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Uma alimentação consciente no paraíso da comilança

Guia Alimentar completa dez anos e segue alertando sobre os malefícios dos ultraprocessados 

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Por Juliana Carreiro
 

Em entrevista ao Comida de Verdade, o professor Carlos Monteiro fala sobre a necessidade de apertar o cerco contra os ultraprocessados, seguindo o exemplo do tratamento dado ao cigarro no País

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Em 2014 o Ministério da Saúde lançou o Guia Alimentar Para a População Brasileira. Dez anos depois, o documento elaborado pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo é reconhecido dentro e fora do Brasil e já serviu de inspiração para países, como: Índia, México, Equador, Colômbia, Peru, Bélgica e Canadá. 

 

O Guia já realizou feitos importantes como a criação da nova rotulagem de alimentos, com os alertas de excesso de sal, açúcar e gordura, e serviu de base para a Resolução 6 do PNAE que substituiu produtos ultraprocessados por versões mais naturais, nas merendas de escolas públicas do País, entre outras contribuições. Para comemorar a primeira década do documento, o Comida de Verdade entrevista o pesquisador do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP), Carlos Monteiro, que é professor emérito da Faculdade de Saúde Pública da USP.

1 - Pode fazer um balanço dos 10 anos do Guia Alimentar e de como ele tem contribuído para o País?

 C.M. 

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"Desde sua publicação em 2014, o Guia Alimentar consolidou-se como uma referência nacional e internacional, promovendo uma mudança de paradigma no entendimento da alimentação saudável. O Guia foi o primeiro a trazer a classificação nova de alimentos como parâmetro, e ultrapassou as recomendações baseadas apenas em nutrientes e calorias, defendendo uma abordagem inovadora que coloca a qualidade dos alimentos, os padrões alimentares, e o contexto cultural no centro das orientações. Ele enfatiza alimentos in natura e minimamente processados, ao mesmo tempo que alerta sobre os riscos dos alimentos ultraprocessados.

 

O Guia desempenhou um papel fundamental em disseminar a compreensão sobre a importância de uma alimentação baseada em "comida de verdade". Ele ajudou a consolidar uma visão mais crítica sobre a relação entre alimentação, saúde e a indústria de alimentos, trazendo o debate sobre ultraprocessados para a esfera pública. Um estudo recente, utilizando dados do NutriNet Brasil, nossa pesquisa de corte em desenvolvimento, indica que pessoas que aderem às práticas alimentares pautadas pelo Guia possuem dietas mais saudáveis,  e reconhecem mais facilmente os alimentos ultraprocessados como não saudáveis - demonstrando, portanto, que a adesão às práticas recomendadas pelo Guia impactam diretamente na saúde dos indivíduos. 

 

 O Guia foi incorporado em diversos programas e políticas públicas no Brasil, como por exemplo o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que prioriza alimentos in natura e da agricultura familiar e restringe ultraprocessados, ou o decreto da nova Cesta Básica Nacional, de 2024.  Ele também influenciou diretrizes de alimentação municipais, como as cidades do Rio de Janeiro e Niterói, que proibiram a comercialização e distribuição de ultraprocessados nas escolas. O modelo do nosso Guia tem sido estudado e replicado por outros países, como  Uruguai (2015), Equador (2018), Peru (2019) Chile e México (2023), Índia (2024). Há também países que utilizam o conceito de alimentos ultraprocessados em suas recomendações alimentares populacionais, como Bélgica e Canadá. Ele é considerado uma referência inovadora na área de políticas alimentares". 

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2- Quais são as principais barreiras para aumentar a popularização das recomendações do documento?

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C.M.

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"A adoção plena das recomendações do Guia enfrenta resistências significativas de setores da indústria de ultraprocessados, que tentam minimizar seu impacto ou desacreditar as recomendações, alegando que há espaço para todos os tipos de produtos na dieta. A indústria de alimentos ultraprocessados possui grande influência, por meio de lobby, para enfraquecer políticas baseadas no Guia - por exemplo a proposta de incluir ultraprocessados no Imposto Seletivo, em âmbito da Reforma Tributária. Seus investimentos em marketing, muitas vezes direcionados ao público infantil, consolidam hábitos alimentares pouco saudáveis. Nos últimos anos, houve tentativas de desmantelar ou enfraquecer políticas alimentares baseadas no Guia. No governo Bolsonaro, o próprio Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), uma instituição central para a implementação das diretrizes, foi temporariamente extinto, comprometendo a governança da política alimentar no País".

3 - O que pode ser feito para que a população brasileira consiga seguir cada vez mais as orientações propostas pelo documento?

C.M.

"Além da popularização das recomendações do Guia, com ações de comunicação e educação para a sociedade geral, e formação de profissionais de saúde e da educação, por exemplo, é imprescindível reorganização das políticas públicas e da economia alimentar, visando reduzir a desigualdade no acesso e fortalecer a autonomia alimentar da população.

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Investir em políticas de incentivo à agricultura familiar e agroecológica, por exemplo, além de agir para garantir que os ultraprocessados sejam tributados - enquanto os alimentos que representam a base da cultura alimentar brasileira, em toda sua diversidade regional, componham a Cesta Básica Nacional com Alíquota Zero. Fortalecer a nossa cultura alimentar é essencial: o Brasil ainda consome uma quantidade muito inferior de ultraprocessados em relação aos EUA e Reino Unido, por exemplo, e é também por causa da resistência do arroz e feijão no nosso cotidiano".

4 - Hoje já se fala que a medicina do futuro é preventiva. Qual é o papel da alimentação na prevenção de doenças?

C.M.

Um estudo publicado ainda este ano, na revista BMJ, associa o consumo de ultraprocessados à morte precoce e mais de 30 agravos à saúde - desde câncer, obesidade e doenças cardiovasculares até depressão. A ingestão de alimentos in natura e minimamente processados, por sua vez, está associada à melhor qualidade de vida. 

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5 - Por que a indústria se interessa em produzir mais alimentos ultraprocessados?

C.M.

"Porque gera lucro. Os alimentos ultraprocessados são elaborados a partir de ingredientes baratos, isso reduz os custos de produção e aumenta a margem de lucro. Além disso, os aditivos garantem longa vida de prateleira, o que facilita sua distribuição em grande escala e minimiza desperdícios, gerando mais eficiência na cadeia produtiva. Os ultraprocessados são padronizados, ou seja, podem ser replicados e distribuídos globalmente com poucas variações, reduzindo a complexidade logística e operacional. Isso permite a produção em larga escala. Os ultraprocessados são formulados para serem altamente palatáveis, combinando açúcares, gorduras, sal e aditivos cosméticos de forma que estimula o consumo excessivo e recorrente. Essa combinação pode criar hábitos alimentares difíceis de quebrar, garantindo a fidelidade do consumidor e aumentando a demanda. O propósito é substituir todos os outros grupos de alimentos por ultraprocessados". 

6 - Com base nas evidências dos malefícios destes produtos e até dos custos com o tratamento das doenças, não seria importante que o governo agisse por meio da taxação e do banimento da publicidade, como foi feito com o cigarro? Por que isso não acontece?

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C.M.

"Sim, com base nas evidências científicas dos malefícios dos alimentos ultraprocessados e seus impactos sobre a saúde pública, uma regulação rigorosa, com taxação e restrição da publicidade, por exemplo, são de extrema importância. A indústria de alimentos ultraprocessados é muito poderosa economicamente, com fortes laços com o governo, o que inclui lobby político e financiamento de campanhas eleitorais. Esse poder econômico cria um cenário no qual qualquer tentativa de regulação enfrenta resistências dentro dos próprios governos e legislativos. Enquanto o cigarro é universalmente prejudicial, nem todos os ultraprocessados são percebidos como nocivos em igual medida. Muitos desses produtos são rotulados como "saudáveis" (por exemplo a maior parte das barrinhas de cereais) e a indústria alimentícia frequentemente explora essa ambiguidade para resistir à regulação.

A falta de compreensão clara entre os consumidores sobre o que é exatamente um alimento ultraprocessado e seus malefícios dificulta a criação de um consenso em torno de ações mais rigorosas. A indústria de alimentos usa táticas similares às da indústria do tabaco no passado, como questionar as evidências científicas e financiar estudos que possam enfraquecer o consenso sobre os malefícios dos ultraprocessados. Além disso, eles promovem uma narrativa de que o problema é o comportamento individual, enfatizando que uma alimentação saudável é possível com "moderação" e "equilíbrio", desviando o foco das responsabilidades sistêmicas".

No Dia da Alimentação é preciso defender o nosso Guia e evitar os ultraprocessados

 

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