Na semana do Dia das Crianças a discussão se volta à infância do século 21. Como brincam as crianças da atualidade? O que está acontecendo com uma geração que cresce em frente às telas? Entenda o que os estudos mostram.
"Eu e minha mulher resolvemos dar um celular para ela porque esse é o mundo e ela tem que aprender a mexer desde pequenininha, senão vai ficar pra trás na tecnologia", me falou um pai (cujo nome não será divulgado pois a conversa não era uma entrevista oficial) de uma garotinha de 4 anos.
É isso mesmo que você leu: uma menina de 4 anos ganhou seu próprio aparelho celular, assim ela já aprende a mexer em algo que é inerente a sua geração. Essa mesma menina vai crescer, claro, e também fará outras coisas que são inerentes a sua geração como ter relações sexuais e experimentar bebida alcóolica. Mas veja, ela vai precisar crescer para poder vivenciar outras coisas que também fazem parte da vida e do mundo. Agora eu te pergunto: por que é que somos tão permissivos com a tecnologia?
Por que é que pais e mães não veem problema numa criança pequena sentada num sofá, paralisada, em frente a uma tela? Por que é que pais e mães não veem problema em crianças que pouco falam, pouco brincam, pouco socializam e muito se fotografam? Existe uma geração de crianças crescendo em frente às telas e construindo seu repertório de mundo pelo conteúdo que chega através do scroll.
São crianças nascidas entre 2010 e 2025, a nova geração Alpha, a primeira totalmente nativa digital, não trazendo distinção alguma entre o mundo on-line e o off-line. Mas a presença aguda da tecnologia no cotidiano, somada à experiência do período pandêmico no início de suas vidas, faz com que essa geração tenha aspectos, comportamentos e visões bastante particulares.
Estamos falando de uma geração de crianças que está construindo sua referência de mundo a partir das referências digitais. Não são as relações humanas que dão à elas perspectivas sociais, são as telas. A relação é com o conteúdo que fica no scroll e o repertório de mundo sai dali.
Um repertório de mundo, diga-se de passagem, construído por empresas de marketing, influenciadores, algoritmos, pessoas com filtros e por aí vai. Eu te pergunto mais uma vez: como entender o mundo e se relacionar com ele através de tanta interferência?
São crianças que chegam às escolas e trazem todo esse universo de YouTube e TikTok para desenhos e escritas de histórias. É constante histórias de meninas onde elas se acham feias e por alguma transformação passam a se gostar. Veja, estou falando de meninas de 7 e 8 anos.
Foi-se o tempo em que crianças assistiam Backyardigans ou Cocoricó. Foi-se o tempo também que criança ficava entediada, tinha que esperar, ficava cansada, era contrariada e brincava. Acredita que crianças pequenas brincavam? Ainda brincam se os adultos responsáveis propiciarem espaços saudáveis para tal. Ainda brincam se adultos responsáveis não derem celulares ou tablets em suas mãos com tanta frequência e com tanta permissividade.
Divertir e ensinar sempre foram as principais "funções" das brincadeiras. Mas com a chegada da tecnologia e dos celulares, uma simples brincadeira com massinhas de modelar pode ser considerada chata ou cansativa. Afinal, para que exercitar os músculos das mãos, quando arrastar a tela do celular é muito mais legal e fácil?
Exercitar os músculos da mão é fundamental para deixá-los fortes e saudáveis. Músculo da mão precisa abrir e fechar, apertar e soltar, esticar e contrair. Não os exercitar, atrofia. Então, quando uma criança reclama que a massinha de modelar está "dura", pode ser um indicativo de que algo está muito errado.
Na verdade, crianças que passam mais tempo em dispositivos móveis do que interagindo com outras pessoas ou crianças, perdem oportunidades importantes de desenvolver habilidades sociais, emocionais e físicas. O mesmo vale aos adolescentes aqui.
Segundo Gabriel Salgado, coordenador da área de Educação do Instituto Alana, o brincar - e especialmente o brincar livre, que parte da iniciativa da criança e não depende de brinquedos prontos - é fundamental para a formação da subjetividade, desenvolvimento e bem-estar emocional das crianças e adultos.
"Brincar é uma condição para a expressão de vitalidade e criatividade do ser humano e possibilita sua participação ativa na sociedade. Ao brincar livre, as crianças expressam sua singularidade, demonstrando suas emoções, interesses, gestualidades e habilidades - motoras, cognitivas e sociais. É a forma da criança ser, se expressar, se afetar, criar, compreender, investigar, aprender e estar no mundo," reflete.
Salgado complementa que por meio da experiência do brincar é que a criança vai se constituindo como uma pessoa inteira, que sente, pensa e age no mundo de forma própria, singular. "O brincar proporciona o sentimento de estar vivo, de ter um lugar no mundo, de pertencer ao próprio corpo e participar da comunidade e cultura do seu entorno. Os efeitos e benefícios do brincar infantil perduram ao longo da vida," explica.
Para ele, as crianças precisam de interações sociais presenciais para aprenderem a se relacionar, a se comunicar, a conviver com a diversidade, a negociar, a ter empatia, cuidado consigo e com o outro, entender e usar expressões faciais e linguagem corporal em resposta a sinais não verbais.
Na opinião do pediatra Daniel Becker, o excesso de permanência das crianças nas telas - e especialmente o que elas têm feito nestes aplicativos, como WhatsApp e Telegram, YouTube Shorts, TikTok e Instagram - é extremamente tóxico para a infância, justamente por serem viciantes. "Se esses aplicativos viciam os adultos, que já têm um cérebro maduro, imagine o das crianças, cuja formação ainda é imatura e que não têm qualquer capacidade de controle, ou habilidade para tomar decisões," questiona.
Para o médico, referência em saúde de comunidades, as crianças que passam muito tempo no celular, estão deixando de ganhar muitos benefícios. "Elas estão deixando de ter contato com o seu próprio corpo. Elas ficam largadas no sofá, abandonando um corpo que pede o movimento. O corpo infantil pede movimento. O cérebro, o metabolismo, o coração, tudo no corpo dela, exige que ela se movimente. Ela está se exilando da natureza, do céu, do chão, das árvores e do seu território essencial. A natureza é o território essencial da criança. E ela está deixando de ter qualquer contato, sequer com a luz do dia," salienta.
Sabemos que a relação telas x infância e adolescência é uma bomba relógio. Estudos e pesquisas têm sido publicados, aos montes, evidenciando o que até então era uma percepção. Os dados são claríssimos: 72% das crianças avaliadas pelo Programa de Pós-graduação em Medicina Molecular da Faculdade de Medicina da UFMG apresentaram sintomas de estresse, ansiedade e depressão decorrente ao uso excessivo das telas.
E temos uma geração inteirinha vindo ai com a saúde física e mental já comprometida. É urgente a mudança de hábitos. É urgente o resgate do brincar.
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