio Grande do Sul lançou, em março deste ano, o programa Educação Antirracista. "O projeto iniciou em janeiro quando lançamos chamado para os formados. Depois disso, começamos pelo meu gabinete, com secretários-adjuntos, chefes de programas, foram três dias de imersão. Quando anunciei houve certa resistência, mas logo o projeto engatou. Teve até gente que chorou. Depois, passamos para as equipes, desde o recursos humanos, obras, até a área pedagógica", detalha Raquel Teixeira, titular da pasta.
"Ao final do curso, esse profissional terá de propor um plano de mudança pessoal e profissional. Não adianta eu falar que vou fazer uma educação antirracista e não me comprometer em ter mais diretores negros, maior diversidade étnico-racial nas posições de tomada de decisão".
A proposta é similar ao que acontece nas formações de Harvard em que ao final do curso, o aluno precisa apresentar um projeto, um plano de mudança. Desta forma, a teoria absorvida ao longo das aulas tem a possibilidade de se transformar em prática - ou, pelo menos, ganha intenção.
O curso de formação do Rio Grande do Sul tem previsão de chegar aos professores das escolas ainda em outubro. Para, depois, chegar de fato à sala de aula. Com uma rede de quase 800 mil alunos onde 68% se identificam como branca, Raquel lamenta: "a nossa rede estadual é profundamente desigual, o engajamento, o acesso ao equipamento tecnológico".
O objetivo do projeto, segundo Raquel, é mudar não apenas a perspectiva, mas o compromisso institucional para abertura de espaços, de forma mais proposital, para pessoas negras. "Se a gente não criar essas oportunidades de ocupação de espaço, de ocupação de decisões, a gente não cria nem a referência que as crianças negras precisam para que saibam que elas podem ser professoras, diretoras, o que quiserem", justifica.
Colaborou Italo Lucas Cosme
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