Tarefas simples como amarrar um tênis ou puxar o zíper de um casaco têm se tornado desafiadoras para crianças que crescem em frente ao tablet e/ ou celular.
"Você pode amarrar meu tênis?", pergunta um aluno de 7 anos ao passar pela professora no pátio da escola. Não é incomum crianças entre seus 6 e até 9 anos pedirem ajuda a professores ou assistentes de sala para ajudá-las a arramar o cadarço do próprio sapato. Também não é incomum que peçam ajuda para tirar uma tampa, abrir algum frasco de rosquear e até mesmo puxar o zíper de um casaco. Mas o que será que está acontecendo? Por que crianças estão com dificuldade de executar tarefas simples da própria infância?
A ciência já tem duas explicações para essas mudanças. A primeira delas é a falta de brincar em espaços externos, ao ar livre. É no parque, na pracinha, no tanque de areia, na área comum do prédio, na grama e até mesmo no chão de concreto que a criança tem oportunidade de experenciar a brincar livre. É quando ela usa materiais da própria natureza ou do espaço onde se encontra para investigar, imaginar e brincar.
Quem é que nunca viu uma criança intrigada com uma formiga que caminha pelo chão? Quem é que nunca viu os olhos curiosos dessa mesma criança observando essa mesma formiga carregando uma folha? E quando ela tenta pegar a formiga com as pontinhas dos dedos, já viu? Pois é, são essas vivências com a natureza, espaços abertos e coletivos, que propiciam a criança a exploração e a descoberta do próprio corpo. É através deste brincar que ela vai exercitar o abrir e fechar dos dedos, os movimentos das mãos, dos braços, do tronco e do corpo todo. Conseguir pegar uma formiga que caminha no chão exige observação, atenção, foco e habilidade com as mãos e os dedos.
Esse mesmo exercício com as pontas dos dedos a criança vai fazer enquanto brinca de blocos, monta um Lego ou faz castelos na areia - só para citar alguns exemplos. Mas quando a criança é privada desse brincar, priva-se também seu corpo da descoberta e do aprendizado e tá aqui a segunda razão pela qual crianças não têm conseguido executar tarefas simples do cotidiano.
Cada vez mais dentro de casa e expostas às telas, crianças brincam menos em espaços livres. Portanto, exercitam menos seus corpos e suas habilidades motoras. E essa mudança tem um impacto evidente: muitas crianças já não conseguem fechar seus casacos, segurar um lápis corretamente ou até mesmo manusear talheres com facilidade. Quando chegam na escola, chegam inábeis para tirar a tampa da canetinha, abrir um tubo de cola, tirar o próprio casaco e até mesmo amarrar o cadarço do tênis. Muitas, aliás, nem usam mais tênis com cadarço, usam de velcro para facilitar.
E o que até ano passado, 2024, era uma percepção - e preocupação - de professores, passou a ser estatística de estudo. Uma pesquisa recente da Education Week, semana voltada a educação que acontece nos Estados Unidos, revelou que 77% dos educadores notaram dificuldades crescentes entre os alunos para segurar lápis, canetas e tesouras, e 69% observaram um aumento nos problemas para amarrar os próprios sapatos, se comparado a cinco anos atrás.
Segundo Amy Hornbeck, especialista americana em ensino infantil, essa perda de habilidade é perceptível até nas atividades mais simples. "Quando pedimos para as crianças empilharem três blocos, elas parecem confusas, como se nunca tivessem feito isso antes", relata em entrevista a revista National Geographics.
A realidade levanta uma questão preocupante: o que está acontecendo com o desenvolvimento motor das novas gerações? Pesquisadores acreditam que o excesso de tempo diante das telas, mudanças no estilo de vida e a diminuição das brincadeiras tradicionais estão contribuindo para esse declínio.

Menos brincadeiras, mais telas: o efeito colateral do mundo digital
Cada minuto gasto em uma tela significa menos tempo para atividades que desenvolvem a coordenação motora, como desenhar, cortar papel, montar blocos ou simplesmente brincar ao ar livre. Embora existam aplicativos educativos, eles não substituem o aprendizado motor que ocorre ao segurar um lápis, usar uma tesoura ou virar as páginas de um livro.
O declínio das brincadeiras ao ar livre também preocupa especialistas. "As crianças não estão mais explorando, cavando a terra, coletando folhas ou pedras. Elas estão deixando de viver experiências fundamentais para o desenvolvimento motor", alerta Barnett. Crianças e adolescentes que passam mais tempo em dispositivos móveis do que interagindo com outras pessoas e/ou seus pares perdem oportunidades importantes de desenvolver habilidades sociais, emocionais e físicas.
Segundo Gabriel Salgado, coordenador da área de Educação do Instituto Alana, o brincar e especialmente o brincar livre, que parte da iniciativa da criança e não depende de brinquedos prontos, é fundamental para a formação da subjetividade, desenvolvimento e bem-estar emocional das crianças e adultos.
"Brincar é uma condição para a expressão de vitalidade e criatividade do ser humano e possibilita sua participação ativa na sociedade. Ao brincar livre, as crianças expressam sua singularidade, demonstrando suas emoções, interesses, gestualidades e habilidades - motoras, cognitivas e sociais. É a forma da criança ser, se expressar, se afetar, criar, compreender, investigar, aprender e estar no mundo," reflete.
Sem falar na praticidade dos dias atuais que também tem um preço. Roupas com elásticos substituíram botões e zíperes, tornando o vestir-se mais rápido, mas eliminando uma oportunidade de coordenação motora. Lanches prontos diminuíram a necessidade do uso de talheres, e brinquedos modernos, como blocos magnéticos que se encaixam sozinhos, tornaram-se mais populares do que aqueles que exigem paciência e destreza, como quebra-cabeças e blocos de madeira.
Outro reflexo dessa mudança é o desinteresse pela leitura. Em diversas salas de aula observadas por Hornbeck, nenhuma criança optou por ficar na área de leitura durante três horas. Essa redução no contato com livros está diretamente ligada a um menor desenvolvimento de habilidades cognitivas e motoras, como foco, concentração e destreza manual--todas essenciais para tarefas cotidianas, como amarrar os sapatos ou escrever à mão. E as crianças estão tão acostumadas a interações digitais que algumas tentam deslizar os dedos para virar as páginas de um livro. Isso já é um sinal de alerta.
E como ajudar as crianças a recuperar a coordenação motora?
Apesar do cenário preocupante, existem formas simples e eficazes de estimular o desenvolvimento motor das crianças no dia a dia. Especialistas recomendam que os pais incentivem atividades práticas que envolvam coordenação e precisão. Algumas sugestões incluem:
1. Cozinhar juntos e deixar a criança manusear utensílios de cozinha; 2. Incentivar brincadeiras com massinha de modelar, lápis de cor e tesouras infantis; 3. Explorar a natureza, coletando pedras, folhas ou outros objetos do ambiente; 4. Introduzir desafios cotidianos, como abotoar roupas e abrir embalagens; 5. Diminuir o tempo de telas e priorizar atividades manuais.
Além disso, é importante lembrar que, ao competir com dispositivos eletrônicos, essas atividades podem parecer menos atraentes. "Se você simplesmente desligar a televisão e disser 'Agora é hora de ler', pode enfrentar resistência. O ideal é começar a atividade antes de ligar qualquer tela", sugere Hornbeck, autor da pesquisa.
O caminho para recuperar habilidades motoras finas pode ser simples: mais brincadeiras e menos telas. Criar um ambiente rico em experiências táteis e motoras pode fazer toda a diferença no desenvolvimento das novas gerações. Guarda esse mantra: crianças aprendem e se desenvolvem brincando e para isso precisam movimentar o corpo, explorar ambientes e investigar diferentes materiais.