Adolescentes não estão blindados de relacionamentos abusivos e, muitas vezes, é na intensidade - e inexperiência - de se "apaixonar perdidamente" que aparecem as tentativas de controle e ciúme excessivo. Veja como conversar sobre o assunto, seja seu filho - ou filha - abusador ou vítima.
As primeiras paixões acontecem na adolescência e como todo e bom adolescente ele costuma viver o sentimento em profundidade e intensidade. Tudo é muito nessa fase e o que parece um exagero para os adultos é natural a eles. O sofrimento é da natureza do adolescente e o amor está incluso no pacote das emoções avassaladoras.
Mas o que acontece quando entre tantos sentimentos existe também o medo excessivo de se relacionar com o outro e correr o risco de perder essa pessoa? Alguns dão conta das inseguranças que aparecem, outros começam a reproduzir um sistema de relacionamento que chamamos de abusivo.
As tentativas de controlar o outro, tentativas de apagamento do outro e o ciúme excessivo são sinais de alerta de que algo não vai bem. É aí que entra a importância de dar nome às coisas e perceber quando um relacionamento ganhou traços abusivos.
Nos últimos anos - e meses - muito tem se falado sobre o assunto e ainda bem, porque certos comportamentos que antigamente eram considerados normais na dinâmica de um casal hoje não são - e nem devem ser - mais aceitos, uma vez que a sociedade já o entendeu como uma violência.
Violência, aliás, é um tema que ganha dimensões assustadoras quando analisamos um recorte da realidade. De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), feita em 2019, 18,3% da população brasileira com 18 anos ou mais já sofreu algum tipo de violência, seja ela física, psicológica ou sexual. Entre essas pessoas, 27,6 milhões foram vítimas de violência psicológica, 6,6 milhões de violência física e 1,2 milhão de violência sexual.
Como já era de se imaginar, a pesquisa mostra que as mulheres são a maioria, além das que se declararam pretas ou pardas também foram as maiores vítimas. Dos responsáveis pelos ataques, 72,8% são pessoas conhecidas, incluindo companheiros (25,4%), ex-cônjuges (18,1%), pais/mães (11,2%), padrastos e madrastas (4,9%), e filhos e filhas (4,4%).
E não são apenas adultos que compõe os dados desta violência. Adolescentes têm reproduzido a violência psicológica nas relações amorosas. Gabriela Alves, mãe de um garoto de 18 anos, pediu ajuda num grupo materno ao perceber que o filho estava sendo abusivo com a namorada.
"Ele não sai do celular nem por um minuto, checando onde ela estava e o que estava fazendo. Chegava a levar o aparelho para o banho", desabafou. "Dia desses acordei às 5h da manhã e fui ver o celular dele. Para minha surpresa, as conversas com a namorada não eram nada saudáveis. Ele pede que ela mande fotos de onde está toda hora, faz chantagens e, pelo que vi, a relação é bem abusiva por parte dele."
A técnica de enfermagem ficou assustada e foi, primeiro, buscar ajuda no grupo de apoio do qual faz parte. Tentou também conversar com o filho, mas o menino disse que "sentir ciúme é normal". Normal até é, mas e quando extrapola e invade a liberdade e individualidade do outro?
Para a Dra. Valéria Scarance, promotora de justiça do Ministério Público de São Paulo e autora da cartilha Namoro Legal, é preciso identificar os sinais da relação abusiva para daí pensar em estratégias e ferramentas de ações.
"As relações abusivas normalmente envolvem ciúmes excessivo, isolamento e controle", orienta, acrescentando que existem também certos alertas importantes e mais sutis, mesmo na ausência de agressões físicas ou verbais. São eles: críticas constantes disfarçadas de conselhos, ofensas em forma de piadas ou brincadeiras, isolamento dos familiares e amigos, monitoramento dos contatos, mensagens, rede social e ataques à autoestima da outra pessoa para gerar insegurança e questionamentos a seus dons", explica.
Uma vez que essas atitudes forem identificadas na sua casa, seja seu filho ou filha abusador ou vítima, o melhor a se fazer é ter uma conversa franca e direta, mas sem agressividade ou violência. "Se um pai ou mãe explode com o filho está praticando o mesmo comportamento do abusador. Além disso, justamente nesse momento é que os laços devem ser fortalecidos", orienta Valéria.
Ela também afirma que, ao notar determinadas atitudes suspeitas, é preciso apontá-las e ser enfática dizendo que isso não pode ser tolerado. Diga: "olha, você não pode fiscalizar sua namorada ou namorado porque isso é controle, não é ciúme" e, caso sua filha ou filho seja a vítima, reforce que não pode aceitar xingamentos ou rebaixamento.
"Uma conversa franca, associada ao bom exemplo é a melhor forma de se conectar com um filho ou filha que tem comportamentos abusivos ou sofre abusos. Se o pai ou a mãe, no passado, praticaram ou aceitaram condutas de desrespeito e machismo, podem dizer aos filhos que identificaram as situações e estão se esforçando para mudar o comportamento", destaca.
O que a dra. Valeria está falando é para que pais, mães ou responsáveis legais sejam honestos ao falar e demonstrar suas próprias vulnerabilidades. Dividir uma situação vivida com seu filho é uma maneira bem efetiva de passar o recado.
Apontar o dedo, acusar ou passar sermão são vias ineficientes com qualquer adolescente. E quando se trata de um que está sendo vítima ou abusador numa relação o cuidado nas escolhas de diálogos deve ser maior porque qualquer sensação de acuamento, o adolescente se fecha e temos mais um complicador.
Agora vai um alerta: "o exemplo mais forte é o aprendido dentro de casa". Estudos no Brasil e no mundo apontam que meninos tendem a repetir um padrão de desrespeito às mulheres e as meninas um padrão de aceitação da violência, caso tenham convivido com essas situações em casa. "Não são as palavras, mas as condutas que ensinam", pontua.
Aqui vale trazer outro aviso importante: Valéria Scarance me disse que, sim, há casos em que mulheres exercem situações de controle, fiscalização, isolamento e ciúme excessivo, porém esse tipo de violência costuma ser mais praticada por meninos contra meninas.
O relatório "Visível e Invisível: A Vitimização das Mulheres no Brasil" (2021), feito pelo Fórum de Segurança Pública e o Datafolha, mostrou que uma em quatro mulheres acima dos 16 anos - ou seja, 24% das entrevistadas - tinham sido agredidas nos 12 meses anteriores ao estudo.
Isto significa que uma média de 17.062.771 mulheres relataram ter sofrido algum tipo de violência no país. Entre os tipos de agressões, 18,6% relataram ter sofrido alguma ofensa verbal (insultos, xingamentos e humilhações), 8,5% foram vítimas de ameaças de violência física como tapas, empurrões ou chutes, 7,9% afirmam terem sido amedrontadas ou perseguidas, 6,3% sofreram violência física como tapas, empurrões ou chutes e 5,4% ofensa sexual ou tentativa forçada de manter relação sexual.
Volto ao ponto de que o comportamento do abusador, normalmente, é aprendido. Ele acha que ser assim é natural e "coisa de homem". Meninos não só reproduzem um comportamento que vivenciam dentro de casa como algo que é perpetuado pela sociedade.
"Condutas abusivas sutis são toleradas em letras de músicas, programas de televisão, propaganda e círculos pessoais, o que contribuiu para a naturalização de algo que é uma violência", alerta Scarance.
"Se um jovem é ensinado que há meninas para namorar e outras para fazer sexo, por exemplo, levará o ensinamento para vida, como se mulheres em determinadas situações estivessem sempre disponíveis. Não é só 'não é não', mas só 'sim é sim', como diz a nova lei na Espanha. Isso vale para tudo, não só relacionamento sexual."
Conforme orienta a especialista, da mesma forma que a violência pode ser um padrão comportamental incorporado ao longo da vida, ele também pode ser modificado e evitado. "Uma relação saudável é aquela que faz a pessoa evoluir como ser humano, profissionalmente e afetivamente", afirma.
Sugestão? Converse. Fale sobre o amor, respeito, as formas todas de se relacionar com o outro. Demonstre, conte situações, compartilhe vivências. E sempre. Neste caso, não é preciso esperar aparecer uma situação de violência para buscar formas de mostrar que isso é inaceitável.
Amor e respeito é um assunto diário e ele é feito à mão - ou seja, é no dia a dia.
* colaborou Rebeca Hidalgo
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