É preciso abrir espaço para que meninos possam participar de conversas e discussões femininas e feministas. Se eles não entenderem o que as meninas andam falando, pouco se transforma do machismo
Uma vez escutei de uma mulher preta que uma das maiores violências era ter que ficar de frente ao seu agressor e ter de ensiná-lo a não ser racista. Mas ela também me disse que, apesar da dor, este era o único recurso que via para transformar. Acreditava que pessoas pretas precisavam assumir o papel educador, ainda que penoso.
Nas devidas proporções, a fala me serve de exemplo para pensar no encontro do machismo com o feminismo. Só seremos capazes de desconstruir o machismo estrutural - que impregna a cultura e a sociedade - se abrirmos espaço na roda para os meninos entrarem conversa. Porque esta conversa também pertence a eles.
Só que eles precisam entender que, não apenas são responsáveis pela perpetuação do machismo, como o significado do machismo. Assim como o que é feminismo e a luta feminista. Sem compreensão dos termos, da história - e do histórico - pouco de avança. Pouco se transforma.
Recentemente, numa escola particular da zona oeste, um aluno de 8º. questionou a atitude de uma colega de classe durante a aula de Educação Física. Dois times jogavam futebol e durante um passe de bola, uma das meninas se sentiu prejudicada. Parou o jogo, segurou a bola e disse que aquilo tinha sido uma ação machista.
A aluna alegava que ninguém passou a bola para ela só porque era menina. Os meninos argumentaram que não era nada daquilo e um deles disse: "por que tudo é machismo agora?". Pois é, nem tudo é machismo, ainda que muito seja. E é para explicar essas e outras coisas que precisamos abrir a roda para os meninos entrarem.
Se eles não entenderem, por exemplo, que uma menina se sentir prejudicada numa partida de futebol tem relação direta com um histórico de partidas em que meninas não puderam participar e quando foram autorizadas, jogavam na posição "café com leite", não fará sentido o jogo parar.
Se eles não entenderem que meninas em campo nem eram consideradas, que não valiam nada no esporte, afinal "lugar de mulher" não era ali, vão continuar entendendo atitudes como desta menina como feminismo exagerado. E a gente não quer ter os meninos com este olhar enviesado.
Precisou de muito jogo, muito embate para que meninas e mulheres pudessem entrar em campo com algum pé de igualdade. Mas ainda vivemos na desigualdade e é natural - e esperado - que meninas, ao se sentirem acuadas e ameaçadas, enfrentem a situação. Enfrentem os meninos e os questionem. Isto é o que se chama de "feminismo", por exemplo.
A gente quer povoar o mundo de meninas feministas. A gente quer que elas se sintam fortalecidas para enfrentar o machismo. Quer, um dia, não precisar mais usar a palavra machismo com a frequência que se usa atualmente. Mas a gente não quer que este mesmo movimento forte e belo, afaste os meninos da convivência com elas.
Meninas e meninos não podem perder o diálogo. É preciso estreitar os laços. Sentar-se na mesma mesa para falar dos assuntos que incomodam, que machucam e, muitas vezes, violentam. Já ouviu falar em justiça restaurativa?
É um método, ou processo, que a Justiça usa em casos de violência doméstica onde, sob mediação de especialistas, agressor e vítima são colocados frente a frente para dialogar sobre o ocorrido. A proposta é de restaurar - como o próprio nome diz - as relações humanas que já existiram naquela família ou entre o grupo de pessoas envolvidas.
O método tem sido usado em muitos casos pelo Poder Judiciário e, independente do crime, o intuito é responsabilizar ativamente todos os que contribuíram para a ocorrência e alcançar um equilíbrio de poder entre vítima e ofensor. E aqui eu faço um outro paralelo com o começo deste artigo e o tema abordado.
Para recompor as relações sociais de uma comunidade - de um bairro, família, escola, núcleo - é preciso sanar as feridas, os conflitos e as muitas dores. É preciso garantir que não haverá incidência. E como a gente faz para garantir que não vai acontecer de novo? Ensina, educa, conversa, dialoga. A gente não faz isso com criança quando quer ensinar algo que não pode?
Por que desistimos de dialogar com adolescentes? Por que desistimos do diálogo entre meninos e meninas? Quanto menos um souber sobre o outro, menos se respeitam. Quanto menos um conviver com o outro, menos se relacionam. Quanto mais discutirem, mais raiva terão. Quanto mais brigarem, mais medo desenvolverão.
E meninos andam com medo das meninas. Sim, muitos meninos têm preferido se afastar para não serem acusados de inúmeras implicâncias machistas e violentas. Isso não quer dizer que violências, assédios e atos machistas não existam. Existem e é um fato inegável. Mas existe um medo vivido por meninos na pré-adolescência e na adolescência em si que é real e se vincula a atos feministas não compreendidos por eles.
Mas o feminismo não é uma ameaça e nem pode ser percebido como. Assim como meninos não podem ser sinônimos de violência e assédio. Abram a roda. Conversem com eles sobre limites, sobre o corpo, o toque no corpo do outro, o beijo, o funcionamento do corpo da menina, baladas, bebida alcóolica, ausência de consciência. Nem toda conversa eles precisam estar, mas precisam existir momentos em que eles serão chamados.
Como a gente quer que eles respeitem, por exemplo, a Tpm e a menstruação feminina se, na grande maioria das vezes, o que eles sabem aprenderam na internet? Como a gente quer que eles usem camisinha corretamente e conscientemente se 90% nunca pisou num urologista, segundo dados da Associação Brasileira de Urologia? Meninas entram na puberdade e vão ao ginecologista, mas a mesma realidade não existe para eles. Culturalmente - isto é machismo - não existe a necessidade de homem procurar o médico se nada tem.
A proposta não é eximi-los de suas responsabilidades, mas é, também, entender que existe um histórico de repetição que precisa ser quebrado e uma vez que falta a eles essa compreensão, talvez caiba a nós abrir essa porta.
Veja este outro episódio. Numa outra escola, uma aluna de 6º. tinha menstruado e acharam um absorvente na sua mochila. Entre ser criança e ser adolescente, a atitude esperada desta faixa etária é o famoso alvoroço por conta do objeto encontrado.
O esperado de um ambiente pedagógico, é que a professora aproveite o acontecimento para puxar uma conversa sobre respeito, privacidade e explicar a todos - todos - o que é menstruação e o que significa quando uma menina menstrua, ela separou meninos e meninas para conversas diferentes - ou desiguais.
Meninas ouviram sobre a beleza de menstruar. Meninos ganharam uma bronca porque certamente foi um deles que fez a zueira com a colega de classe. Percebe como a gente erra? Como a gente perpetua ações também machistas e violentas? Quem foi que disse que meninos não podem participar de uma conversa sobre menstruação e absorventes? Porque depois eles crescem a gente quer deles compreensão, respeito, empatia, sensibilidade.
Fato é que meninos acabam tendo pouco acesso à informação e conhecimento sobre "coisas de menina", de maneira geral e ampla. O que eles não aprendem na escola, não sabem. O que eles deixam de aprender nas conversas, nas trocas com as próprias meninas, aprendem em situações de conflito.
Meninos são ensinados a engolir o choro, a manter postura de homem, a fazer coisas de homem. A eles, cabem o peso da masculinidade carregada de códigos culturais. Menino não pode isso, não pode aquilo. Existe uma dificuldade - ou incapacidade - de muitos, em demonstrar seus sentimentos mais profundos. E os danos deste silêncio estão quantificados em pesquisas, estatísticas e documentários. O que é ser homem em 2022, eu pergunto.
Fato número 2 é que meninos pouco conhecem sobre meninas, pouco sabem o que é feminismo e pouco experimentam o lado feminino da própria masculinidade. E talvez caiba a nós, meninas e mulheres, ajudá-los a ganhar intimidade onde tanto falta. A agressividade diminui quando existe compreensão.
Por favor, vamos abrir essa roda porque mais gente precisa entrar. Meninos, venham!
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