Viver em sociedade significa conviver com uma série de regras e normas que nem sempre agradam a todos. O que é permitido e o que não é? Qual o limite entre conveniência pessoal e regra coletiva? Se uma criança pode fazer xixi na grama, um adulto também pode? Entenda.
- Mãe, eu quero fazer xixi - Hum... mas aqui não tem banheiro, vai precisar esperar um pouquinho - Não consigo esperar, tá saindo, tá saindo, mãe vai sair, eu preciso fazer xixi, mãe, mãe - calma, calma, vem aqui, vamos achar um cantinho escondido e você faz, calma, pronto, viu, pode fazer o xixi que não tem ninguém olhando (imagina, ninguém, só metade das pessoas que estão passando por ali).
Mas fique tranquilo, se não tem "ninguém olhando" qual é mesmo o problema de uma criança pequena fazer xixi ali no matinho, não é?
Não, não é. Felizmente, não é. Xixis em lugares públicos, onde não existam banheiros públicos, ao ar livre, ao deus dará, é sim um problema e desde quando se é pequeno. A gente devia saber que alguns combinados sociais valem para qualquer faixa etária da humanidade. Criança, adulto ou idoso, a regra não muda.
Ou você acha bonito aquele cara que desce no meio do congestionamento da Imigrantes pra fazer xixi no canteiro da estrada? Agora me diga o que você acharia de um idoso fazendo xixi ali no cantinho do parque, onde "ninguém está vendo"? Isto, o mesmo cantinho que você levaria seu filho que está apertado.
Um idoso já aprendeu a ter controle do próprio corpo, sabe identificar os sinais de uma bexiga cheia, por exemplo, mas por outro lado, tem escapes de urina, tem incontinência. Tem outras doenças que incapacitam a percepção e o controle, mas como saber para não julgar a cena?
Cena esta que certamente causaria estranhamento, muitas vezes causaria até nojo e revolta. Como assim aquele idoso está fazendo xixi no meio do parque? Tem criança aqui, isso é um lugar publico, será que ele não sabe que existe banheiro?
Frases típicas que passariam pela cabeça da grande maioria. Agora a gente não vê problema se for uma criança. Por quê?
Existe uma necessidade fisiológica de fazer xixi, mas não é desta que se trata este texto. Uma criança que tem a oportunidade e a possibilidade de conhecer o próprio corpo, vai aprender a controlar suas vontades e, portanto, vai aprender a controlar o xixi. É assim que elas conseguem tirar a fralda, por exemplo.
Agora, por que eu permito um afrouxamento deste controle em algumas situações? E mais, por que eu permito apenas aos meninos que façam xixi em gramas, praças, parques, ruas e estradas?
E se trocássemos os "personagens" destas cenas pelo sexo feminino. Se fossem meninas e mulheres. Primeiro: você levaria sua filha no cantinho do parque para fazer xixi? Abaixaria a calcinha dela ali, onde "não tem ninguém olhando"? E o que te causaria ver uma mulher adulta, abaixando a calcinha e fazendo xixi no canteiro central da Imigrantes? Vamos lá, pense por alguns instantes sozinho. Tenho certeza de que você chegará numa resposta sensata.
Convenções sociais são criadas e normatizadas a partir de uma repetição. São regras, aceites e normas construídas pelos próprios indivíduos em sociedade. Elas não estão escritas em lugar algum, mas estão aí, vivas em nosso cotidiano e uma delas é essa do "xixi no matinho".
Agora veja como elas podem se desdobrar em tantos outros atos. Praia, verão,, barracas quase que coladas, aquele calor humano que você é capaz de sentir as gotículas do vizinho, piscina de plástico para as crianças brincarem, milho, sorvete e água de coco. O dia segue nesse ritmo até umas quatro da tarde, quando as crianças já estão arriando, os adultos precisam levantar acampamento.
Na entrada do condomínio, já passando o portão, um chuveirão. A mãe sai da praia com os filhos pequenos e para ali para lavar baldinhos e a piscina inflável. Na sequência, coloca a filha de 3 anos na banheira, saca o shampoo Chega de Lágrima da bolsa e começa a dar banho na menina ali. No chuveiro coletivo do condomínio.
É uma urgência que ela não pode caminhar 200mts até sua casa? Não, é provavelmente uma conveniência. Ela lava o cabelo, desembaraça o cabelo, penteia o cabelo, joga aquele cabelinho loiro e fino que sobrou no pente no ralo e termina lançando um olhar simpático a quem passa pelo portão. Afinal que mal tem de lavar aquele cabelinho loiro e fino no chuveiro coletivo do condomínio? Você não sacaria seu Seda da bolsa e tomaria um banhão ali mesmo?
Por que a gente permite que crianças façam coisas que adultos não estão autorizados a fazer? Melhor, por que a gente faz com crianças coisas que "é feio" adulto fazer? Por que a infância tem essa permissividade de quebra de combinados sociais que implicam, em alguns casos, na permanência deles na vida adulta?
Como mãe de três meninos eu me questiono. Como pedagoga e educadora eu me questiono. Como cidadã eu me questiono. E você, já se fez essa pergunta?
Ensinar dá trabalho. Educar dá trabalho. Cansa, dá vontade de arriar e correr para o matinho mais próximo muitas e muitas vezes. Mas aprender a perceber os sinais do próprio corpo, aprender a controlar vontades, a entender que existem limites entre o que eu quero e o que eu posso, são tão mais tão importantes que deveriam valer o esforço descomunal que é ensinar e educar.
Tem dia que a gente cansa, tem dia que a gente se permite o "faz aqui que ninguém está vendo", mas será? Será? Parece pequeno o xixi da criança na grama do parque. Parece pequeno o banho da menina no chuveiro do condomínio, mas olhando para a gente como sociedade e como cidadãos, é muito.
Educar dá trabalho. Educar não é fácil. Mas educar para o coletivo é o mínimo.
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