Por que crianças têm perdido sua capacidade de brincar nas grandes cidades? O que leva a gente a acreditar que brincar na área comum do prédio é suficiente quando o imaginar é um mundo inteiro? Entenda.
"Eu queria ser esse menino", me disse um aluno de 8 anos enquanto assistíamos um episódio do documentário Território do Brincar, da educadora e pesquisadora Renata Meireles. Eu pergunto por que e ele me diz: "porque ele pode brincar de um jeito que eu não posso".
No episódio, um garoto de aproximadamente 12 anos brinca de bolinha de gude junto a uma turma de meninos. Já praticamente adolescentes, estão agachados no chão de terra e demonstram uma habilidade invejável com as mãos e os dedos. Lá, no Bairro do Arraial, município de Araçuai, Minas Gerais, a brincadeira ganha o nome de "China".
Aqui em São Paulo, chama-se "bolinha de gude" mesmo, mas praticamente não se brinca mais. É uma daquelas brincadeiras tidas como "antiga" e que são resgatadas por escolas quando no currículo aparece aquele momento de pesquisar as "brincadeiras de antigamente". Pais e avós costumam contar aos netos que jogavam bolinha de gude na rua.
Mas hoje em dia não tem mais rua para brincar. E o que tem acontecido com as crianças das grandes cidades que não tem mais rua para brincar? Por que tem se brincado tão menos? Pior, por que as brincadeiras estão empobrecendo? Perdendo seu viés cultural e ganhando códigos do universo digital. Isso, pelo menos aqui, na cidade grande.
Onde crianças brincam no concreto, cercadas por muros, grades e portões de segurança e acompanhadas por suas babás. Quase sempre há um adulto vigiando a brincadeira de uma criança e é óbvio que eu estou fazendo um recorte social e cultural aqui. Sem julgamento, mas com olhar crítico. Para que a gente possa refletir e pensar o que tem nos levado a trancafiar crianças em condomínios e acreditar que brincar na área social do prédio basta. Não basta. Brincar é um mundo e é preciso incluir o mundo nessa brincadeira.
Em cartaz no CCBB São Paulo até final de abril, o espetáculo que conta a história da Carroça dos Mamulengos me fez refletir sobre tudo isso que você leu acima. São três apresentações diferentes que contam a história de uma família que se formou e cresceu junto à cultura brasileira e tem a pedagogia brincante como espinha dorsal do que pode se chamar de vida e trabalho.

São três gerações da família Gomide-França no palco, são três gerações que nos ensinam, plateia, sobre a arte do brincar. Brincar este que traz fortes traços da cultura popular presente no Cariri cearense, lugar onde a família fincou raízes. As crianças que ocupam o palco têm de 12 a 2 anos e é das coisas mais lindas vê-las andando de perna de pau, brincando de Bumba ou a cena espetacular da mamulenga Miota, encenada pela atriz Ana Gomide.
Carlos Gomide, conhecido como Babau, é dos maiores bonequeteiros do Brasil. É dele a arte dos fantoches que a gente vê no palco e que são conhecidos como "mamulengos", reconhecido como patrimônio cultural pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). A palavra originária das senzalas dava nome a arte de contar histórias. "Mão molenga" era o significado da expressão. E Schirley França, companheira de Carlos Gomide, é uma referência quando o assunto é pedagogia brincante. São desta dupla, os filhos e netos que ocupam o palco.

Colorido, feliz, brasileiro, regional, alegre, não tem como sair do teatro do CCBB sem questionar o empobrecimento das brincadeiras de nossas crianças. Não só porque existe uma infância sendo roubada pelas telas, mas porque vivemos aterrorizados pelo medo da violência. Em nome da segurança e do cuidado, crianças têm se relacionado pouco - ou quase nada - com espaços externos das grandes cidades. Têm perdido o contato com a natureza, com a possibilidade de subir em árvore.
Grandes parques da cidade de São Paulo foram privatizados e em nome dos "não processos judiciais" está proibido subir em árvore. Juro. Como é que uma criança experiência o próprio corpo com tantas placas de proibido? Como é que uma criança experiência até onde a perna dela pode esticar ou qual a força do seu braço se ela não pode se pendurar num brinquedo público de um parque ou uma praça?
Essas crianças quando chegam as escolas estão sedentas pela hora do recreio, pela possibilidade de sair correndo das salas de aula e ocuparem os pátios. Mas o tempo lá também é curto. Tem escola que dá 15 minutos de brincadeira, acredita? Crianças de 6, 7 e até 8 anos têm apenas 15 minutos para brincar e 15 para comer. Por quê? Para que? Que ânsia é essa de "formar para o futuro"? Ninguém constrói futuro se não cuidar do presente.
O educador Paulo Freire defendia que a brincadeira deveria ser o centro do trabalho com as crianças e que ela é a melhor metáfora da vida. Renato Noguera, educador e Doutor em Filosofia, acredita que "a infância nos convida a reinventar o mundo". Ele defende que a gente - adulto - não pode perder o desejo de brincar e a capacidade de criar mundo. Porque só assim vamos conseguir manter nossa curiosidade de mundo e isso é o que nos mantém vivo. Eu, aqui, fico pensando se não passou da hora da gente reinventar esse mundo. Esse mundo que a gente insiste em chamar de mundo aqui na cidade grande.
Volto para à Carroça dos Mamulengos e lembro do aluno de 8 anos que chega a sentir inveja do garoto que mora lá na zona rural do interior de Minas Gerais. Lembro que brincar é uma dessas linguagens universais que a infância nos ensina brilhantemente.
Duas crianças que falam línguas diferentes são capazes de se comunicarem - e se entenderem - através da brincadeira. Aliás, quantas crianças que não se conhecem, não sabem o nome uma da outra, mas são capazes de passar horas num quintal, num parque, brincando inesgotavelmente? Impossível a gente não reconhecer a brincadeira como esse lugar de comunicação, de troca, de cultura, de ensinar e aprender.
Não à toa, a educação infantil tem todo seu currículo pautado pelo brincar. É através da brincadeira que a criança aprende. É através da brincadeira que ela troca cultura, que ela se expressa, pensa, convive, fala, escuta, explora e se expressa. Uma lista de verbos que são os eixos estruturantes da aprendizagem nessa faixa etária. Mas o que isso significa?
Significa que o aprendizado da criança vai ser "medido" por essas experiências todas. Mas e a brincadeira, o que tem a ver com tudo isso? É ela quem vai conduzir essas experiências. É através do brincar que ela vai experimentar cada um desses verbos. E é aí que se engana quem acha que criança pequena "só" brinca na escola. Ela aprende e aprende pelo brincar. E existe até nome para isso: pedagogia do brincante. Já ouviu falar?
Tá lá no palco do CCBB, com a Carroça dos Mamulengos e, mais do que eu ficar falando aqui e teorizando sobre ela, te convido a assistir com seus próprios olhinhos o que é a pedagogia brincante. Tem coisas que a gente precisa sentir no corpo para aprender o que é e essa é uma delas.
Sabe quando a gente canta a música da Dona Aranha para a criança e vai subindo com os dedos pelo braço dela e ela faz aquela carinha que é um misto de arrepio com desconfiança com alegria? É por aí. Você vai sentir os dedinhos do brincar subindo pela sua pele. Te garanto.