A música ocupa um lugar de identidade e pertencimento na vida dos jovens e entender o papel desta arte é crucial para mudar a relação com a escolha das músicas que eles fazem e as horas a fio com fones de ouvido
Na semana em que acontece o Rock in Rio nada melhor do que falar da relação da música com os jovens. Eles que vivem de fones de ouvido, tomam banho com som alto, nem sempre escutam as músicas que os pais gostariam e são os maiores ouvintes do Spotify. A afinidade deles com a música é algo muito peculiar e merece mais empatia do que críticas.
A palavra "música" vem do grego musiké técnhe e significa a "arte das musas". Música é arte e ela acontece entre a passagem de uma nota a outra. É ali, no extrair do som de uma letra em partitura que se faz a música. Uma combinação entre silêncios e sons que segue uma organização prévia por um determinado tempo.
Assim como os adolescentes: uma combinação entre silêncios e sons que segue uma organização prévia (sabemos como as coisas irão se comportar porque grande maioria do comportamento é padrão) por um determinado tempo (adolescência não dura para sempre).
Dentro do mundo das artes, a música pode ser classificada como a arte da representação e é exatamente este papel - e importância - que ela tem entre os adolescentes. A música está intrinsicamente relacionada a voz de um povo, a imagem de uma cultura e a um grupo. E o mesmo acontece na relação do adolescente com a seleção e o estilo de sons que ele ouve.
As escolham determinam, de certa maneira, os grupos sociais ao qual ele irá frequentar e pertencer. Além de "emitir sinais" de quem ele é, do que ele gosta, com o que se identifica e, portanto, carrega parte de sua identidade.
Se você escuta funk e rap, pertence a um determinado grupo. Se escuta sertanejo universitário, a outro. Se escuta os três tipos de som, vai circular por vários grupos e baladas diferentes. Mas tudo são códigos sociais que o adolescente emite por onde passa, inclusive dentro de casa.
A escolha por escutar determinado som não está ligada, necessariamente, a letra da música. Muitas vezes é a melodia que toca o jovem, outras é a sensação que ela provoca e, até mesmo, a identificação com um sentimento - ou uma imagem.
E tá aí uma preocupação dos pais: a influência que letras de músicas podem exercer na formação dos filhos, assim como a imagem de cantores ou bandas. Mas ninguém se torna aquilo que não é só porque escuta determinado tipo de som ou vai ao show do cantor "x" ou "y".
O que estou querendo dizer é que nenhum menino, por exemplo, vai passar a desrespeitar ou desvalorizar uma menina porque gosta de funk com letra de "senta aqui". Assim como nenhuma menina ou menino vai transicionar de gênero porque gosta da Pablo Vittar.
Músicas, cantores e bandas são referências, mais do que influências. É um lugar de possibilidades para o adolescente. E o que isto quer dizer? Quer dizer que é através do som que ele escuta, do cantor ou cantora que ele admira, das bandas que ele curte vai, também, construir possibilidades de mundo.
De certa maneira, a música ocupa na vida do adolescente um lugar muito próximo da literatura na infância. É através dos livros que a criança se reconhece, reconhece o outro, cria e amplia repertório e troca cultura. Num outro patamar de desenvolvimento, algo muito parecido acontece entre os jovens e a música, seja pela letra, seja pela melodia ou pelas sensações que ela provoca.
E músicas provocam muita coisa dentro deles. Por muito tempo, nadei a noite enquanto meu filho, hoje com 16 anos, treinava. Íamos embora para casa juntos e ao entrar no carro, ele imediatamente conectava sua playlist. Era no trajeto até em casa que eu tinha a chance de aprender mais sobre ele pelo que estava tocando dentro daquele veículo.
Não só trocávamos gostos e sugestões musicais como, principalmente, coisas da vida. E tinha uma banda em especial - X X X T E N T A C I O N conhece? Se não, aproveita pra dar uma busca - que tocava várias vezes. Um dia, ele me pede pra tirar a letra de um dos raps e nessa hora, eu pergunto o que ele entende do q ouve e a resposta foi algo que me disse muito: "não sei, sei que é melancólico. Ele parece estar sofrendo".
Adolescentes sofrem, lembra? Adolescentes, às vezes, sentem um embrolho dentro do peito que é difícil dar nome, é difícil identificar, reconhecer. E tá aí a música que pode ajudar nesse processo de autorreconhecimento, autopercepção. Olha que lindo ter a possibilidade da arte como lugar de conforto.
Entender essa relação entre os jovens e a música é entender, também, o lugar de representação que um estabelece na vida do outro. Diferentes tipos de sons, ritmos, despertam diferentes tipos de sensações e emoções, o que provoca uma série de estímulos e respostas do corpo - o que não necessariamente resulta na dança.
A mudança de frequência da respiração é algo que pode ser muito simples, mas tem um papel importante na garantia da saúde mental, por exemplo, e a música exerce essa função capaz de regular o corpo internamente.
Existe até um vocabulário específico para se falar de música e muitas das palavras que usamos se relacionam com os estímulos que despertam no corpo. Frequência, pulsação e ritmo são algumas delas e, não à toa, o corpo esquenta, o sangue corre mais rápido, o batimento interno é capaz de mudar de frequência e esta pode ser uma ferramenta poderosa no cuidado e tratamento de questões de saúde mental do adolescente.
Em artigo na revista Literartes, Prof. Dr. Mauro Muszkat, coordenador responsável do Núcleo de Atendimento Neuropsicológico Interdisciplinar (NANI) do Departamento de Psicobiologia da UNIFESP, serviço referência em São Paulo para o atendimento público dos transtornos do Neurodesenvolvimento, diz que a música atua como fator de melhora em doenças como depressão ou Alzheimer.
"Quando escutamos música, nosso batimento cardíaco, nossa frequência respiratória e nossos ritmos elétricos cerebrais mudam conforme o ritmo e a melodia, em outras palavras, 'dançam conforme a música'. Ela não apenas é processada no cérebro, mas afeta seu funcionamento. E os benefícios em potencial da mais emocional das artes não param aí: a música intensifica também as capacidades linguísticas", diz.
O neurocientista acredita que, para os adolescentes, a música atua no auxílio da fase de transição, em que ele se depara "com transformações não apenas hormonais, mas neurobiológicas e mudanças na impulsividade, agilidade motora e períodos de humor oscilante e de tédio".
A música é ainda mais fundamental na era atual, em que os adolescentes tendem a se relacionar boa parte das vezes virtualmente, sem estabelecer contatos presenciais e relações que propiciem experiências de compartilhamento, de vivências com o outro para dividir questões que se resolvem mais facilmente e melhor quando há vínculo afetivo.
Música cria vínculo. Propicia a construção de vínculo e não só com amigos, como com pai e mãe também. É uma baita oportunidade de dialogar com um adolescente. De se fazer presente na vida dele. Com menos críticas e mais empatia pelo que vem do universo deles, pelo que eles trazem como repertório. Música é vínculo.
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